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Chapter 121 - CXX. VENENO PT.2

A expressão de seu rosto passou de furiosa a apavorada num segundo.

Alys abriu a boca e deixou um bolo da coisa escura cair no chão. Depois cuspiu uma saliva espessa e preta. Pus a garrafa de água em suas mãos.

— Bocheche para lavar a boca. Bocheche e cuspa.

Ela pegou a garrafa, e então me lembrei que estava vazia. Nós havíamos bebido a água no almoço.

Saí correndo, atravessei aos trambolhões a passagem estreita, disparei escada acima, peguei o cantil de couro, tornei a descer e voltei para o pequeno desfiladeiro.

Alys estava sentada no chão, muito pálida e de olhos arregalados. Enfiei o cantil em sua mão e ela tomou a água tão depressa que se engasgou; depois teve ânsias de vômito ao cuspi-la.

Enfiei a mão no braseiro e vasculhei bem fundo entre as cinzas até encontrar pedaços de carvão não desfeitos embaixo. Tirei a mão cheia e a sacudi, dispersando quase toda a cinza, depois joguei o punhado de carvão negro para Alys:

— Coma isso — ordenei.

Ela me olhou sem entender.

— Ande! — E sacudi os pedaços de carvão. — Se você não mastigar e engolir isso, vou dar-lhe um murro e enfiá-lo pela sua goela abaixo!

Coloquei um pouco de carvão na minha boca.

— Olhe, está tudo certo. Apenas coma — insisti. Meu tom se abrandou, tornando-se mais suplicante do que imperativo. — Alys, confie em mim.

Ela pegou uns pedaços de carvão e os pôs na boca. Com o rosto pálido e os olhos começando a lacrimejar, mastigou uma porção e bebeu um gole de água para ajudá-la a descer, fazendo uma careta.

— Estão cultivando o maldito ophalo aqui. Sou um idiota por não ter percebido antes.

Alys começou a dizer alguma coisa, mas eu a interrompi.

— Não fale. Continue comendo. Tudo o que conseguir aguentar.

Ela balançou a cabeça com ar solene, os olhos arregalados. Mastigou, engasgou-se um pouco e engoliu o carvão com outro gole d'água. Comeu umas 12 porções em sucessão rápida, depois tornou a lavar a boca.

— O que é ophalo? — perguntou baixinho.

— Uma droga. Aquelas são dâmaras. Você acabou de encher a boca de resina de dâmara — respondi, e me sentei a seu lado com as mãos trêmulas. Espalmei-as nas pernas para disfarçar.

Diante disso, ela se calou. Todo mundo conhecia a resina de dâmara. Em Notrean, tinham de chamar os magarefes nos abatedouros para buscar os cadáveres dos papa-doces que morriam de overdose nas vielas e portas das Docas.

— Quanto você engoliu?

— Eu só estava mastigando, como se fosse um caramelo — respondeu Alys, tornando a empalidecer. — Ainda tenho um pouco preso nos dentes.

Apontei-lhe o cantil:

— Continue a lavar a boca.

Ela bochechou a água de um lado para outro antes de cuspir e repetir o processo. Procurei calcular a quantidade da droga que ela teria introduzido no organismo, porém as variáveis eram muitas: eu não sabia quanto ela havia engolido, quão refinada era essa resina e se os cultores tinham tomado alguma providência para filtrá-la ou purificá-la.

Alys remexeu a boca enquanto a língua deslizava sobre os dentes.

— Pronto, estou limpa.

Forcei uma risada.

— Você está tudo, menos limpa. Está com a boca toda preta. Parece uma menina que andou brincando no depósito de carvão.

— Você não está muito melhor. Parece um limpador de chaminés — disse, tocando em meu ombro nu. Eu devia ter rasgado a camisa nas pedras, na correria para buscar o cantil. Alys me deu um sorriso pálido, que nem de longe chegou a seus olhos assustados. — Por que estou com a barriga cheia de carvão?

— O carvão é como uma esponja química. Absorve drogas e venenos.

Ela se animou um pouco:

— Todos eles?

Considerei a possibilidade de mentir, mas pensei melhor:

— Quase todos. Você o comeu bem depressa. Ele absorverá grande parte do que você engoliu.

— Quanto?

— Umas 6 partes em 10. Um pouco mais, espero. Como está se sentindo?

— Apavorada. Trêmula. Mas, fora isso, não me sinto diferente.

Remexeu-se, nervosa, no lugar onde estava sentada e pôs a mão na rodela pegajosa de resina que eu arrancara dela. Atirou-a longe e limpou a mão nas calças, tensa.

— Quanto tempo até nós sabermos? — indagou.

— Não sei quanto eles refinaram a droga. Se ainda estiver sem refino, demorará mais para se disseminar pelo seu organismo. Isso é bom, porque os efeitos se estenderão por um período mais longo.

