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Chapter 119 - CXVIII. DRAGÃO PT.3

Eram poucos quilômetros até o local em que a tênue linha de fumaça erguia-se da floresta, mas demoramos a chegar. Estávamos doloridos e cansados, e nenhum de nós sentia-se esperançoso quanto ao que encontraria ao chegarmos a nosso destino.

Enquanto caminhávamos, dividimos minha última maçã e metade do pão sem fermento que sobrara. Cortei tiras de casca de bétula, que Alys e eu mordiscamos e mastigamos. Após cerca de uma hora, os músculos de minhas pernas ficaram suficientemente relaxados para que andar já não fosse doloroso.

Ao chegarmos mais perto, nosso progresso diminuiu. As colinas onduladas foram substituídas por penhascos íngremes e encostas cobertas por pedaços de rocha. Tivemos de escalar ou fazer o longo percurso que os contornava, às vezes precisando retroceder até encontrar uma passagem.

E houve contratempos: topamos com um trecho de erva-gril madura que nos reteve por quase uma hora. Não muito depois, encontramos um regato e paramos para beber água, descansar e tomar banho. Mais uma vez minha esperança de um encontro romântico como nos livros de histórias foi frustrada pelo fato de que o córrego não tinha mais que uns 15 centímetros de profundidade. Não era propriamente ideal para um banho.

Já era o começo da tarde quando enfim chegamos à fonte da fumaça, e o que encontramos não foi nada do que havíamos esperado.

Tratava-se de um vale isolado escondido no meio dos penhascos. Digo "vale", porém, na verdade, mais parecia um degrau gigantesco entre os sopés das montanhas. De um lado erguia-se uma alta muralha escarpada de rocha escura, do outro descia um despenhadeiro íngreme.

Alys e eu chegamos ali por dois ângulos diferentes e inacessíveis até finalmente descobrirmos um modo de entrar. Por sorte, era um dia sem vento e a fumaça subia reta como uma flecha em direção ao límpido céu azul. Não fosse ela para nos guiar, é provável que nunca tivéssemos encontrado o local.

Em algum momento ele devia ter sido um trechinho aprazível de floresta, mas agora era como se um tornado o houvesse atingido: árvores quebradas, arrancadas pela raiz, queimadas e esmigalhadas; pedras e enormes sulcos de terra expostos, cavados por toda parte, como se um lavrador gigantesco tivesse enlouquecido por completo ao arar seu campo.

Dois dias antes eu teria sido incapaz de imaginar o que causaria tamanha destruição; mas depois do que vira na noite anterior...

— Pensei que você tivesse dito que eles eram inofensivos, não? — perguntou Alys, virando-se para mim. — Ele teve uma explosão de cólera aqui.

Começamos a andar por entre os destroços. A fumaça branca se elevava do buraco deixado por um grande sicômoro derrubado. O fogo não passava de um punhado de brasas ardendo no fundo da cova, onde antes tinham estado as raízes.

Com a ponta da bota chutei mais uns torrões para dentro do buraco.

— Bem, a boa notícia é que o seu mecenas não está aqui. A má notícia... — Interrompi-me, respirando fundo. — Está sentindo esse cheiro?

Alys também respirou fundo e fez que sim, franzindo o nariz. Subi no sicômoro caído e olhei em volta. O vento virou e o cheiro veio mais forte: alguma coisa morta e putrefeita.

— Pensei que você tivesse dito que eles não comem carne — comentou Alys olhando ao redor com ar preocupado.

Pulei da árvore e voltei à muralha escarpada. Encostada nela havia uma pequena cabana de madeira desfeita em lascas. O cheiro de podridão se intensificou.

— Certo. Isso não me parece nada inofensivo — disse Alys, examinando os destroços.

— Não sabemos se o dracus foi responsável por isso. Se o Sombraim atacou aqui, pode ser que o dracus tenha sido atraído pelo fogo e causado a destruição ao apagá-lo.

— Você acha que foi o Sombraim? Isso não combina com coisa alguma que eu tenha ouvido sobre o grupo. Dizem que eles atacam feito um relâmpago, depois desaparecem. Não fazem visitas, preparam fogueiras e voltam para resolver umas coisinhas.

— Não sei o que pensar. Mas duas casas destruídas... — Comecei a vasculhar os destroços. — Parece razoável haver alguma relação entre elas.

Alys respirou fundo. Acompanhei a linha de seu olhar e vi um braço se projetando por baixo de vários troncos pesados. Cheguei mais perto. As moscas zumbiam e tapei a boca, na tentativa inútil de barrar o mau cheiro.

— Faz umas duas onzenas que ele morreu — afirmei. Curvei-me e peguei um emaranhado de madeira estilhaçada e metal. — Olhe só para isto.

