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Chapter 113 - CXII. TÚMULOS

Ivon agarrou um leitãozinho e o levou até um pouco adiante, onde o abateu, esfolou e estripou, usando uma faca tirada de sua sacola. Afastei as folhas e empilhei umas pedras para fazer um braseiro improvisado.

Passado um minuto, Alys se aproximou com uma braçada de gravetos secos.

— Imagino que você pretenda arrancar desse sujeito todas as informações que puder, não é? — perguntou baixinho, por cima do meu ombro.

Fiz que sim.

— Desculpe pela prima tímida, mas...

— Não, foi bem pensado. Não sou fluente nesse linguajar matuto, e é provável que ele se abra mais com alguém que o seja — disse, e deu uma olhadela rápida para trás de mim. — Ele está quase acabando — informou, e se afastou em direção ao rio.

Usei disfarçadamente a simpatia para acender o fogo, enquanto Alys improvisava um par de espetos para assar, com galhos bifurcados de salgueiro. Ivon voltou com o leitãozinho bem esquartejado.

Circulei a garrafa de conhaque enquanto ele assava no fogo, fumegando e soltando gordura nas brasas. Fingi que bebia, apenas levantando a garrafa e umedecendo a boca. Alys também a inclinou em sua passagem por ela e, mais tarde, ficou com uma cor rosada nas bochechas. Ivon foi fiel a sua palavra e, já que o vento estava soprando, não demorou a ficar com o nariz confortavelmente vermelho.

Ele e eu conversamos, sem nos determos em nenhum assunto em particular, até o porco ficar dourado e crocante do lado de fora. Quanto mais eu ouvia, mais o sotaque de Ivon se desfazia num canto da minha consciência, e eu já não precisava me concentrar tanto para manter o meu. Assado o porco, mal me dava conta de todo o linguajar.

— Ocê é bom mesmo co'a faca — elogiei-o. — Mas me espantei de ver ocê estripá o coitadinho bem ali, perto dos outro poico...

Ivon abanou a cabeça:

— Os poico é uns safado perverso — disse. Apontou para uma das porcas, que trotava para o pedaço de terra em que ele havia esfolado o leitão. — Tá veno? Ela tá atrás dos bofe dessezinho aqui. Os poico são esperto, mas nem um tiquinho sentimentar.

Declarando que o porco estava praticamente pronto, Ivon pegou uma broa de milho e a cortou em três partes.

— Carneiro, hum — resmungou consigo mesmo. — Quem é que qué carneiro quando pode tê um bom pedaço de toucim? — disse. Em seguida levantou-se e começou a cortar o porco com o facão. — À mocinha aí, vai querê o quê? — perguntou a Alys.

— Num sô munto de preferença, não. Eu aceito o que o sinhô tive pra dá.

Fiquei contente por Ivon não estar olhando para mim quando ela falou. Seu sotaque não era perfeito, meio arrastado nos "os" e gutural demais, porém, na verdade, era bastante bom.

— Num carece de se acanha, não — disse Ivon. — Vai tê carne que dá e sobra.

— Cá cumigo, eu sempre gostei das parte traseira — disse Alys, que depois se alvoroçou, constrangida, e baixou os olhos. Dessa vez a pronúncia foi melhor.

Ivon demonstrou sua natureza realmente cavalheiresca ao se abster de tecer qualquer comentário grosseiro enquanto depositava uma fatia grossa de carne fumegante no pedaço de pão que ela segurava:

— Cuidado c'os dedo. Dá um minuto pra esfria.

Todos caímos de boca na carne e Ivon nos serviu uma segunda vez, depois a terceira. Não demorou muito, lambíamos a gordura dos dedos, empanturrando-nos até não caber mais nada.

Resolvi ir ao que interessava. Se Ivon não estivesse pronto para uns mexericos nessa hora, nunca estaria.

— Tô surpreso de vê ocê circulano por aí, com todas essas coisa ruim que ando acuntecendo por esses dia.

— Que coisa ruim? — perguntou ele.

Ainda não soubera do massacre no casamento. Perfeito. Embora não pudesse me fornecer detalhes sobre o ataque em si, Isso significava que estaria mais disposto a falar dos eventos anteriores ao casamento. Mesmo que nem todos na cidade estivessem mortos de medo, eu duvidava que conseguisse encontrar alguém disposto a falar com toda a franqueza sobre os mortos.

— Ouvi dizê que teve uns probrema lá na fazenda do Mathen — respondi, mantendo minhas informações tão vagas e inofensivas quanto possível.

Ele deu um grunhido:

— Num posso dizê que isso me espante nadica de nada.

— E por quê?

Ivon deu uma cusparada de lado:

— Aqueles Mathen é um belo bando de safado, é isso que eis é. — Tornou a abanar a cabeça. — Eu fico longe do Mordzulmo por causo que tenho um tantim de juízo que a minha mãe me enfio na cabeça. Os Mathen num tem nem isso.

Só quando escutei Ivon dizer o nome do lugar, com seu sotaque carregado, foi que o ouvi direito. Não era Mordzulmo. Não tinha nada a ver com ulmos. Era dos túmulos, Morro dos Túmulos.

— Num levo meus poico nem pra pasta por lá, mas aquele asno cretino construiu uma casa... — E abanou a cabeça, enojado.

— E o pessoar num tento fazê ele para? — instigou Alys.

O porqueiro emitiu um som rude.

— O Mathen num é muito de escuitá. Num tem nada que nem dinheiro pra tampa os uvido de um home.

— Mesmo ansim, é só uma casa — retruquei, com ar displicente. — Num tem muita ruindade.

