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Chapter 120 - CXIX. VENENO PT.1

Corremos atrapalhados para a base da escarpa, tropeçando em sulcos e saltando sobre árvores caídas. Ouvi o grunhido ribombante de trovão atrás de nós. Dei uma espiada, mas o dracus ainda estava em algum lugar entre as árvores.

Chegamos à base do penhasco e comecei a procurar uma parte em que pudéssemos subir. Depois de um minuto prolongado e frenético, emergimos de uma densa moita e nos deparamos com uma faixa de terra violentamente revolvida. O dracus andara escavando por ali.

— Olhe! — exclamou Alys, apontando para uma fenda na escarpa, uma fresta profunda de cerca de meio metro de largura. Era o bastante para uma pessoa se espremer por ela, mas estreita demais para o enorme lagarto. Havia marcas de garras afiadas na escarpa e pedaços de pedra espalhados em volta da terra revolvida.

Alys e eu nos esprememos pela abertura estreita. Era escura, iluminada apenas pela pequena nesga de céu azul lá no alto. Enquanto me esgueirava, fui obrigado a virar de lado em alguns pontos para conseguir passar. Quando tirei as mãos das paredes, tinha as palmas cobertas de fuligem negra. Aparentemente, não conseguindo entrar, o dracus havia soprado fogo na passagem estreita.

Depois de apenas uns quatro metros, a fenda se alargou ligeiramente.

— Há uma escada ali — disse Alys. — Vou subir. Se aquela coisa cuspir fogo em nós, será como água de chuva num rego.

Ela subiu e eu a segui. A escada era tosca, mas robusta, e depois de uns 6 metros deu num pedaço de terreno plano. Pedras escuras nos cercavam por três lados, mas tinha-se uma visão clara da cabana destruída e das árvores destroçadas lá embaixo. Havia um caixote de madeira encostado na muralha.

— Você está vendo ele? — perguntou Alys, olhando para baixo. — Não vá dizer que eu ralei meus joelhos para fugir de coisa nenhuma.

Ouvi um rugido surdo e senti uma onda de ar quente subir por minhas costas. O dracus tornou a grunhir e outra língua de fogo atravessou a fenda estreita abaixo de nós. Depois veio um som repentino e enfurecido, como o de unhas na lousa, quando o dracus arranhou loucamente a base da escarpa.

Alys me encarou.

— Inofensivo!

— Ele não está atrás de nós. Você viu. Andou arranhando aquela muralha muito antes de chegarmos aqui.

Alys sentou-se.

— Que lugar é este?

— Uma espécie de mirante. Daqui se avista o vale inteiro.

— É óbvio que isto é um mirante — resmungou ela. — Estou falando do lugar todo.

Abri o caixote de madeira. Dentro havia um cobertor de lã grosseira, um cantil de couro cheio d'água, um pedaço de charque e uma dúzia de flechas de balestra, muito bem afiadas.

— Também não sei — admiti. — Talvez o sujeito fosse um fugitivo.

Cessou o barulho lá embaixo. Alys e eu espiamos o vale destruído. O dracus acabou se afastando. Deslocou-se devagar, o corpo cavando um sulco irregular no chão.

— Ele não está andando depressa como ontem — comentei. — Vai ver que está doente.

— Talvez esteja exausto depois de um dia cansativo tentando nos achar e nos matar — Alys disse e olhou para mim. — Sente-se. Você está me deixando nervosa. Não vamos a lugar nenhum por algum tempo.

Sentei-me e ficamos observando o dracus arrastar-se lentamente até o meio do vale. Aproximou-se de uma árvore de uns nove metros de altura e a derrubou, sem esforço perceptível.

Pôs-se a comê-la, a começar pelas folhas. Depois mastigou galhos da grossura do meu pulso com a facilidade com que uma ovelha comeria um punhado de capim. Quando o tronco enfim ficou nu, presumi que ele teria de parar. Mas o bicho simplesmente cravou a boca plana numa das extremidades e girou o pescoço maciço. O tronco rachou e se partiu, deixando o dracus com um pedaço grande mas cabível na boca, o qual ele engoliu mais ou menos inteiro.

Alys e eu aproveitamos a oportunidade para fazer nossa própria refeição. Apenas um pouco de pão sem fermento, linguiça e as sobras das cenouras. Hesitei em confiar na comida do caixote, já que havia uma clara possibilidade de que o sujeito que morava lá fosse uma espécie de maluco.

— Ainda me admira que ninguém daqui jamais o tenha visto — disse Alys.

— É provável que as pessoas tenham tido uns vislumbres. O porqueiro disse que todos sabem que há uma coisa perigosa nesta floresta. Devem ter apenas presumido que era um demônio, ou qualquer bobagem desse tipo.

Alys tornou a me fitar, com uma expressão divertida:

— Assim diz o sujeito que veio à cidade procurar o Sombraim.

— Isso é diferente — protestei, acalorado. — Não saio por aí contando histórias de fadas e tocando no ferro para me proteger. Estou aqui para descobrir a verdade. Para obter informações vindas de uma fonte mais confiável do que relatos de terceira mão.

— Não tive a intenção de melindrá-lo — disse Alys, surpresa. Tornou a olhar para baixo. — Ele é mesmo um animal incrível.

— Quando li sobre ele, não acreditei realmente na história do fogo — admiti. — Pareceu-me meio exagerada.

— Mais exagerada que um lagarto do tamanho de uma carroça?

— Isso é só uma questão de tamanho. Mas o fogo não é uma coisa natural. Que mais não seja, onde ele o guarda? É óbvio que não fica em combustão por dentro.

— Não explicaram isso no livro que você leu?

