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Chapter 130 - CXXIX. JUNTOS

Ao entardecer daquele dia, juntei meus pertences e desci para o salão dos hóspedes.

As pessoas da cidade me olharam e murmuraram entre si, agitadas. Entreouvi alguns comentários enquanto me dirigia ao bar e me dei conta de que, na véspera, a maioria deles me vira envolto em ataduras, supostamente com ferimentos terríveis por baixo. Agora as ataduras tinham sumido e tudo o que eles viram foram uns machucadinhos.

Outro milagre.

Fiz força para não rir.

O hospedeiro mal-encarado me disse que nem sonharia me cobrar nada, visto que toda a cidade estava em débito comigo e tudo o mais. Não, não. Absolutamente não. Nem queria ouvir falar disso. Se houvesse alguma outra coisa que ele pudesse fazer para demonstrar sua gratidão...

Assumi uma expressão pensativa. Já que ele o havia mencionado, disse-lhe que se porventura tivesse outra garrafa daquele delicioso vinho de morango...

Segui para o cais de Evesdon e arranjei um assento numa balsa que ia descer o rio. Enquanto esperava, perguntei se algum dos estivadores tinha visto uma jovem passar por ali nos últimos dois dias. Cabelos pretos, bonita...

Eles tinham. A moça passara por lá na tarde da véspera e tomara um barco para descer o rio. Senti um certo alívio ao saber que ela estava a salvo e relativamente bem. Afora isso, no entanto, fiquei sem saber o que pensar. Por que não tinha ido a Nebron? Teria achado que eu a havia abandonado? Será que se lembrava de alguma coisa do que havíamos conversado naquela noite, deitados juntos no monólito?

Aportamos em Torrente horas depois do amanhecer e fui direto à casa de Devi. Após uma barganha animada, dei-lhe a pedra-luden e um único crimo para quitar meu empréstimo de 20 crimos a prazo curtíssimo. Ainda me faltava pagar-lhe a dívida original, mas, depois de tudo que eu havia passado, uma dívida de quatro crimos já não me pareceu terrivelmente ameaçadora, apesar de minha bolsa estar de novo praticamente vazia.

Levei algum tempo para recompor minha vida. Eu só me ausentara por quatro dias, mas precisei pedir desculpas e dar explicações a toda sorte de pessoas: havia faltado a um encontro com o conde Augus, a duas reuniões com Monet e a um almoço com Faela. A Grilo passara duas noites sem seu músico. Até Hani me fez uma censura delicada por não ter ido visitá-la.

Eu havia faltado a aulas de Kelvin, Lal Mirch e Armin. Todos aceitaram meus pedidos de desculpas com bondosa reprovação. Compreendi que, quando fosse estabelecido o valor da minha matrícula no período letivo seguinte, eu acabaria pagando por minha ausência repentina e aparentemente sem desculpas.

O mais importante eram Alastor e Leif. Os dois tinham ouvido boatos sobre um estudante atacado numa viela. Dada a expressão de Drazno nos últimos dias, mais arrogante que de hábito, eles esperavam que eu tivesse fugido da cidade ou, na pior das hipóteses, que estivesse carregado de pedras no fundo do rio Ometh.

Foram os únicos a receber uma explicação verdadeira sobre o que havia acontecido. Embora eu não lhes dissesse toda a verdade sobre a razão de me interessar pelo Sombraim, contei-lhes a história inteira e lhes mostrei a escama. Os dois ficaram apropriadamente admirados, mas me disseram sem rodeios que lhes deixasse um bilhete da próxima vez, senão eu comeria o pão que o diabo amassou.

E procurei por Alys, na esperança de dar minha explicação mais importante de todas. Para minha surpresa, acabei encontrando-a como sempre a encontrava, por puro acaso.

Já andando apressado, cheio de outras coisas na cabeça, quando dobrei uma esquina e tive que frear para não atropelá-la.

Paramos ambos por meio segundo, assustados e mudos. Apesar de eu haver passado dias procurando seu rosto em todas as sombras e janelas de carruagens, sua visão me deslumbrou.

Eu guardara a lembrança do formato de seus olhos, mas não do peso deles; de sua coloração escura, mas não de sua profundidade. A proximidade de Alys tirou o fôlego de meu peito, como se de repente me houvessem jogado em águas profundas.

