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Chapter 129 - CXXVIII. VASO

Passei o dia seguinte comendo bem e cochilando em minha cama macia. Tomei banho, cuidei de meus vários ferimentos e, de modo geral, proporcionei-me um merecido repouso.

Algumas pessoas passaram para me contar o que eu já sabia. Mathen havia arrancado pedras de túmulos e encontrado alguma coisa enterrada lá. E o que era? Era só uma coisa. Ninguém sabia mais do que isso.

Estava sentado ao lado da cama, brincando com a ideia de compor uma canção sobre o dracus, quando ouvi uma batida tímida à porta, tão baixa que quase me passou despercebida.

— Entre.

Abriu-se uma fresta e então a porta se escancarou.

Uma mocinha de uns 12 anos olhou ao redor, nervosa, entrou depressa e fechou a porta de mansinho. Tinha cabelos ondulados, de um castanho desbotado, e a tez pálida, com dois toques de cor no alto das maçãs do rosto. Os olhos eram encovados e escuros, como se ela tivesse chorado, dormido pouco, ou ambas as coisas. 

— Você queria saber o que o Mathen desenterrou? — perguntou-me, olhando para mim e desviando o rosto.

— Como é seu nome? — perguntei gentilmente.

— Veranya Brownflock — disse ela, em tom respeitoso. Depois fez uma mesura apressada, olhando para o chão.

— É um nome encantador. A verania é uma florzinha vermelha — expliquei com um sorriso, procurando deixá-la à vontade. — Você já viu alguma?

Ela balançou a cabeça, ainda com os olhos no chão.

— Mas imagino que ninguém a chame de Veranya. Será que é Nya? — indaguei. Ao ouvir isso, ela levantou os olhos. Um vago sorriso insinuou-se em seu rosto abatido.

— E assim que a vovó me chama.

— Venha sentar-se aqui, Nya — chamei-a, fazendo sinal para a cama, já que era o único outro lugar para alguém se sentar no quarto.

Ela sentou-se, torcendo nervosamente as mãos no colo.

— Eu vi. A coisa que eles tiraram do túmulo — disse, erguendo os olhos para mim e tornando a baixá-los para as mãos. — Foi o Senan que me mostrou, o filho caçula do Mathen.

Meu coração bateu mais rápido.

— E o que era?

— Um vaso grande e bonito — respondeu ela, baixinho. — Mais ou menos dessa altura. — Levantou a mão a cerca de um metro do chão. A mão tremia. — Tinha uma porção de coisas escritas e imagens. Bonito mesmo. Eu nunca tinha visto cores assim. E algumas tintas brilhavam feito prata e ouro.

— E eram imagens de quê? — perguntei, fazendo força para manter a voz calma.

— Gente. A maioria era de gente. Tinha uma mulher segurando uma espada quebrada e um homem do lado de uma árvore morta, com um cachorro mordendo a perna dele... — Sua voz se extinguiu.

— Havia algum de cabelo branco e olhos negros?

Ela arregalou os olhos e assentiu com a cabeça.

— Me deixou toda arrepiada — disse, estremecendo.

O Sombraim.

Tinha sido um vaso mostrando o Sombraim e seus sinais.

— Você se lembra de mais alguma coisa nas imagens? Não tenha pressa, pense bem.

Ela pensou:

— Havia um que não tinha rosto, só um capuz sem nada dentro. Aos pés dele ficava um espelho e uma porção de Luas em cima. Sabe, Lua cheia, meia-Lua, tirinha de Lua. — Baixou de novo os olhos, refletindo. — E tinha uma mulher... — ruborizou-se — ...que não usava um pedaço da roupa.

— Lembra-se de mais alguma coisa? — perguntei. Ela abanou a cabeça. — E quanto ao que estava escrito?

Nya tornou a fazer que não.

— Era tudo escrita estrangeira. Não dizia nada.

— Você acha que conseguiria desenhar alguma das coisas que viu escritas?

Ela tornou a balançar a cabeça:

— Só vi o vaso por um minuto. O Senan e eu, a gente sabia que ia levar uma surra se o pai dele nos pegasse — explicou. Seus olhos se encheram de lágrimas repentinas. — Os demônios também vão vir me pegar porque eu vi?

Abanei a cabeça com ar tranquilizador, mas ela desatou a chorar assim mesmo.

— Ando com muito medo desde aquilo que aconteceu na casa dos Mathen — soluçou. — Fico tendo sonhos. Sei que eles vão vir me pegar.

Mudei-me para a cama, sentando a seu lado, e passei um braço em seus ombros, dizendo-lhe palavras consoladoras. Aos poucos os soluços diminuíram.

— Nada nem ninguém virá pegá-la — afirmei.

Nya olhou para mim. Já não estava chorando, mas vi a verdade em seus olhos. Por baixo de tudo, ela continuava aterrorizada. Não havia palavra gentil que bastasse para tranquilizá-la.

Levantei-me e fui até onde estava minha capa.

— Deixe eu lhe dar uma coisa — falei, procurando num dos bolsos.

Apanhei um pedaço de lâmpada de simpatia em que estivera trabalhando na Artificiaria; era um disco de metal brilhante, coberto com intricados símbolos de siglística de um lado. Levei-o para ela:

— Consegui este amuleto quando fui a Naminé. Muito longe daqui, do outro lado dos Montes Tempestuosos. É um amuleto excelente contra demônios — acrescentei. Peguei a mão dela e o pus em sua palma.

Nya o fitou, depois ergueu os olhos para mim:

— Você não precisa dele?

Neguei com a cabeça:

— Tenho outros meios para me manter seguro.

Ela o segurou com força, as lágrimas novamente a lhe rolar pelas faces.

— Oh, muito obrigada. Vou andar com ele o tempo todo — jurou. Os nós dos seus dedos estavam brancos de tanto apertá-lo.

Nya o perderia. Não de imediato, mas dali a um ano, dois ou dez. Fazia parte da natureza humana, e, quando acontecesse, ela ficaria ainda pior do que antes.

— Não há necessidade disso — apressei-me a dizer. — Vou mostrar-lhe como funciona. —

Peguei a mão com que ela agarrava o pedaço de metal e envolvi-a com a minha:

— Feche os olhos.

Nya assim fez, e recitei devagar os 10 primeiros versos de Ne Namin Sartan. Não era muito apropriado, a rigor, mas foi tudo em que pude pensar naquele momento. O tumanico é uma língua cujo som impressiona, principalmente se a pessoa tem uma boa voz dramática de barítono, o que eu tinha.

Terminei e ela abriu os olhos. Estavam cheios de reverência, não de lágrimas.

— Agora ele está em sintonia com você — expliquei. — Haja o que houver, não importa onde ele esteja, ele a protegerá e a manterá segura. Você pode até quebrar e derreter o amuleto que o encanto continuará a funcionar.

Ela atirou os braços em meu pescoço e me deu um beijo no rosto. Depois levantou-se de repente, ruborizada. Não estava mais pálida e abatida; tinha os olhos luminosos. Eu ainda não havia notado, mas Nya era linda.

Foi embora logo em seguida; passei um tempo sentado na cama, pensando.

Durante o mês anterior eu havia tirado uma mulher de um inferno de chamas. Tinha invocado o fogo e o raio contra assassinos e escapado para um local seguro. Tinha até matado uma coisa que podia ser um dragão ou um demônio, dependendo do ponto de vista.

Mas ali, naquele quarto, pela primeira vez me senti realmente uma espécie de herói. Se você está procurando uma razão para eu ser o homem em quem viria a me transformar, se está em busca de um começo, procure aí.