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Chapter 128 - CXXVII. TRABALHO

Quando voltei a Nebron, o crepúsculo começava a envolver a cidade.

Subi nos telhados com um pouco mais de cuidado que de hábito. Não poderia confiar em meu equilíbrio enquanto minha cabeça não dispusesse de uns dias para se recompor.

Mesmo assim, não foi grande proeza chegar ao telhado da hospedaria, onde recolhi minhas botas. Daquele posto de observação, à luz tênue, a cidade tinha um aspecto lúgubre. A metade frontal da igreja desabara por completo e um terço da cidade exibia as marcas dos incêndios.

Alguns prédios tinham sido somente chamuscados, porém outros se resumiam a pouco mais do que borralho e cinzas. Apesar de meus melhores esforços, o fogo devia ter campeado sem controle depois de eu perder a consciência.

Olhei para o norte e vi o cume do morro dos monólitos cinzentos. Tive a esperança de ver o lampejar de uma fogueira, mas não havia nada, é claro.

Voltei ao telhado plano da prefeitura municipal e subi a escada da cisterna, cujo interior estava quase vazio. Alguns centímetros de água ondulavam no fundo, muito abaixo de onde minha faca havia prendido um sarrafo carbonizado na parede. Isso explicava o estado da cidade.

Quando o nível da água descera abaixo de meu trabalho improvisado de siglística, os incêndios haviam recomeçado. Mesmo assim, ele tinha feito as coisas andarem mais devagar. Não fosse isso, talvez não restasse cidade alguma.

De volta à hospedaria, encontrei inúmeras pessoas taciturnas e sujas de fuligem que se reuniam para beber e trocar ideias. Não vi meu amigo carrancudo em parte alguma, porém havia um punhado de gente em torno do bar discutindo animadamente alguma coisa que fora vista.

O prefeito e o guarda da cidade também estavam presentes. Tão logo me avistaram, levaram-me correndo a uma sala particular para conversar.

Eu estava pouco falante e mal-humorado e, depois dos acontecimentos dos dias anteriores, não tremendamente intimidado pela autoridade de dois velhos pançudos. Eles perceberam e isso os deixou nervosos.

Minha cabeça doía, eu não sentia nenhuma disposição de me explicar, e ficava muito à vontade tolerando um silêncio incômodo. Por causa disso, os dois falaram um bocado e, ao formularem suas perguntas, informaram-me quase tudo o que eu queria saber.

Felizmente os estragos causados à cidade tinham sido pequenos. Graças à festa da colheita, ninguém fora apanhado dormindo. Havia muitos machucados, cabelos chamuscados e gente que tinha inalado mais fumaça do que lhe conviria, mas, à parte algumas queimaduras sérias e o sujeito cujo braço fora esmagado pela queda de um pedaço de madeira, eu é que parecia ter sofrido os piores danos.

Eles sabiam com incontestável certeza que o dracus era um demônio. Um imenso demônio negro que cuspia fogo e veneno. Se tinha havido a mais remota dúvida quanto a isso, ela fora dissipada pelo fato de a fera ter sido abatida pelo ferro do próprio Ardonai.

Havia também um consenso de que a besta demoníaca tinha sido responsável pela destruição da fazenda dos Mathen. Era uma conclusão razoável, apesar de completamente errada. Tentar convencê-los de qualquer outra coisa seria um desperdício inútil do meu tempo.

Eu fora encontrado inconsciente em cima da roda de ferro que havia matado o demônio. O cirurgião local tinha me remendado da melhor maneira possível e, pouco familiarizado com a notável grossura do meu crânio, havia manifestado sérias dúvidas de que um dia eu viesse a despertar.

A princípio, a opinião geral tinha sido que eu fora um mero espectador azarado, ou que, de algum modo, havia arrancado a roda da igreja. Contudo, minha recuperação milagrosa, combinada com o fato de eu ter cavado a fogo um buraco no bar, estimulara as pessoas a finalmente darem ouvidos ao que um menino e uma viúva idosa tinham passado o dia inteiro dizendo que, na hora em que o carvalho se inflamara como uma tocha, eles tinham visto alguém em pé no telhado da igreja. Esse sujeito fora iluminado pelo fogo abaixo dele. Tinha os braços levantados à frente do corpo, quase como se rezasse...

O prefeito e o chefe dos guardas acabaram sem ter o que dizer para preencher o silêncio e apenas permaneceram sentados, ansiosos, olhando um para o outro e, em seguida, para mim.

