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Chapter 123 - CXXII. EXAME

Levamos cerca de duas horas para voltar ao morro dos monólitos cinzentos.

Poderia ter sido mais rápido, porém a mania de Alys estava se acentuando, e toda a sua energia extra mais era um estorvo do que uma ajuda. Qualquer coisa a distraía, e ela saía saltitando por seu próprio caminho quando via algo Interessante.

Atravessamos o mesmo regato que havíamos cruzado antes e, apesar de a água não subir muito acima do tornozelo, Alys insistiu em tomar banho. Lavei-me um pouco, afastei-me a uma distância discreta e fiquei a ouvi-la cantar várias canções picantes. Ela também fez diversos convites não muito sutis, sugerindo que eu fosse a seu encontro na água.

Nem preciso dizer que mantive a distância.

Existem nomes para as pessoas que se aproveitam de mulheres que não estão em pleno controle de suas faculdades, e nenhum desses nomes jamais será justificadamente aplicado a mim.

Ao chegarmos ao pico do morro dos monólitos cinzentos, servi-me do excesso de energia de Alys e a mandei colher lenha, enquanto eu escavava no chão um braseiro ainda maior do que o anterior. Quanto maior a fogueira, mais depressa ela atrairia o dracus.

Sentei-me ao lado da saca de oleado e a abri. A resina exalava um cheiro de terra, de palha de canteiro adocicada e fumarenta.

Alys voltou para o alto do morro e deixou cair uma braçada de lenha.

— E quanto disso aí você vai usar? — perguntou.

— Ainda preciso fazer as contas da quantidade. Isso vai me exigir uma certa adivinhação.

— Dé logo tudo a ele. Sabe, é melhor prevenir do que remediar.

Abanei a cabeça.

— Não há motivo para ir tão longe. Seria mero desperdício. Depois, a resina vira um analgésico potente se corretamente refinada. O remédio poderia ser útil às pessoas...

— ...e o dinheiro seria útil para você.

— Seria — admiti. — Mas, para ser sincero, eu estava pensando mais na sua harpa. Você perdeu sua lira naquele incêndio, certo? Sei como é ficar sem um instrumento.

— Algum dia você já ouviu a história do menino das flechas de ouro? — perguntou Alys. — Sempre me incomodou, quando eu era pequena. É preciso querer muito matar uma pessoa para disparar uma flecha de ouro contra ela. Por que não ficar logo com o ouro e ir para casa?

— Não há dúvida de que isso lança uma nova luz sobre a história — retruquei, olhando para a saca.

Calculei que aquela quantidade de resina de dâmara valeria pelo menos 50 crimos para um boticário. Talvez até 100, dependendo de quanto estives se refinada.

Alys deu de ombros e voltou à floresta para buscar mais lenha. Então iniciei o complexo trabalho de tentar adivinhar quanta resina seria necessária para envenenar um lagarto de 5 toneladas.

Foi um pesadelo de elaboradas estimativas, complicado pelo fato de que eu não tinha como calcular medidas exatas. Comecei por uma conta do tamanho da falange distal do meu dedo mínimo, meu palpite sobre a quantidade de resina que Alys teria efetivamente engolido. Mas ela havia recebido uma dose generosa de carvão, que de fato reduzira isso à metade. Restou-me uma bolota de resina negra pouco maior do que uma ervilha.

Mas essa era só a quantidade necessária para deixar uma garota humana eufórica e cheia de energia. Eu queria matar o dracus. Por isso, tripliquei a dose, depois tornei a triplicá-la, para me certificar. O resultado final foi uma bola do tamanho de uma uva grande e madura.

Calculei que o dracus pesava 5 toneladas, ou 800 pedras. Presumi que Alys pesava oito ou nove pedras; oito, por medida de segurança. Isso significava que eu precisaria de 100 vezes aquela dose do tamanho de uma uva para matar o dracus.

