— É um dragão — sussurrou Alys. — Que Ardonai nos defenda e proteja! É um dragão!
— Não é um dragão. Dragões não existem.
— Olhe para ele! — exclamou ela, sibilando. — Está bem ali! Olhe para a porcaria do dragão gigantesco!
— E um dracus — retruquei.
— É grande para diabo — insistiu ela, com um toque de histeria na voz. — É uma porcaria de um dragão enorme que virá aqui para nos devorar.
— Ele não come carne. É herbívoro. É como uma vaca enorme.
Alys me olhou e começou a rir. Não um riso histérico, mas o riso irrefreável de quem acaba de ouvir uma coisa tão engraçada que não consegue deixar de gargalhar. Pôs as mãos na boca e se sacudiu de rir, e o único som produzido foi uma bufadela baixa que lhe escapou por entre os dedos.
Houve outro clarão de fogo negro lá embaixo. Alys se imobilizou no meio da risada, depois tirou as mãos da boca. Fitou-me de olhos arregalados e disse baixinho, com um leve tremor na voz:
— Muuuuu.
Nós dois passamos de apavorados a seguros tão depressa que estávamos prestes a gargalhar de puro alívio, de qualquer modo. Assim, quando ela tornou a se contorcer de rir, abafando o som com as mãos, comecei a gargalhar também e sacudia a barriga na tentativa de não fazer barulho. E lá ficamos, feito duas crianças a dar risadas, enquanto, mais abaixo, a enorme fera grunhia e farejava nossa fogueira, soltando de tempos em tempos baforadas de chamas.
Passados uns bons minutos, recuperamos o autocontrole. Alys enxugou as lágrimas e respirou fundo, trêmula. Deslizou para mais perto, até ficar com o lado esquerdo do seu corpo bem encostado no lado direito do meu.
— Escute — disse-me, baixinho, enquanto espiávamos pela borda da pedra. — Aquela coisa não pasta, ela é imensa. Jamais conseguiria arranjar alimento suficiente. E olhe para aquela boca. Veja aqueles dentes.
— Exato. São planos, não pontiagudos. Ele come árvores. Árvores inteiras. Veja como é grande. Onde teria possibilidade de encontrar carne suficiente? Teria de comer 10 cervos por dia. Seria impossível sobreviver!
Alys virou a cabeça para mim:
— Diabos, como você sabe disso?
— Li sobre o assunto na Academia, num livro chamado Os hábitos de acasalamento do Dracus comum. Ele usa o fogo para se exibir na busca de parceiras. É como a plumagem de um pássaro.
— Quer dizer que aquela coisa lá embaixo — começou Alys, tateando em busca das palavras e deixando a boca mover-se em silêncio por um instante — vai tentar copular com a nossa fogueira? — indagou.
Por um momento, pareceu prestes a cair de novo na gargalhada, mas optou por uma inspiração trêmula e profunda e se recompôs:
— Ora, está aí uma coisa que eu tenho que ver...
Ambos sentimos um estremecimento na pedra sob nossos corpos, um tremor que vinha do chão. Ao mesmo tempo, tudo se tornou perceptivelmente mais escuro.
Olhando para baixo, vimos o dracus rolar na fogueira feito um porco na lama. O chão tremeu enquanto ele se contorcia, esmagando o fogo sob o corpo.
— Aquela coisa deve pesar... — começou Alys, parando e abanando a cabeça.
— Talvez cinco toneladas — calculei. — Pelo menos cinco.
— Pode ser que venha nos pegar. Ele poderia derrubar estas pedras.
— Disso eu não sei — respondi, dando um tapa na pedra e procurando soar mais seguro do que de fato estava. — Faz muito tempo que elas estão aqui. Estamos seguros.
Ao rolar por nossa fogueira, o dracus foi espalhando galhos em chamas pelo alto do morro. Perambulou até uma tora semicarbonizada que ainda ardia, caída no capim. Farejou-a, depois rolou o corpo, esmagando-a na terra. Em seguida tornou a ficar de pé, cheirou a tora e a comeu. Não mastigou. Engoliu-a inteira, feito um sapo enfiando um grilo goela abaixo.
O bicho fez isso várias vezes, descrevendo um círculo em torno da fogueira, já então praticamente extinta. Farejava, rolava em cima dos pedaços em chamas e os comia antes que se apagassem.
— Imagino que isso faça sentido — comentou Alys, observando-o. — Ele incendeia coisas e vive na floresta. Se não tivesse algo na cabeça que o fizesse querer apagar fogueiras, não sobreviveria por muito tempo.
— Provavelmente foi por isso que veio para cá. Deve ter visto a nossa fogueira.
Após vários minutos farejando e rolando, o dracus voltou ao leito plano de brasas, que era tudo o que restava da fogueira. Circundou-o algumas vezes, depois se aproximou e deitou em cima dele. Encolhi-me de horror, mas o bicho apenas se deslocou para lá e para cá, feito uma galinha se ajeitando no ninho.
O cume do morro ficou totalmente escuro, a não ser pelo pálido luar.
— Como é possível eu nunca ter ouvido falar dessas coisas? — perguntou Alys.
— Eles são muito raros. As pessoas costumam matá-los por não entenderem que são relativamente inofensivos. E eles não se reproduzem muito depressa. Esse aí embaixo deve ter uns 200 anos e atingiu o tamanho máximo que eles costumam ter — acrescentei, maravilhado com o animal. — Aposto que não há mais de outros 200 dracus desse tamanho no mundo inteiro.
Observamos por mais alguns minutos, porém não houve qualquer movimento lá embaixo. Alys deu um bocejo de estalar o queixo.
— Pelos deuses, estou exausta. Não há nada como a certeza da própria morte para a pessoa ficar esgotada — disse.
Deitou-se de costas, rolou de lado, depois tornou a virar de frente para mim, tentando achar uma posição confortável:
— Puxa, está frio aqui em cima — queixou-se, tremendo visivelmente. — Dá para entender por que ele se aninhou na nossa fogueira.
— Podemos descer e pegar o cobertor — sugeri.
— Nem pensar — fez ela, com um grunhido. Cruzou os braços no peito. Tremia a olhos vistos.
— Tome — disse eu, levantando e tirando a capa. — Enrole-se nisto. Não é muita coisa, mas é melhor do que a pedra fria. — Entreguei-lhe a capa. — Eu fico de vigia enquanto você dorme, para ter certeza de que não vai cair.
Ela me encarou por um bom tempo e cheguei quase a esperar que recusasse a oferta. Passado um momento, porém, pegou a capa e se embrulhou nela.
— Você, Mestre Vanitas, certamente sabe fazer uma garota passar horas agradáveis.
— Espere até amanhã. Eu estou só começando.
Fiquei sentado em silêncio, procurando não tiritar de frio, e a respiração de Alys acabou se regularizando. Observei-a dormir com a alegria serena do menino que não faz ideia de como é tolo nem imagina as tragédias inesperadas que o amanhã pode trazer.