— Traga aqui que eu olho.

Levei-o até onde ela estava. A coisa fora destroçada a ponto de ficar quase irreconhecível.

— Uma balestra — comentei.

— Não teve grande serventia para esse homem.

— A pergunta, para começo de conversa, é por que ele a possuía — retruquei. Examinei o pedaço grosso de aço azul da barra transversal. — Isto não era um arco de caça. Era o que se usa para matar um homem de armadura do outro lado do campo. Essas armas são ilegais.

Alys grunhiu:

— Essas leis não se aplicam por aqui. Você sabe disso.

Dei de ombros.

— Persiste o fato de que era um equipamento caro. Por que uma pessoa que mora numa cabana minúscula, com piso de terra batida, teria uma balestra que vale 10 crimos?

— Talvez ele soubesse do dracus — disse Alys, olhando nervosamente ao redor. — Eu não me incomodaria de ter uma balestra neste momento.

Abanei a cabeça.

— Os dracus são tímidos. Ficam longe das pessoas.

Alys fitou-me com um olhar franco e apontou a destruição da cabana.

— Pense em todas as criaturas selvagens da floresta — insisti. — Todas essas criaturas evitam o contato com as pessoas. Você mesma disse que nunca tinha sequer ouvido falar do dracus. Há uma razão para isso.

— Será que ele é hidrófobo?

Isso me fez estacar.

— Está aí uma ideia apavorante — declarei, correndo os olhos pelo cenário de ruína. — Como é que se sacrifica uma coisa daquelas? Será que lagarto sequer pega hidrofobia?

Alys oscilou sobre um pé e outro, incomodada, lançando olhares tensos em volta.

— Há mais alguma coisa que você queira ver aqui? Porque, por mim, já dei este lugar por encerrado. Não quero estar aqui quando aquilo voltar.

— Algo dentro de mim acha que devíamos proporcionar um enterro decente a esse sujeito...

Alys abanou a cabeça:

— Não vou demorar tanto assim por aqui. Podemos contar na cidade e alguém virá cuidar do assunto. Aquela coisa pode voltar a qualquer momento.

— Mas por quê? Por que será que ele fica voltando aqui? Aquela árvore ali está morta há vários dias, mas aquela outra acabou de ser arrancada há apenas uns dois dias...

— E que importância tem isso para você? — perguntou Alys.

— O Sombraim. Quero saber por que o grupo esteve aqui. Será que eles controlam o dracus?

— Não acho que tenham estado aqui. Na fazenda dos Mathen, até pode ser. Mas isso aqui é apenas obra de um lagarto-boi hidrófobo — disse ela, perscrutando meu rosto demoradamente. — Não sei o que você veio procurar, mas acho que não vai encontrar.

Abanei a cabeça, olhando ao redor.

— Isso tem que estar ligado à fazenda.

— Acho que você quer que esteja ligado — rebateu ela, em tom meigo. — Mas esse sujeito está morto há muito tempo. Você mesmo o disse. Está lembrado do batente da porta e da gamela de água da fazenda? — indagou, curvando-se e batendo com os nós dos dedos num dos troncos da cabana destruída. O som produzido foi sólido.

— E olhe para a balestra: o metal não está enferrujado. Eles não estiveram aqui.

Senti o coração afundar no peito. Ela estava certa. No fundo, eu sabia que vinha me agarrando a esperanças vãs. Mesmo assim, achava errado desistir sem tentar tudo o que fosse possível.

Alys segurou minha mão:

— Ande, vamos — disse, sorrindo e me puxando. Sua mão transmitiu uma sensação fria e lisa à minha. — Há coisas mais interessantes para fazer do que caçar...

Um barulho alto de algo se estilhaçando veio das árvores: kkkraak-ke-krrk. Alys largou minha mão e se virou para o lugar de onde viéramos.

— Não... — disse. — Não, não, não...

A ameaça súbita do dracus me fez recobrar o foco.

— Nós estamos bem — declarei, olhando em volta. — Ele não pode subir, é pesado demais.

— Subir em quê? Numa árvore? Essas ele está derrubando para se distrair!

— Nos penhascos. — Apontei para a muralha escarpada que delimitava o pequeno trecho de floresta. — Venha...

  1. sicômoro;
    1. Ficus sycomorus, conhecida pelos nomes comuns de sicómoro, sicômoro, figueira-doida ou figueira-do-faraó, é uma espécie de figueira de raízes profundas e ramos fortes que produz figos de qualidade inferior, cultivada no Médio Oriente e em partes da África há milénios.
  2. hidrófobo;
    1. aquele que sofre de hidrofobia (raiva), uma doença infecciosa aguda que leva à morte, causada por um vírus.