— Um home querê que a fia tenha uma boa casa, cuma vista munita, inté aí tudo bem — admitiu Ivon. — Mas, se ocê tá cavano as fundação e acha osso e outros traste desse tipo, e mesmo ansim num pára... aí já é uma burrice de fazê dó.

— Ele num feis isso! — exclamou Alys, horrorizada.

Ivon balançou a cabeça e se inclinou para a frente:

— E isso num foi o pió. Ele foi cavano e bateu nas pedra. E por acauso paro? — Deu uma bufadela. — Começo foi a arranca tudo, catano inda mais pra pode usá na casa!

— E pru que ele num haverá de usá as pedra que achou? — perguntei.

Ivon me olhou como se eu fosse um imbecil.

— Ocê ia construí uma casa cum pedra de túmulo? Ia escava uma coisa d'um túmulo e dá pra sua fia de presente de casamento?

— Ele acho arguma coisa? Era o quê? — perguntei, passando-lhe a garrafa.

— Uai, esse é que era o grande segredo, num é? — disse Ivon, ressentido, bebendo outro trago. — Pelo que eu sube, ele tava lá cavano as fundação da casa e arrancano as pedra. Aí acho um quartim todo fechado e vedado. Mas feis todo mundo ficá na moita sobre o que ele encontro lá, por causo que queria que fosse a grande surpresa do casório.

— Era argum tesouro? — perguntei.

— Não, num era dinheiro — fez Ivon, abanando a cabeça. — O Mathen nunca foi de fecha o bico sobre a gaita. Deve tê sido argum tipo de... — abriu e fechou a boca, procurando a palavra — ...cume que se chama um treco que gente rica bota nas prateleira, a mod'impressioná os amigo mais rico?

Encolhi os ombros, com ar desamparado.

— Um legado de famia? — perguntou Alys.

Ivon deslizou o dedo pelo nariz e apontou para ela, sorridente.

— É isso aí. Um traste vistoso pra impressiona as pessoa. Ele é um cretino exibido, aquele tar de Mathen.

— Entonce, ninguém sabia o que era? — indaguei.

Ivon balançou a cabeça.

— Só aquele grupinho é que sabia. O Mathen e o irmão, dois fio dele e tarvez a muié. E tudo escondeno do povo o grande segredo, e isso ansim por meio ano, besta que nem papa.

Aquilo punha tudo sob uma nova perspectiva. Eu precisava voltar à fazenda e reexaminar as coisas.

— Ocê viu arguém hoje pelas banda de cá? — perguntou Alys. — Nóis tá procurano o meu tio.

Ivon abanou a cabeça:

— Num posso dizê que tenha tido esse prazê.

— Eu tô é preocupada cum ele — insistiu Alys.

— Num vou menti pr'ocê, benzim. Ocê tem razão de tá preocupada, se ele tive andano sozinho por essas mata.

— Tem gente ruim por aqui? — indaguei.

— Não do jeito que ocê tá pensano. Só venho aqui uma veis por ano, no outono. Alimenta os poico fais vale a pena pra mim, mas é só. Tem umas coisa esquisita nessa floresta. Principarmente no norte — disse.

Olhou de relance para Alys e para os próprios pés, obviamente sem saber ao certo se devia ou não continuar. Esse era exatamente o tipo de coisa que eu queria saber; por isso descartei seu comentário, na esperança de provocá-lo: 

— Eita, Ivon, num vem cum conto de fada pra cima de nóis.

Ele franziu o cenho:

— Fais duas noite, quand'eu me levantei pra... — hesitou, olhando de relance para Alys — ...pra cuida das minhas necessidade pessoar, vi luz lá pras banda do norte. Um luzão de chama preta. Grande que nem foguera, mas ansim, de repente. — Estalou os dedos. — Dispois, nada. Aconteceu treis veis. Deu um arrupio bem no meio das minhas costa.

— Fais duas noite? — perguntei. O casamento só havia ocorrido na véspera.

— Eu disse duas noite, num foi? Desde entonce, tô seguino meu camim pro sur. Num quero tê nada a vê co'as coisa que tão fazeno fogo preto de noite por lá.

— Óia lá, Ivon, fogo pretão mermo?

— Num sô nenhum Therion mentiroso não, inventano história pra assusta ocê e tira seus trocado, menino — disse ele, visivelmente irritado. — Passei minha vida toda nessas montanha. Todo mundo sabe que tem quarqué coisa lá nos penhasco do norte. Tem uma razão pro povo fica longe de lá.

— Num tem nenhuma fazenda por lá? — perguntei.

— Num tem lugá pra planta nem cria nada por lá, a num sê que ocê crie pedra — respondeu ele, acalorado. — Ocê pensa qu'o num cunheço vela nem fogueira quando vejo uma na minha frente? Era preto, tô te dizeno. Uns ondão de chama escura — fez um gesto largo com os dois braços — que nem quando a gente joga coisa na fogueira.

Deixei o assunto de lado e dirigi a conversa para outro tema. Não demorou muito, Ivon deu um longo suspiro e ficou de pé.

— Os poico já cumero tudo que tinha por aqui — disse, pegando e sacudindo o cajado para fazer a tosca sineta tilintar alto.

Os porcos vieram trotando obedientemente de todas as direções:

— Eia, poico! — gritou ele. — Poico, poico, poico! Anda logo ocêis!

Embrulhei as sobras do porco assado num pedaço de pano de saco e Alys fez algumas viagens com a garrafa d'água para apagar o fogo. Quando terminamos, Ivon já havia organizado sua vara. Era maior do que eu tinha suposto. Mais de duas dúzias de porcas adultas, além dos leitões e do javali de dorso cinzento e eriçado.

Ele nos deu um breve aceno e, sem mais uma palavra, foi-se embora, a sineta do bordão tilintando com seu andar e os porcos seguindo atrás, num bando meio desordenado.