— O autor deu uns palpites, mas foi só. Não conseguiu capturar nenhum para dissecá-lo.

— E compreensível — comentou Alys enquanto observávamos o dracus derrubar com displicência outra árvore e também começar a comê-la. — Que tipo de rede ou jaula conseguiria contê-lo?

— É, mas ele tinha umas teorias interessantes. Você sabia que o estrume de gado emite um gás que é combustível?

Alys virou-se para mim e riu.

— Não. É mesmo?

Fiz que sim, sorrindo.

— A meninada do interior risca fósforos nos montes de esterco fresco para vê-lo pegar fogo. É por isso que os lavradores têm que tomar cuidado quando armazenam estrume. O gás pode se acumular e explodir.

— Sou uma garota urbana — disse ela, dando um risinho. — Não fazíamos esse tipo de brincadeira.

— Pois perdeu uma grande diversão. O autor sugeriu que o dracus simplesmente armazena esse gás em algum tipo de bexiga. A grande questão é como o acende. O autor teve uma ideia inteligente sobre o arsênico. O que faz sentido, em termos químicos. O arsênico e o gás de carvão explodem se alguém juntá-los. É por isso que vemos clarões nos pântanos. Mas isso me parece meio absurdo. Se o dracus tivesse muito arsênico no organismo, ele se envenenaria.

— Aham — concordou Alys, ainda observando o animal lá embaixo.

— Mas, pensando bem, só precisa de uma pequena faísca para acender o gás. E há muitos animais capazes de criar força galvânica suficiente para produzir uma faísca. A enguia-grampo, por exemplo, consegue gerar o bastante para matar um homem e só tem cerca de meio metro. — Apontei para o dracus. — Uma coisa grande como aquela com certeza geraria força suficiente para uma centelha.

Eu tinha esperança de que Alys se impressionasse com minha engenhosidade, mas ela parecia distraída com a cena lá embaixo.

— Você não está realmente me ouvindo, está?

— Não muito — respondeu ela, virando-se e me dando um sorriso. — Quer dizer, para mim faz pleno sentido. Ele come madeira. Madeira é combustível. Por que ele não cuspiria fogo?

Enquanto eu tentava pensar numa resposta, Alys apontou para o vale.

— Olhe aquelas árvores lá adiante. Elas lhe parecem estranhas?

— Afora estarem destruídas e quase todas comidas? Não especialmente.

— Veja como estão dispostas. É difícil perceber, porque o lugar está uma bagunça, mas é como se elas crescessem em fileiras. Como se alguém as tivesse plantado.

Depois que ela o havia assinalado, observei que grande parte das árvores realmente parecia ter crescido em fileiras. Uma dúzia de fileiras com três arvores em cada uma. Agora, com a chegada do dracus, a maioria não passava de tocos ou buracos vazios.

— Por que alguém plantaria árvores no meio da floresta? — refletiu. — Não é um pomar... Você viu alguma fruta?

Abanei a cabeça.

— E aquelas são as únicas árvores que o dracus andou comendo. Há uma grande clareira bem no meio. As outras ele derruba, mas aquelas ele derruba e come — disse, e espremeu os olhos. — Que tipo de árvore ele está comendo?

— Daqui não dá para eu dizer. Bordo? Será que ele gosta de doces?

Olhamos um pouco mais, depois Alys ficou de pé:

— Bem, o importante é que ele não virá correndo cuspir fogo nas nossas costas. Vamos ver o que há na outra ponta daquela trilha. Desconfio que ali há uma saída daqui.

Descemos a escada e seguimos lentamente pela trilha sinuosa na base da fenda estreita. Ela ziguezagueou por mais uns 6 metros e desembocou num pequeno desfiladeiro com paredes íngremes se elevando por todos os lados.

Não havia nenhuma saída, mas era óbvio que o lugar vinha sendo usado. As plantas tinham sido retiradas, deixando um piso de terra batida. Havia dois fornos compridos escavados no chão e, acima deles, apoiados em plataformas de tijolos, alguns tachos de metal. Chegavam a lembrar as tinas de derretimento usadas pelos abatedores de animais na produção de sebo. Mas esses eram largos, planos e rasos, como assadeiras para enormes tortas.

— Ele gosta mesmo de doces! — riu-se Alys. — Esse sujeito fazia balas de bordo aqui. Ou xarope.

Cheguei mais perto para ver. Havia, espalhados, baldes do tipo ideal para se carregar a seiva do bordo para ser fervida. Abri a porta de um galpãozinho semidestruído e vi mais baldes, longas pás de madeira para mexer a seiva, raspadores para tirá-la dos tachos...

Mas alguma coisa estava errada: havia uma profusão de bordos-doces na floresta. Não fazia sentido cultivá-los. E por que escolher um local tão isolado?

Talvez o sujeito fosse simplesmente maluco. Peguei ao acaso um dos raspadores e o examinei. A ponta tinha uma mancha escura, como se houvesse raspado alcatrão...

Argh! — exclamou Alys às minhas costas. — É amargo. Acho que eles deixaram queimar.

Virei-me e a vi parada junto a um dos braseiros escavados no chão. Tirara uma rodela grande de material pegajoso do fundo de um dos tachos e dera uma mordida. Era um material preto, mas não tinha o tom de âmbar escuro do xarope ou do caramelo de bordo.

De repente compreendi o que de fato acontecia naquele lugar.

— Não! — gritei.

Ela me olhou intrigada.

— Não é tão ruim assim — disse, com as palavras abafadas na boca pegajosa. — É estranho, mas não chega a ser desagradável.

Aproximei-me e arranquei a rodela de sua mão com um tapa. Seus olhos me fuzilaram de raiva.

— Cuspa isso! — gritei. — Já! É veneno!