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Chapter 124 - CXXIII. DELÍRIO

Irritado porque o dracus parecia estar demorando o que bem entendia para aparecer, empilhei mais lenha na fogueira. Olhei para os penedos do norte, mas não se enxergava nada na semiescuridão senão as silhuetas de árvores e rochas.

De repente, Alys soltou uma gargalhada:

— Eu chamei o seu rosto de açucareiro ou coisa assim? — perguntou, olhando para mim. — Estou fazendo algum sentido neste exato momento?

— É só um pequeno delírio — tranquilizei-a. — Você entrará e sairá dele até adormecer.

— Tomara que seja tão divertido para você quanto é para mim — disse ela, apertando mais o cobertor em volta do corpo. — É como um sonho felpudo, mas não tão quentinho.

Subi pela escada ao topo do monólito, onde tínhamos escondido nossos pertences. Peguei um punhado da resina de dâmara na saca de oleado, desci com ele e o joguei na borda da fogueira.

A droga queimou com lentidão, expelindo uma fumaça acre que o vento levou para o norte e o oeste, em direção aos penedos invisíveis. Minha esperança era que o dracus sentisse o cheiro e viesse correndo.

— Tive pneumonia quando era bem pequenininha — disse Alys, sem qualquer inflexão especial. — É por isso que meus pulmões não são bons. As vezes é horrível não poder respirar.

Seus olhos ficaram semicerrados enquanto ela prosseguiu, quase como se falasse sozinha:

— Fiquei dois minutos sem respirar; quase morri. Às vezes me pergunto se tudo isso não é uma espécie de erro, se eu não deveria estar morta. Mas, se não é um erro, tenho que estar aqui por alguma razão. Mas, se existe uma razão, não sei qual é.

Havia uma clara possibilidade de que ela nem soubesse que estava falando, e uma possibilidade ainda maior de que quase todas as partes importantes de seu cérebro já estivessem dormindo e de que de manhã ela não se lembrasse de nada do que acontecera nesse momento.

Como eu não sabia o que responder, apenas balancei a cabeça.

— Foi a sua primeira frase para mim: "Estava pensando no que você faz aqui." Minhas sete palavras. Passei muito tempo pensando na mesma coisa.

O sol, já escondido pelas nuvens, finalmente se pôs atrás das montanhas do oeste. A medida que a paisagem foi sumindo nas trevas, o alto do pequeno morro tornou-se uma ilha num vasto oceano noturno.

Alys começava a cabecear sentada, descendo lentamente o queixo até o peito e tornando a levantá-lo. Aproximei-me dela e estendi a mão.

— Venha, o dracus não demora a chegar. Precisamos ir para o alto das pedras.

Ela fez que sim e se pôs de pé, ainda embrulhada nos cobertores. Segui-a até a escada e ela subiu devagar, meio trôpega, para o alto do monólito cinzento.

Fazia frio em cima da pedra, longe da fogueira. O vento soprava, roçando nosso corpo e piorando a leve friagem. Estendi um cobertor na pedra e Alys se sentou, aninhada no outro. O frio pareceu despertá-la um pouco, fazendo-a olhar em volta, mal-humorada e trêmula.

— Diabo de galinha. Venha comer o seu jantar. Estou com frio.

— Eu tinha esperança de já tê-la aninhado numa cama quentinha em Nebron a esta hora — admiti. — Foi-se o meu plano brilhante.

— Você sempre sabe o que faz — ela retrucou, meio confusa. — Você é importante, olhando para mim com esses seus olhos verdes como se eu significasse alguma coisa. Não faz mal que tenha mais o que fazer. Basta eu vê-lo uma vez ou outra. De vez em quando. Sei que é sorte minha ter só um pouquinho de você.

Meneei a cabeça gentilmente, enquanto vigiava a encosta em busca de sinais do dracus. Passamos mais um tempo sentados, de olhos fixos na escuridão. Alys cabeceou um pouco, tornou a se empertigar e lutou contra outro tremor violento.

— Sei que você não pensa em mim... — Sua voz se extinguiu.

Convém agradar as pessoas delirantes para que não se tornem violentas.

— Penso em você o tempo todo, Alys.

— Não me trate com condescendência — disse ela, mal-humorada, depois tornou a abrandar o tom. — Não é assim que você pensa em mim. Tudo bem. Mas, se também estiver com frio, pode vir para cá e pôr os braços em volta de mim. Só um pouquinho.

