O rugido pareceu uma trombeta, se você for capaz de imaginar uma trombeta do tamanho de uma casa e feita de pedra, trovão e chumbo derretido.
Não o senti no peito. Senti-o nos pés, quando a terra tremeu. Por pouco ele não nos fez saltar para fora da própria pele. O alto da cabeça de Alys bateu no meu nariz e cambaleei, cego de dor. Alys não notou, pois estava ocupada em tropeçar e desabar.
Enquanto a ajudava a se levantar, ouvi um estalar distante, e voltamos com cuidado para o posto de observação.
O dracus estava... dando pinotes, saltitando feito um cachorro bêbado, derrubando árvores como um garotinho arrancaria pés de milho no campo.
Prendi a respiração ao vê-lo aproximar-se de um antigo carvalho de uns 100 anos de idade, sólido como um monólito cinzento. O dracus se empinou e jogou as patas dianteiras num dos galhos mais baixos, como se quisesse trepar na árvore. O galho, ele próprio do tamanho de uma árvore, praticamente explodiu.
O dracus tornou a se empinar e arriou o corpo com força sobre a árvore. Observei, certo de que ele estava prestes a se empalar no galho partido, mas a ponta irregular de madeira sólida mal fez uma mossa em seu peito antes de se estilhaçar. Ele se atirou sobre o tronco e este, embora não estalasse, se partiu com o som da descarga de um relâmpago.
O animal se jogou de um lado para outro, pulou e caiu, rolando sobre pedras pontiagudas. Arrotou uma enorme golfada de chamas e investiu de novo contra o carvalho rachado, atacando-o com a cunha cega de sua cabeça. Dessa vez derrubou a árvore, provocando uma explosão de terra e pedras quando as raízes foram arrancadas do chão.
Só consegui pensar na inutilidade de tentar ferir aquela criatura. Ela jogava mais força contra si mesma do que eu jamais teria esperança de reunir.
— Não há maneira de conseguirmos matar aquilo — comentei. — Seria como tentar atacar uma tempestade. Como é que poderíamos machucá-lo?
— Vamos atraí-la para a beira do penhasco — disse Alys sem maiores rodeios.
— Atraí-la? Por que você acha que é uma fêmea?
— Por que você acha que é um macho? — retrucou ela e sacudiu a cabeça, como que para desanuviá-la. — Deixe para lá, não vem ao caso. Sabemos que essa coisa é atraída por fogueiras. É só fazermos uma e pendurá-la num galho. — Apontou para algumas árvores que se debruçavam sobre o penhasco mais abaixo. — Aí, quando ela correr para apagá-la... — Interrompeu-se, imitando com as duas mãos uma coisa caindo.
— Você acha mesmo que isso o machucaria? — perguntei.
— Bem, quando a gente tira uma formiga da mesa com um peteleco, ela não se machuca, embora, para a formiga, deva ser como cair de um penhasco. Mas, se um de nós pulasse de um telhado, iria machucar-se, porque somos mais pesados. Faz sentido supor que as coisas maiores caiam com força ainda maior — disse e lançou um olhar significativo para o dracus. — Ninguém consegue ser muito maior que aquilo.
Ela estava certa, é claro. Estava falando da proporção entre o quadrado e o cubo, embora não soubesse que nome lhe dar.
— Pelo menos deve machucá-lo — prosseguiu Alys. — E aí, sei lá, poderíamos jogar pedras nele, ou alguma coisa. — Olhou para mim. — O que foi? Alguma coisa errada com a minha ideia?
— Não é muito heroica — respondi, com ar indiferente. — Eu esperava algo com um pouco mais de estilo.
— Bem, deixei a armadura e o corcel em casa. Você só está aborrecido porque o seu grande cérebro universitário não conseguiu pensar num jeito, e o meu plano é brilhante — declarou.
Apontou para o pequeno desfiladeiro atrás de nós e disse:
— Faremos a fogueira num daqueles tachos de metal. São largos, rasos e suportam o calor. Havia alguma corda naquele abrigo?
— Eu... — comecei, experimentando a velha sensação de desânimo no peito. — Não. Acho que não.
Alys me deu um tapinha no braço:
— Não fique assim. Quando o bicho sair, examinaremos os destroços da casa. Aposto que há um pedaço de corda por lá. Para ser sincera — continuou, olhando para o dracus —, sei como ela se sente. Também estou com vontade de correr por aí e pular em cima das coisas.
Ela me olhou com lascívia no olhar.
Senti meu rosto avermelhar.
— Essa é a mania de que lhe falei.
Passado um quarto de hora, o dracus saiu do vale.
Só então Alys e eu saímos de nosso esconderijo, eu carregando o saco de viagem, ela com a saca pesada de oleado que continha toda a resina encontrada por nós; quase um alqueire inteiro.
— Dê-me sua pedra-luden — disse ela, arriando a saca. Entreguei-lhe a pedra. — Vá procurar uma corda. Vou lhe dar um presente. — E saiu saltitando de leve, o cabelo negro esvoaçando às costas.
