Permaneci acordado, sentindo a suave respiração de Alys no braço.
Não conseguiria dormir, mesmo se quisesse. A proximidade dela me inundava de uma energia crepitante, um calor brando, um cantarolar pulsante e suave. Fiquei acordado saboreando tudo, e cada momento foi precioso como uma jóia.
E então ouvi o estalar distante de um galho se quebrando. Depois outro. Algum tempo antes eu não desejara outra coisa senão que o dracus corresse para a nossa fogueira. Nesse momento, no entanto, teria dado minha mão direita para que ele seguisse seu caminhozinho por mais cinco minutos.
Mas ele veio. Comecei a me soltar delicadamente de Alys. Ela mal se mexia no sono.
— Alys — chamei, sacudindo-a de leve, depois com mais força. Nada. Não fiquei surpreso. Poucas coisas são mais profundas que o sono de um papa-doces.
Cobri-a com o cobertor e coloquei minha sacola de viagem de um lado do seu corpo, a saca de oleado do outro, feito suportes de livros. Se ela se virasse dormindo, bateria numa delas antes de se aproximar da borda do monólito.
Passei para o outro lado da pedra e olhei para o norte. As nuvens continuavam carregadas, de modo que não enxerguei nada fora do círculo de luz da fogueira.
Tateando com cuidado, localizei o pedaço de barbante que havia deixado atravessado sobre o topo do monólito. A outra ponta estava amarrada na alça de corda do balde de madeira mais abaixo, a meio caminho entre o fogo e as pedras.
Meu grande temor era que o dracus esmagasse acidentalmente o balde antes de farejá-lo. Eu pretendia suspendê-lo a uma altura segura, se isso acontecesse, e depois lançá-lo de novo. Alys rira do meu plano, referindo-se a ele como pesca de galinha.
O dracus chegou ao alto do morro, deslocando-se ruidosamente pela vegetação. Parou logo ao entrar no círculo de luz. Seus olhos escuros tinham um brilho vermelho, assim como havia vermelho em suas escamas.
Deu uma bufada grave e começou a circundar a fogueira, balançando a cabeça devagar de um lado para outro. Soprou uma larga pluma de fogo, no que eu já começava a reconhecer como uma espécie de saudação ou desafio.
Precipitou-se para a fogueira. Apesar de já tê-lo observado por um bom tempo, continuei surpreso com a rapidez dos movimentos do gigantesco animal. Ele se deteve pouco antes de chegar ao fogo, tornou a bufar e partiu em direção ao balde.
Embora fosse de madeira resistente e feito para conter pelo menos dois galões, o balde parecia minúsculo como uma xícara de chá perto da cabeçorra do dracus. O bicho tornou a farejá-lo, acertou-o como nariz e o virou.
O balde rolou num meio círculo, mas eu havia colocado a resina pegajosa dentro dele com força. O dracus deu outro passo, bufou mais uma vez e meteu tudo na boca.
Meu alívio foi tanto que quase me esqueci de soltar o barbante, que me foi arrancado das mãos quando o dracus mastigou um pouco o balde, esmigalhando-o entre os imensos maxilares. Depois levantou e abaixou a cabeça, forçando a massa grudenta a lhe descer pela goela.
Soltei um enorme suspiro de alívio e me sentei para observá-lo contornar o fogo. Ele soltou uma onda de chama negra, depois outra, e então virou-se e rolou na fogueira, meneando o corpo e calcando-a na terra.
Uma vez aplainada a fogueira, o bicho retomou o mesmo padrão de antes. Procurou os pedaços espalhados de fogo, rolou neles até extingui-los e devorou a madeira. Quase pude visualizar cada novo graveto e toco engolidos, empurrando a resina de dâmara mais para o fundo do seu bucho, misturando-a, fragmentando-a, forçando-a a se dissolver.
Passou-se um quarto de hora e eu o vi concluir seu circuito da fogueira. A essa altura eu esperava que os efeitos da resina já se manifestassem. Segundo meus melhores palpites, o lagarto havia comido seis vezes a dose letal.
Deveria passar depressa pelas etapas iniciais de euforia e mania. Depois viriam o delírio, a paralisia, o coma e a morte. De acordo com todos os meus cálculos, o processo deveria terminar em menos de uma hora, talvez mais cedo, eu esperava.
Senti uma pontada de pesar ao vê-lo cuidar da tarefa de esmagar os pontos de fogo dispersos. Era um animal magnífico. Eu detestava matá-lo, mais ainda do que detestava desperdiçar os mais de 60 crimos que valeria o ophalo.
Porém não havia como negar o que aconteceria se eu deixasse os eventos seguirem seu curso.
Não queria ter a morte de inocentes em minha consciência.
Ele não tardou a parar de comer. Apenas rolou sobre os galhos espalhados, apagando-os. Mexia-se com mais vigor, num sinal de que a dâmara já estava surtindo efeito. Começou a grunhir em tom grave e baixo. Grunhido. Grunhido. Uma língua de fogo escuro. Rolar. Grunhir. Rolar.
Por fim, não restou nada senão o leito de brasas faiscantes. Como nas vezes anteriores, o dracus postou-se em cima delas e se deitou, extinguindo toda a luz no alto do morro.
Passou um momento quieto. Tornou a grunhir. Grunhido. Grunhido. Língua de fogo. Balançou a barriga, afundando-a mais nas brasas, como se estivesse irrequieto. Se aquilo era o começo da mania, estava demorando demais para o meu gosto. Eu achava que a essa altura ele já deveria ter avançado bastante pelo delírio.
Teria subestimado a dose?