Como coração na boca, cheguei mais perto e sentei atrás dela, envolvendo-a nos braços.

— Isso é bom — fez ela, relaxando. — Acho que sempre me senti com frio.

Ficamos sentados, olhando para o norte. Alys encostou-se em mim: um encanto em meus braços. Respirei de leve para não perturbá-la.

Ela se mexeu um pouco, murmurando:

— Você é muito gentil. Nunca impõe nada... — Parou outra vez, apoiando-se mais no meu peito. Depois agitou-se. — Poderia se impor mais, sabe? Só um pouquinho.

Fiquei ali sentado no escuro escorando nos braços seu corpo adormecido. Ela era macia e morna, indescritivelmente preciosa. Eu nunca havia abraçado uma mulher. Depois de alguns minutos, minhas costas começaram a doer pelo esforço de sustentar o peso dela e o meu. Minhas pernas foram ficando dormentes. O cabelo dela fazia cócegas no meu nariz. Mesmo assim, não me mexi, por medo de estragar o que me pareceu ser o momento mais maravilhoso da minha vida.

Alys agitou-se durante o sono, começou a escorregar de lado e despertou num sobressalto.

— Deite-se — disse-me de novo com a voz límpida. Atrapalhou-se com o cobertor e o afastou, para tirá-lo do espaço entre nós. — Ande, você também deve estar com frio. Não é sacerdote, portanto não terá problemas por isso. Vamos ficar bem. Só um pouquinho melhor no frio.

Envolvi-a nos braços e ela estendeu o cobertor sobre nós dois.

Ficamos deitados de lado, feito colheres aninhadas numa gaveta. Meu braço acabou sob a cabeça dela, como um travesseiro. Alys se ajeitou, bem encostada na frente do meu corpo, descontraída e natural, como se tivesse sido feita para se encaixar ali.

Deitado na pedra, percebi que me enganara antes: aquele era o momento mais maravilhoso da minha vida.

Ela se agitou no sono:

— Sei que você não estava falando sério — disse com clareza.

— Falando sério sobre quê? — indaguei, baixinho. A voz dela estava diferente, não mais sonhadora e cansada. Perguntei-me se estaria falando enquanto dormia.

— Naquela hora. Você disse que me daria um murro e me obrigaria a comer o carvão. Você nunca me bateria — afirmou, virando um pouco a cabeça. — Não bateria, não é? Nem se fosse para meu próprio bem...

Senti um calafrio.

— O que quer dizer?

Houve uma longa pausa e comecei a achar que ela pegara no sono, mas Alys voltou a falar:

— Não lhe contei a verdade. Sei que o Mestre Freixo não morreu na fazenda. Quando eu ia andando em direção ao incêndio, ele me encontrou. Voltou e disse que estavam todos mortos. Que as pessoas ficariam desconfiadas se eu fosse a única sobrevivente...

Senti uma raiva implacável e obscura avolumar-se dentro de mim. Sabia o que viria a seguir, mas deixei-a falar. Não queria ouvir, mas sabia que ela precisava contar a alguém.

— Ele não fez aquilo a troco de nada. Certificou-se de que era mesmo o que eu queria. Eu sabia que não pareceria convincente se eu mesma o fizesse. Ele se assegurou de que eu queria que fosse ele. Fez eu lhe pedir para me bater. Só para ter certeza. E ele tinha razão — prosseguiu, sem se mexer enquanto falava. — Mesmo assim, acharam que eu tivera alguma coisa a ver com aquilo. Se ele não houvesse me batido, talvez agora eu estivesse na cadeia. Eles me enforcariam.

Meu estômago revirou-se, produzindo ácido.

— Alys, um homem capaz de fazer isso com você... não é digno do seu tempo. Nem de um minuto. Não se trata de ser apenas meio pão. Ele é podre da cabeça aos pés. Você merece coisa melhor.

— Quem sabe o que eu mereço? Ele não é o meu melhor pão. É o único. É ele ou a fome.

— Você tem outras opções — comecei, mas me detive, pensando na conversa com Droch. — Você... você tem...

— Eu tenho você — ela interrompeu, sonhadora. Ouvi o sorriso morno e sonolento em sua voz, como o de uma criança aninhada na cama. — Quer ser o meu príncipe encantado de olhos sombrios e me proteger dos porcos? Cantar para mim? Arrebatar-me para as árvores mais altas... — E sua voz extinguiu-se no nada.

— Quero — respondi. Mas, por seu peso em meu braço, percebi que ela finalmente havia adormecido.