Ocorreu-me que não estavam vendo um garoto esfarrapado e sem lumen à sua frente; enxergavam uma misteriosa figura derreada que havia matado um demônio.

Não vi razão para dissuadi-los. Na verdade, era mais do que hora de eu ter um pouco de sorte naquela história. Se eles me consideravam uma espécie de herói ou de santo, isso me dava uma vantagem útil.

— O que vocês fizeram com o corpo do demônio? — indaguei, e notei que ambos relaxaram. Até aquele momento eu mal havia proferido meia dúzia de palavras, respondendo à maioria de suas perguntas hesitantes com um silêncio soturno.

— Quanto a isso, o senhor não tem com que se preocupar — disse o guarda. — Sabíamos o que fazer com ele.

Senti um aperto no peito e compreendi o que tinha ocorrido antes que me contassem: eles o haviam queimado e enterrado. A criatura era uma maravilha científica e aquela gente a queimara e enterrara como se fosse lixo.

Eu conhecia escribas naturalistas do Arquivo que se disporiam a decepar as próprias mãos para estudar uma criatura tão rara. E tivera até a esperança, no fundo do coração, de que levar à atenção deles essa oportunidade talvez me fizesse recuperar o acesso ao Arquivo.

E as escamas e os ossos. Centenas de quilos de ferro desnaturado, que os alquimistas teriam disputado furiosamente...

O prefeito balançou a cabeça, animado, e cantarolou:

"De 10 por dois um buraco fazer. Para freixo, ulmo e sorveira conter." — Pigarreou e prosseguiu: — Teve que ser um buraco maior, é claro. Todos se revezaram para cavá-lo o mais depressa possível. — E levantou a mão, exibindo com orgulho um conjunto de bolhas recentes.

Fechei os olhos e reprimi a ânsia de quebrar tudo na sala e xingá-los em oito línguas diferentes. Isso explicava por que a cidade ainda se achava num estado tão lastimável. Todos haviam ficado ocupados em incendiar e sepultar uma criatura que valia o resgate de um rei.

Mas não havia nada que se pudesse fazer. Duvidei que minha nova reputação bastasse para me proteger se eles me pegassem tentando desenterrá-la.

— A moça que sobreviveu ao casamento na fazenda dos Mathen — indaguei —, alguém a viu hoje?

O prefeito olhou para o guarda com ar questionador:

— Não que eu tenha ouvido falar. Você acha que havia alguma ligação entre ela e a fera?

— O quê? — fiz eu. A pergunta era tão absurda que, a princípio, não a compreendi. — Não! Não sejam ridículos! — repreendi-os com ar severo. A última coisa de que eu precisava era que, de algum modo, Alys fosse implicada naquilo tudo. — Ela estava me ajudando no meu trabalho — informei, tomando o cuidado de deixar as coisas vagas.

O prefeito lançou um olhar furioso para o guarda e se virou novamente para mim:

— O seu... trabalho está terminado aqui? — perguntou, cauteloso, como se temesse me ofender. — Decerto não pretendo me meter em seus assuntos... mas... — Passou a língua nos lábios, nervoso. — Por que isso aconteceu? Nós estamos em segurança?

— Vocês estão tão seguros quanto posso deixá-los — foi minha resposta ambígua. Pareceu-me uma coisa heroica a dizer. Se tudo que eu ia tirar daquela história era um pouco de fama, podia muito bem me certificar de que fosse do tipo certo.

Foi quando me ocorreu uma ideia:

— Para ter certeza da sua segurança, preciso de uma coisa — comecei. Inclinei-me para a frente na cadeira, entrelaçando os dedos. — Preciso saber o que o Mathen desencavou no Morro dos Túmulos.

Vi os dois se entreolharem pensando: "Como ele sabe disso?" Recostei-me na cadeira, lutando contra a vontade de rir como um gato num pombal, e acrescentei:

— Se eu souber o que o Mathen encontrou lá, posso tomar providências para garantir que esse tipo de coisa nunca mais aconteça. Sei que era segredo, mas é fatal que alguém na cidade tenha alguma informação. Espalhem a notícia e mandem qualquer um que souber de alguma coisa conversar comigo.

Levantei-me devagar. Foi preciso um esforço consciente para não fazer uma careta, por causa das diversas fisgadas e dores.

— Mas façam-nos virem depressa. Parto amanhã à tardinha. Tenho assuntos prementes no sul.

Dito isto, abri a porta e me retirei, a capa esvoaçando dramaticamente às minhas costas.

Sou artista de trupe até a medula e, uma vez montado o cenário, sei fazer uma bela saída.