À medida que meus olhos se adaptaram lentamente à escuridão, percebi que havia uma outra fonte de luz. A princípio achei que o céu se houvesse desanuviado e que a lua nos espiasse no horizonte. Mas, ao desviar os olhos do dracus e me virar para trás, percebi a verdade.
A sudoeste, a menos de 4 quilômetros dali, Nebron se enchera de luzes de fogueiras. Não era a tênue luz de candeias saindo pelas janelas, mas labaredas altas, saltando por toda parte. Por um momento achei que a cidade se houvesse incendiado.
Então me dei conta do que estava acontecendo: a festa da colheita. Havia uma enorme fogueira no centro da cidade e outras menores do lado de fora das casas, onde as pessoas deviam estar oferecendo sidra aos lavradores cansados.
Eles beberiam e jogariam seus bonecos secudos nas chamas. Bonecos feitos de gavelas de trigo, fardos de cevada, palha ou joio. Bonecos feitos para pegar fogo num clarão luminoso e súbito, num ritual que celebrava o fim do ano e pretendia afastar os demônios.
Atrás de mim, ouvi o dracus grunhir. Olhei para baixo. Tal como acontecera comigo, sua cabeça estava voltada para o lado oposto a Nebron, para as escarpas escuras ao norte.
Não sou uma pessoa religiosa, mas admito que naquela hora rezei. Rezei com empenho a Ardonai e todos os seus anjos, pedindo que o dracus morresse, que deslizasse serenamente para o sono e para a morte, sem se virar e enxergar as fogueiras da cidade.
Esperei longos minutos. De início, achei que o animal estava dormindo, mas, à medida que meus olhos se aguçaram, vi que sua cabeça ondulava ritmicamente para a frente e para trás, para a frente e para trás
Com os olhos mais acostumados à escuridão, as fogueiras de Nebron me pareceram adquirir um brilho mais intenso. Fazia meia hora que o dracus tinha comido a resina. Por que ainda não estava morto?
Tive vontade de lhe atirar o resto da resina, mas não me atrevi. Caso se virasse para mim, ele ficaria de frente para o sul, para a cidade. Mesmo que eu jogasse o saco de resina bem na frente dele, talvez o bicho se virasse para se reacomodar nas brasas. Talvez se...
Nesse momento, ele soltou um rugido, grave e potente como antes. Não tive dúvida de que fora ouvido em Nebron. Não me surpreenderia saber que fora ouvido até mesmo em Torrente. Olhei de relance para Alys. Ela se mexeu, mas não acordou.
O dracus pulou da cama de brasas com todo o jeito de um filhotinho saltitante. As brasas ainda cintilavam em alguns pontos, o que me deu luz suficiente para ver a enorme besta rolar, virar, morder o ar, girar o corpo...
— Não! — exclamei. — Não, não, não!
Ele olhou para Nebron. Vi as labaredas das fogueiras da cidade refletidas em seus olhos enormes. O dracus soltou outra baforada de fogo negro num arco alto. O mesmo gesto de antes: uma saudação ou um desafio.
E então se pôs a correr, partindo encosta abaixo com louca impetuosidade. Ouvi-o abalroando e quebrando as árvores ao passar. Outro rugido.
Acendi minha lamparina portátil de simpatia e me aproximei de Alys, sacudindo-a com força.
— Alys! Alys! Você tem que se levantar!
Ela mal se mexeu.
Levantei suas pálpebras e examinei as pupilas. Nenhuma apresentava a lentidão anterior e ambas se contraíram rapidamente em reação à luz, o que significava que a resina de dâmara já havia perdido o efeito em seu organismo. Seu sono era simples exaustão, nada mais. Só para ter certeza, levantei as duas pálpebras ao mesmo tempo e aproximei a lâmpada mais uma vez.
Sim. Suas pupilas estavam bem. Ela estava bem. Como que para confirmar minha opinião, franziu o cenho, aborrecida, e se contorceu para afastar a luz, resmungando alguma coisa indistinta e decididamente imprópria para uma dama. Não consegui entender tudo, mas as palavras "cafetão" e "cai fora, desgraçado" foram usadas mais de uma vez.
Peguei-a no colo, com cobertores e tudo, e desci com cuidado até o chão. Tornei a ajeitá-la e cobri-la sob o arco de monólitos cinzentos. Ela pareceu despertar um pouco quando a movimentei.
— Alys!
— Goyev? — resmungou ela com a boca sonolenta, os olhos mal se movendo sob as pálpebras.
— Alys, o dracus está indo para Nebron! Tenho que...
Interrompi-me. Em parte por ser óbvio que ela resvalara de novo para a inconsciência, em parte também por não ter plena certeza do que fazer.
Alguma coisa precisava ser feita. Em condições normais, o dracus evitaria as cidades, mas, enlouquecido pela droga e em estado maníaco, eu não fazia idéia de qual seria sua reação às fogueiras da festa da colheita. Se ele devastasse a cidade, a culpa seria minha. Eu tinha que fazer alguma coisa.
Corri para o alto do monólito, peguei as duas sacas e tornei a descer. Emborquei o saco de viagem e o esvaziei no chão. Peguei as flechas da balestra, embrulhei-as na camisa rasgada e as enfiei nele. Guardei ainda a escama dura de ferro, depois enrolei a garrafa de conhaque na saca de oleado para protegê-la e também a coloquei no saco.
Senti a boca seca, tomei um gole rápido de água do cantil, fechei-o de novo e o deixei para Alys. Ela sentiria uma sede terrível ao acordar.
Coloquei o saco de viagem no ombro e o apertei bem nas costas. Depois acendi a lâmpada de simpatia, apanhei a machadinha e desatei a correr.
Tinha um dragão para matar.