Fiz 10 bolotas do tamanho da uva, depois as juntei todas. Ficou do tamanho de um damasco. Fiz mais nove bolas do tamanho de um damasco e as coloquei no balde de madeira que trouxéramos da plantação de dâmaras.

Alys despejou outra braçada de lenha e espiou dentro do balde.

— Só isso? — perguntou. — Não parece muito.

Tinha razão.

Não parecia muito mesmo, em relação à massa gigantesca do dracus. Expliquei como havia chegado a essa estimativa. Ela assentiu com a cabeça.

— Parece mais ou menos certo, acho. Mas não se esqueça de que ele tem comido árvores há quase um mês. É provável que tenha desenvolvido alguma tolerância.

Concordei e acrescentei ao balde mais cinco bolas do tamanho de um damasco.

— E talvez ele seja mais resistente do que você supõe. Pode ser que a resina funcione de forma diferente nos lagartos.

Tornei a concordar e adicionei outras cinco bolas ao balde. Então, depois de pensar por um minuto., acrescentei mais uma. 

— Isso nos leva a 21. É um bom número. Três vezes sete.

— Não há nada de errado em querermos ter a sorte ao nosso lado — concordou Alys.

— Também queremos que ele morra depressa. Será mais humano para o dracus e mais seguro para nós.

Alys me olhou.

— Então dobramos a dose?

Balancei a cabeça e ela voltou para as árvores, enquanto eu moldava mais 21 bolas e as jogava no balde. Alys retornou com mais madeira quando eu estava enrolando a última.

Compactei a resina no fundo do balde, dizendo:

— Isso deve ser mais do que suficiente. Essa quantidade de ophalo daria para matar duas vezes toda a população de Nebron.

Olhamos para o balde. Ele continha cerca de um terço de toda a resina que havíamos encontrado. O que restava na saca de oleado bastaria para comprar uma meia-harpa para Alys, quitar minha dívida com Devi e ainda sobraria o bastante para vivermos com conforto durante meses. Pensei em comprar roupas novas, um novo encordoamento para o alaúde, uma garrafa de vinho de frutas sereniano...

Pensei no dracus derrubando árvores como se fossem trigo, destroçando-as com seu peso sem a menor cerimônia.

— Devemos duplicar de novo, só para ter certeza — disse Alys, dando eco a meus pensamentos.

Tornei a dobrar a quantidade, enrolando mais 42 bolas de resina, enquanto Alys buscava braçadas e mais braçadas de lenha.

Fiz a fogueira pegar no exato momento em que começou a chover. Nós a construímos maior do que a anterior, na esperança de que chamas mais vivas atraíssem o dracus mais depressa. Eu queria levar Alys de volta à relativa segurança de Nebron o quanto antes.

Por último improvisei uma escada tosca, usando a machadinha e o barbante que havia encontrado. Era feia, mas útil, e deixei-a encostada na lateral do arco de monólitos. Dessa vez Alys e eu teríamos uma rota fácil para a segurança.

Nosso jantar não foi nem de longe tão esplêndido quanto o da noite anterior. Arranjamo-nos com a última sobra do pão já seco, o charque e as derradeiras batatas, assadas à beira do fogo.

Enquanto comíamos, contei a Alys toda a história do incêndio na Ficiaria, em parte porque eu era jovem e homem e queria desesperadamente impressioná-la, mas também porque queria deixar claro que havia faltado ao nosso almoço por circunstâncias que fugiram inteiramente ao meu controle. Ela foi a plateia perfeita, atenta e arquejante em todos os momentos certos.

Eu já não temia que ela morresse de overdose. Depois de juntar uma pequena montanha de lenha, sua mania foi se dissipando, deixando-a numa letargia satisfeita, quase onírica. Ainda assim, eu sabia que os efeitos secundários da droga a deixariam exausta e enfraquecida. Queria vê-la em segurança na cama, em Nebron, para que se recuperasse.

Terminado o jantar, aproximei-me de onde ela havia sentado com as costas apoiadas num dos monólitos. Arregacei as mangas.

