Chapter 111 - CX. BUSCA

Sentamo-nos sob os retalhos de sombra das árvores outonais, longe da visão da fazenda arruinada.

O Sombraim.

O Sombraim realmente estivera ali.

Eu ainda tentava recompor as ideias quando Alys falou: 

— Era isso o que você esperava encontrar?

— Era o que eu procurava — respondi. O Sombraim estivera ali menos de um dia antes. — Mas eu não esperava por isso. Quer dizer, quando a gente é criança e escava tesouros enterrados, não espera encontrar nenhum. A gente sai à procura de gnomos-de-dâmara e fadas na floresta, mas não os acha.

Eles haviam matado minha trupe e matado os participantes desse casamento.

— Diabos, eu procuro você em Torrente o tempo todo, mas na verdade não espero achá-la... — Deixei minha fala se extinguir ao perceber que estava tagarelando à toa.

Parte da tensão escoou de Alys quando ela riu. Não foi um riso de desgosto, apenas de diversão.

— Sou um tesouro perdido ou uma fadinha?

— As duas coisas. Oculta, valiosa, muito buscada e raramente encontrada — respondi. Fitei-a, a cabeça mal atentando para o que me saía da boca. — Também há muito de fada em você — afirmei.

Eles eram reais.

O Sombraim era real.

— Você nunca está onde eu a procuro, e depois aparece do modo mais inesperado. Feito um arco-íris — concluí.

Ao longo do ano anterior eu guardara um medo silencioso no fundo do coração. Às vezes temia que a lembrança da morte da minha trupe e a lembrança do Sombraim fossem apenas um tipo estranho de sonho de luto, criado por minha mente para me ajudar a lidar com a perda do meu mundo inteiro. Mas agora eu tinha algo semelhante a uma prova.

Eles eram reais.

Minha lembrança era real.

Eu não era louco.

— Uma tarde, quando era pequeno, persegui um arco-íris durante uma hora. E me perdi na floresta. Meus pais ficaram preocupadíssimos. Achei que conseguiria alcançá-lo. Vi o lugar em que ele devia encostar no chão. É isso que você é...

Alys tocou em meu braço. Senti o calor repentino de sua mão através da camisa. Respirei fundo e senti o aroma de seu cabelo aquecido pelo sol e o cheiro da relva verde, do suor limpo de Alys, de seu hálito e de maçã. O vento suspirou entre as árvores e levantou-lhe o cabelo, que me fez cócegas no rosto.

Só quando o silêncio repentino encheu a clareira foi que me dei conta de que vinha mantendo um fluxo contínuo de tagarelice sem sentido fazia vários minutos. Corei de vergonha e olhei em volta, recordando subitamente onde estava.

— Você ficou com o olhar meio desvairado — disse ela com doçura. — Acho que nunca o tinha visto indisposto.

Tornei a respirar lentamente.

— Eu vivo indisposto. Só não o demonstro.

— É exatamente o que eu queria dizer — fez ela. Deu um passo atrás, deslizando a mão devagar por toda a extensão do meu braço, até deixá-la cair. — E agora?

— Eu... eu não faço ideia — respondi, deixando o olhar vagar a esmo.

— Isso também não é coisa sua.

— Eu gostaria de beber um pouco d'água — disse, e dei um sorriso sem jeito ao ver como isso parecia infantil.

Alys retribuiu o sorriso:

— Está aí um bom lugar para começar — brincou. — E depois?

— Eu gostaria de saber por que o Sombraim atacou aqui.

— Qual é seu plano, não é? — fez ela, com ar sério. — Com você não há muito meio-termo, hã? Você só quer um pouco d'água e a resposta a uma pergunta que o povo vem tentando descobrir desde... bem, desde sempre.

— O que você acha que aconteceu aqui? Quem lhe parece ter matado essas pessoas?

Ela cruzou os braços no peito.

— Não sei. Pode ter sido toda sorte... — Parou, mordendo o lábio inferior. Por fim, disse: — Não. Isso é mentira. É estranho dizê-lo, mas acho que foram eles. Parece coisa saída de uma história e por isso não quero acreditar. Mas acredito. — E me olhou com ar nervoso.