Apalpei o pescoço para sentir seu pulso. Estava disparado, o que não queria dizer nada. O meu também estava.

— Olhe para cá — instruí, com a mão levantada, e observei seus olhos.

As pupilas demoraram a reagir à luz. Pus a mão na sua cabeça e, a pretexto de erguer um pouco sua pálpebra, apertei com força o machucado na têmpora. Ela não recuou nem deu o menor sinal de ter sentido dor.

— Antes eu achava que era minha imaginação — disse, olhando para mim. — Mas seus olhos mudam mesmo de cor. Normalmente são de um verde vivo, com um anel dourado por dentro...

— Eu os herdei da minha mãe.

— Mas andei observando. Ontem, quando você quebrou a alavanca da bomba, eles ficaram com um verde opaco, sem brilho. E, quando o porqueiro fez aquele comentário sobre os Therion, ficaram escuros, só por um instante. Pensei que fosse apenas a luz, mas agora percebo que não é.

— Fico surpreso por você ter notado. A única outra pessoa que já havia observado isso foi uma velha professora minha. Ela era arcanista, o que significa que a função dele, na verdade, era notar coisas.

— Bem, é minha função notá-las em você — disse ela, inclinando um pouco a cabeça. — As pessoas devem ficar perturbadas com o seu cabelo. É tão luminoso! É muito... muito perturbador. E o seu rosto é realmente expressivo. Você sempre o controla, até mesmo o jeito de seus olhos se portarem. Mas não a cor — acrescentou, com um vago sorriso. — Agora eles estão pálidos. Feito geada verde. Você deve estar sentindo um medo terrível.

— Acho que é só a velha luxúria — retruquei no meu tom mais grosseiro. — Não é sempre que uma moça bonita me deixa chegar tão perto.

— Você sempre diz as mais lindas mentiras — fez ela, desviando os olhos de mim para suas mãos. — Eu vou morrer?

— Não — respondi com firmeza. — De jeito nenhum.

— Você pode... — disse, levantando a cabeça e tornando a sorrir para mim, com os olhos úmidos, mas não em lágrimas. — Pode me dizer isso em voz alta?

— Você não vai morrer — repeti, ficando de pé. — Venha, vamos ver se o nosso amigo lagarto já foi embora.

Eu queria mantê-la distraída e em movimento, e assim ambos tomamos outro gole de água e voltamos para o mirante. O dracus dormia deitado ao sol.

Aproveitei a oportunidade para enfiar o cobertor e o charque em meu saco de viagem.

— Antes eu me sentia culpado por roubar dos mortos, mas agora...

— Ao menos agora sabemos por que ele estava escondido no meio de lugar nenhum, com uma balestra, um posto de observação e tudo o mais. Um pequeno mistério resolvido.

Comecei a amarrar a sacola de viagem, mas, pensando melhor, guardei as flechas da balestra também.

— Para que serve isso? — perguntou Alys.

— Elas valem alguma coisa. Estou endividado com uma pessoa perigosa. Qualquer lumen vem a calhar... — Interrompi-me, com a cabeça em disparada.

Alys me olhou e percebi que sua mente havia chegado à mesma conclusão:

— Você sabe quanto valeria toda essa resina? — perguntou.

— Na verdade, não — respondi, pensando nos 30 tachos, cada um com uma bolacha de resina preta e pegajosa congelada no fundo, do tamanho de um prato de jantar. — Calculo que seja muito. Muito mesmo.

Alys oscilou sobre os pés, para a frente e para trás:

— Vanitas, não sei como você se sente a esse respeito. Já vi garotas se viciarem nesse troço. Preciso de dinheiro — explicou, com uma risada amarga. — No momento, nem tenho outra muda de roupa. — Fez um ar preocupado. — Mas não sei se preciso tanto dela.

— Eu estava pensando nos boticários — apressei-me a dizer. — Eles a refinariam para transformá-la em remédio. É um analgésico potente. O preço não seria nem de longe tão bom quanto se procurássemos o outro tipo de pessoas, mas, ainda assim, meio pão...

Alys abriu um sorriso largo:

— Eu adoraria meio pão. Especialmente já que o safado enigmático do meu mecenas parece ter desaparecido.

Descemos novamente ao desfiladeiro. Dessa vez, ao transpor a passagem estreita, vi os tachos em evaporação sob um prisma diferente. Agora cada um equivalia a uma moeda pesada em meu bolso. A anuidade seguinte na Academia, roupas novas, a libertação da dívida com a Devi...

Notei que Alys olhava para os tachos com o mesmo fascínio, embora seus olhos estivessem um pouco mais vidrados do que os meus:

— Eu poderia levar uma vida confortável com isso por um ano. E sem ficar endividada com ninguém.

Fui até o galpão das ferramentas e peguei um raspador para cada um de nós. Após alguns minutos de trabalho, havíamos juntado todos os pedaços negros e pegajosos num único bolo, do tamanho de um melão.