Eu passara longas horas pensando em como seria esse encontro, encenando-o mil vezes na cabeça. Temia que ela se mostrasse distante, alheia. Que me desdenhasse por tê-la deixado sozinha na floresta. Que ficasse calada e taciturnamente magoada. Que viesse a chorar, a me maldizer, ou a simplesmente me dar as costas e ir embora.

Alys me ofereceu um sorriso radiante.

— Vanitas! — exclamou, segurando minha mão e apertando-a entre as suas. — Senti sua falta. Por onde você andava?

Senti-me enfraquecer de alívio.

— Ah, você sabe, aqui e ali. — Fiz um gesto indolente. — Por aí.

— Você me deixou encalhada um dia desses — fez ela, fingindo um olhar zangado. — Eu esperei, mas a maré não subiu.

Eu já ia explicar a situação quando ela apontou para o homem parado a seu lado.

— Desculpem a grosseria. Vanitas, este é o Daran — disse. Eu nem o havia notado. — Daran, Vanitas.

Daran era alto e magro. Bem-dotado de músculos, bem vestido e bem-criado. A linha do queixo era tão bem esquadriada que deixaria um pedreiro orgulhoso e os dentes eram um fio branco e perfeito. O homem parecia um Príncipe Encantado saído de um livro de histórias. Recendia a dinheiro.

Deu-me um sorriso amistoso e descontraído.

— É um prazer conhecê-lo, Vanitas — disse, com uma meia mesura graciosa.

Retribuí a mesura, por puro reflexo, estampando meu sorriso mais sedutor.

— Às suas ordens, Daran.

Voltei-me para Alys:

— Precisamos almoçar um dia desses — disse-lhe em tom alegre, arqueando muito discretamente uma sobrancelha, como quem perguntasse: esse é o Mestre Freixo? — Tenho umas histórias interessantes para você.

— Sem dúvida — fez ela, abanando de leve a cabeça para me dizer não. — Você saiu antes de poder terminar a última. Fiquei terrivelmente desapontada por ter perdido o fim. Aflita, na verdade.

— Ah, foi só o mesmo que você já ouviu centenas de vezes. O Príncipe Encantado mata o dragão, mas perde o tesouro e a mocinha.

— Ah, que tragédia — disse Alys, baixando os olhos. — Não é o fim pelo qual eu ansiava, porém não é mais do que eu teria esperado, acho.

— Seria uma tragédia se ela acabasse aí — admiti. — Mas tudo depende de como você a encara, na verdade. Prefiro pensar nela como uma história à espera de uma continuação adequadamente animadora.

Uma carruagem passou chacoalhando na rua e Daran se afastou para lhe dar passagem, roçando casualmente em Alys ao se mexer. Ela segurou o braço do rapaz, com ar distraído.

— Em geral, não gosto de histórias seriadas — disse-me, com a expressão momentaneamente séria e indecifrável. Depois encolheu os ombros e me deu a sugestão de um sorriso irônico. — Mas com certeza já tive ocasião de mudar de ideia sobre essas coisas. Talvez você consiga me convencer.

Indiquei o estojo do alaúde que levava pendurado no ombro.

— Eu continuo a tocar na Grilo quase todas as noites, se você quiser dar uma passada por lá...

— Darei — disse ela. Deu um suspiro e olhou para Daran. — Já estamos atrasados, não é?

Ele espremeu os olhos para o sol e fez que sim.

— Estamos. Mas ainda podemos alcançá-los, se andarmos depressa.

Alys tornou a se virar para mim:

— Desculpe, mas marcamos um compromisso para cavalgar.

— Eu jamais sonharia em retê-los — repliquei, afastando-me gentilmente de lado para lhes dar passagem.

Daran e eu trocamos acenos corteses de cabeça.

— Passarei para procurá-lo em breve — disse Alys, virando-se para mim ao passar.

— Vá em frente — fiz eu, gesticulando com a cabeça na direção do rumo que eles iam tomar. — Não me deixe atrasá-la.

Os dois deram as costas e se foram. Observei-os se afastarem pelo calçamento de pedra das ruas de Torrente.

Juntos.