Fiz uma busca rápida na casa, prendendo ao máximo a respiração. Encontrei uma machadinha, louça quebrada, uma barrica de farinha de trigo bichada, um colchão de palha úmido de orvalho e um rolo de barbante, mas nada de corda.
Alys deu um grito radiante no meio das árvores, correu para mim e me pôs uma escama negra na mão. Estava quente do sol e era ligeiramente maior que a dela, porém com a forma mais ovalada que a de gota.
— Muito agradecido, milady.
Ela fez uma pequena mesura encantadora, sorrindo.
— Corda?
Mostrei o rolo de barbante grosseiro:
— Foi o mais próximo que consegui achar. Desculpe.
Alys franziu o cenho, depois deu de ombros.
— Ora, tudo bem. Sua vez de fazer um plano. Você tem alguma estranha e maravilhosa magia da Academia? Alguma força obscura que melhor seria deixar em paz?
Girei a escama nas mãos e pensei no assunto.
Eu tinha cera, e aquela escama faria uma ligação tão boa quanto qualquer fio de cabelo. Eu poderia fazer um boneco imitando o dracus, mas, e daí? Esquentar o pé não incomodaria uma criatura que ficava perfeitamente à vontade deitada num leito de carvão em brasa.
Porém há coisas mais sinistras que podem ser feitas com um boneco. Coisas em que nunca se supôs que um bom arcanista devesse pensar. Coisas com alfinetes e facas, capazes de deixar um homem sangrando, mesmo a léguas de distância.
Malefícios de verdade.
Olhei para a escama em minha mão, considerando-a. Era quase toda de ferro e, na parte central, mais grossa que minha palma. Mesmo com um boneco e uma fogueira quente para gerar energia, eu não sabia se conseguiria atravessar as escamas e ferir aquela coisa.
O pior de tudo era que, se tentasse, não saberia se havia funcionado. Não suportava a ideia de ficar sentado à toa junto a uma fogueira, espetando alfinetes num boneco de cera, enquanto, a quilômetros dali, um dracus enlouquecido rolava nos destroços flamejantes da casa de uma família inocente de lavradores.
— Não — respondi. — Não há qualquer magia em que eu consiga pensar.
— Podemos ir dizer ao guarda da cidade que ele precisa designar uns 12 homens munidos de flechas para virem matar um dragão-lagarto enlouquecido, do tamanho de uma casa.
A solução me ocorreu num lampejo:
— Veneno. Nós temos que envenená-lo.
— Você tem aí dois litros de arsênico? — perguntou ela, cética. — Será que isso seria suficiente para um bicho daquele tamanho?
— Arsênico, não — respondi, cutucando a saca com o pé.
Alys baixou os olhos:
— Oh — disse, arrasada. — E o meu pônei?
— É provável que você tenha de abrir mão do pônei. Mas ainda teremos o bastante para lhe comprar uma meia-harpa. Na verdade, aposto que poderemos ganhar ainda mais dinheiro com o corpo do dracus. As escamas terão enorme valor e os naturalistas da Academia adorarão poder...
— Não precisa me convencer. Sei que é a coisa certa — retrucou ela, olhando para mim e sorrindo. — Além disso, seremos heróis e mataremos o dragão. O tesouro dele é só um bônus.
Dei uma risada.
— Então está certo. Acho que devemos voltar ao morro dos monólitos cinzentos e preparar uma fogueira para atraí-lo.
Alys pareceu intrigada.
— Por quê? Sabemos que ele vai voltar para cá. Por que não acampamos aqui e esperamos?
Abanei a cabeça:
— Olhe quantas dâmaras restaram.
Ela olhou ao redor:
— O dracus comeu todas?
Fiz que sim.
— Se o matarmos esta tarde, poderemos voltar a Nebron à noite. Estou cansado de dormir ao relento. Quero um banho, uma refeição quente e uma cama de verdade.
— Você está mentindo de novo — disse ela, animada. — Sua encenação está melhorando, mas, para mim, você é transparente como um córrego raso. — Cutucou meu peito com um dedo. — Diga-me a verdade.
— Quero levá-la de volta a Nebron. Para o caso de você ter ingerido mais resina do que lhe convém. Eu não confiaria em nenhum médico de lá, mas é provável que eles tenham uns medicamentos que eu poderia usar. Pelo sim, pelo não.
— Meu herói — sorriu Alys. — Você é um amor, mas eu estou ótima.
Estendi a mão e lhe dei um peteleco forte na orelha.
Alys levou a mão ao lado da cabeça, com uma expressão ultrajada.
— Ai... ah... — Pareceu confusa.
— Não dói nada, não é?
— Não.
— A verdade é esta — declarei com ar sério: — acho que você ficará boa, mas não sei ao certo. Não sei quanto daquele troço ainda está penetrando no seu organismo. Daqui a uma hora terei uma ideia melhor, mas, se algo der errado, eu preferiria estar uma hora mais perto de Nebron. Isso significa que não terei de carregá-la por uma distância tão grande — disse, olhando-a nos olhos. — Não brinco com a vida das pessoas com quem me importo.
Ela escutou com uma expressão sombria.
Depois o sorriso tornou a desabrochar em seu rosto:
— Gosto da sua fanfarrice masculina. Gabe-se um pouco mais.