Alys estremeceu um pouco, depois me olhou, sorridente. Estava com as bochechas vermelhas.

— De repente, sinto-me realmente muito bem — disse. Juntou os braços no peito, esfregando as mãos para cima e para baixo. — Muito, muito bem. Acho que não é só a ideia de todo esse dinheiro.

— É a resina. É bom sinal ela ter demorado todo esse tempo para surtir efeito. Eu ficaria preocupado se tivesse acontecido mais depressa — disse-lhe. Olhei-a com ar sério. — Agora, escute. Você tem que me dizer se sentir algum peso no peito, ou se tiver dificuldade para respirar. Desde que nenhuma dessas coisas aconteça, você ficará ótima.

Ela assentiu com a cabeça, inspirou fundo e soltou o ar:

— Santo anjo celeste, eu estou ótima! — exclamou. Fitou-me com uma expressão ansiosa, mas o sorriso largo continuava a aparecer. — Eu vou ficar viciada por conta disso?

Abanei a cabeça e ela deu um suspiro, aliviada.

— Sabe o que é mais incrível? Estou com medo de ficar viciada, mas não me importo por estar com medo. Nunca me senti desse jeito. Não admira que o nosso amigão escamado continue voltando para buscar mais...

— Ardonai misericordioso! — exclamei. — Eu nem tinha pensado nisso. É por isso que ele estava tentando entrar aqui às patadas. Sente o cheiro da resina. Faz umas duas onzenas que ele vem comendo as árvores, três ou quatro por dia.

— O maior papa-doces de todos voltando para buscar sua dose. — Alys riu e depois fez uma expressão horrorizada. — Quantas árvores sobraram?

— Duas ou três — respondi, pensando nas fileiras de buracos vazios e tocos quebrados. — Mas talvez ele tenha comido mais uma depois que viemos para cá.

— Você já viu um papa-doces quando bate a secura da droga? — ela perguntou, com o rosto abalado. — Eles ficam doidos.

— Eu sei — respondi, pensando na moça que vira dançar nua na neve em Notrean.

— O que acha que vai acontecer quando acabarem as árvores?

Passei um bom momento pensando.

— Ele vai procurar mais, e ficará desesperado. E sabe que o último lugar em que encontrou as árvores tinha uma casinha com cheiro de gente... Teremos que matá-lo.

— Matá-lo? — disse Alys, rindo, depois tornou a pôr as mãos na boca. — Sem nada além da minha linda voz de cantora e da sua fanfarrice masculina? — Começou a rir, descontrolada, apesar de tapar a boca com as duas mãos. — Puxa, desculpe, Vanitas. Quanto tempo ficarei assim?

— Não sei. Os efeitos do ophalo são a euforia...

— Confere — fez ela, com uma piscadela risonha para mim.

— Seguida pela mania, um pouco de delírio, se a dose tiver sido grande o bastante, e depois a exaustão.

— Talvez eu durma uma noite inteira para variar. Você não pode estar falando sério sobre matar essa coisa. O que vai usar? Um graveto pontudo?

— Não posso deixá-lo solto por aí, desvairado. Nebron fica a apenas 8 quilômetros daqui. E há fazendas menores ainda mais perto. Pense no estrago que ele faria.

— Mas como? — repetiu ela. — Como é que se mata uma coisa dessas?

Virei-me para o abrigo minúsculo.

— Se tivermos sorte, esse sujeito terá tido o bom senso de comprar uma balestra de reserva... — Comecei a escavacar, atirando as coisas porta afora. Pás de mexer a seiva, baldes, raspadores, uma pá, mais baldes, um barril...

O barril era mais ou menos do tamanho de um barril de cerveja. Levei-o para fora do abrigo e tirei a tampa. No fundo estava um saco de oleado com uma grande massa viscosa e negra de resina de dâmara pelo menos quatro vezes maior do que a porção que Alys e eu tínhamos raspado.

Tirei o saco e o pousei no chão, abrindo-o para que ela olhasse. Alys espiou, soltou um arquejo abafado e deu uns pulinhos:

— Agora posso comprar um pônei! — exclamou, rindo.

— Pônei eu não sei — rebati, fazendo contas mentalmente —, mas acho que, antes de dividirmos o dinheiro, devemos comprar uma boa meia-harpa para você com isso. Não uma lira lamentável.

— Sim! — concordou ela, lançando os braços em volta de mim num abraço delirante, encantado. — E para você vamos comprar... — Interrompeu-se, olhando-me com curiosidade, o rosto enegrecido a centímetros do meu. — O que você quer?

Antes que eu pudesse dizer ou fazer alguma coisa, o dracus rugiu.

  1. magarefe;
    1. Aquele que realiza o abate de bovinos, bubalinos, suínos, ovinos, caprinos e aves. Corta, desossa e identifica as peças.