— Muito bem, preciso examiná-la — anunciei, com ar pomposo. Ela me deu um sorriso lânguido, com os olhos semicerrados.

— Você sabe mesmo jogar uma conversa sedutora numa garota, não é?

Medi-lhe o pulso na base do pescoço fino. Estava lento, mas regular. Ela recuou um tantinho do meu contato.

— Você está me fazendo cócegas.

— Como se sente? — perguntei.

— Cansada — respondeu, engrolando de leve a voz. — Bem, mas cansada, com um pouco de frio...

Mesmo não sendo inesperado, isso era meio surpreendente, considerando-se que estávamos a pouco mais de um metro das chamas de uma fogueira. Busquei o cobertor extra na sacola e o entreguei a Alys, que se aninhou nele.

Inclinei-me sobre ela para examinar seus olhos. As pupilas ainda estavam dilatadas e meio lentas, porém não mais do que antes. Ela levantou a mão e a pousou em meu rosto.

— Você tem o rosto mais meigo que existe — disse-me, com um olhar sonhador. — É como a cozinha perfeita.

Fiz força para não rir.

Aquilo era o delírio. Alys entraria e sairia dele até que a exaustão profunda a arrastasse para a inconsciência. Se você vir alguém dizendo uma porção de besteiras a si mesmo numa viela de Notrean, é provável que ele não seja realmente maluco, mas apenas um papa-doces perturbado pelo excesso de dâmara.

— Uma cozinha?

— É. Tudo combina, e o açucareiro fica exatamente onde deve ficar.

— Qual é a sensação quando você respira?

— Normal — disse ela, descontraída. — Constrita, mas normal.

Meu coração se acelerou um pouco:

— Que quer dizer com isso?

— Estou com dificuldade de respirar. Às vezes sinto um aperto no peito, é como se respirasse por um pudim — explicou. Deu uma risada. — Eu disse pudim? Queria dizer melado. Como um pudim doce de melado.

Lutei contra a ânsia de lembrar-lhe, zangado, que tinha pedido para ela me avisar se sentisse qualquer coisa errada com a respiração.

— Está difícil respirar agora?

Ela deu de ombros, indiferente.

— Preciso auscultar seu pulmão. Mas não tenho nenhum instrumento, por isso, se você puder desabotoar um pouco a blusa... Terei que encostar o ouvido no seu peito.

Alys revirou os olhos e desabotoou mais botões da blusa do que seria estritamente necessário.

— Ora, essa é inteiramente nova — comentou com ar malicioso, por um instante mais parecida com seu eu normal. — Essa eu nunca tinha visto ninguém tentar.

Virei-me e encostei o ouvido em seu esterno.

— Como está o som do meu coração?

— Lento, mas forte. É um bom coração.

— Está dizendo alguma coisa?

— Nada que eu possa ouvir.

— Escute com mais atenção.

— Respire fundo algumas vezes e não fale. Preciso ouvir sua respiração.

Ouvi-a.

O ar entrou e senti um de seus seios pressionar meu braço. Ela exalou e senti seu hálito morno em minha nuca. Fiquei com o corpo todo arrepiado.

Cheguei a visualizar o olhar reprovador de Armin. Fechei os olhos e procurei me concentrar no que fazia. Ar entrando e saindo: era como ouvir o vento nas árvores. Entrando e saindo: ouvi uma crepitação leve, como papel sendo amarrotado, como um vago suspiro.

Mas não havia umectação nem aborbulhamento.

— O perfume do seu cabelo é gostoso — disse ela.

Endireitei o corpo.

— Você está ótima. Trate de me dizer se isso piorar, ou se tiver uma sensação diferente.

Ela balançou a cabeça amavelmente, com um sorriso sonhador.

  1. auscultar;
    1. MEDICINA
    escutar (determinada parte do organismo) para identificar e diagnosticar os ruídos, aplicando o ouvido diretamente sobre a parte, ou utilizando um aparelho.
    "auscultar o pulmão de um fumante"