— Assim eu me sinto melhor — comentei, ficando de pé. — Achei que talvez eu estivesse meio maluco.

— Ainda pode estar. Não sou um bom parâmetro para avaliar sua sanidade.

— Você se sente maluca?

Ela abanou a cabeça, com um meio sorriso a lhe curvar os cantos da boca.

— Não. E você?

— Não especialmente.

— Isso pode ser bom ou ruim, depende. Como se propõe solucionar esse mistério do inicio dos tempos?

— Preciso pensar um pouco. Enquanto isso, vamos procurar o seu misterioso Mestre Freixo. Eu adoraria fazer-lhe umas perguntas sobre o que ele viu na fazenda dos Mathen.

Alys assentiu com a cabeça.

— Estive pensando em voltar ao lugar em que ele me deixou, atrás daquele penedo, e em procurar entre aquele ponto e a fazenda — disse, encolhendo os ombros. — Não é grande coisa em matéria de plano...

— Mas nos dá um lugar para começar. Se ele voltou e descobriu que você havia sumido, talvez tenha deixado um rastro que possamos seguir.

Alys foi à frente pela floresta. Ali fazia mais calor. As árvores mantinham o vento afastado, mas o Sol ainda conseguia penetrar, já que muitas delas estavam quase nuas. Só os carvalhos altos ainda conservavam todas as folhas, como anciãos encabulados.

Enquanto andávamos, tentei pensar no motivo que o Sombraim poderia ter tido para matar aquelas pessoas. Haveria alguma semelhança entre os participantes do casamento e minha trupe?

"Os pais de alguém andaram cantando o tipo inteiramente errado de canção..."

— O que você cantou ontem à noite? — indaguei. — No casamento.

— O de sempre — respondeu Alys, chutando um monte de folhas. — Coisas animadas. A flautinha. Venha banhar-se no rio. Panela de fundo de cobre — acrescentou, e deu um risinho. — Quarta Sina da Tia Emme...

— Você não cantou isso! — comentei, horrorizado. — Num casamento?

— Foi um avô bêbado quem pediu — disse ela, dando de ombros, enquanto avançava por uma moita emaranhada e densa de arbustos amarelados. — Houve algumas expressões de espanto, não muitas. O pessoal daqui não tem afetação.

Caminhamos um pouco mais em silêncio. O vento soprava forte nos galhos altos acima de nós, mas, aqui no chão, onde avançávamos aos poucos, era apenas um sussurro.

— Acho que nunca ouvi Venha banhar-se...

— Eu teria imaginado... — Alys se interrompeu e deu uma olhada para trás, por cima do ombro. — Está tentando me enganar para que eu cante para você?

— E claro.

Ela se virou e me deu um sorriso caloroso, o cabelo caído no rosto.

— Mais tarde, talvez. Cantarei por meu jantar.

Continuou seguindo à frente, circundando um afloramento de rocha escura. Estava mais frio nesse ponto, fora do Sol.

— Acho que ele me deixou aqui — disse, olhando ao redor, insegura. — De dia tudo parece diferente.

— Quer examinar o trajeto de volta daqui para a fazenda, ou descrever círculos a partir deste ponto?

— Círculos. Mas você terá de me mostrar o que devo procurar. Sou uma garota urbana.

Mostrei-lhe rapidamente o pouco que entendia da floresta. Apontei o tipo de terreno em que uma bota deixaria o chão escarvado ou o marcaria com uma pegada. Indiquei como o monte de folhas em que ela pisara tinha ficado obviamente remexido e como os ramos de arbusto tinham sido partidos ou arrancados quando ela lutara para passar por eles.

Mantivemo-nos bem próximos, já que dois pares de olhos são melhores do que um, e também porque nenhum de nós ansiava por se aventurar sozinho. Fomos trabalhando de um lado para outro, descrevendo arcos cada vez maiores a partir do pedregulho.

Passados cinco minutos, comecei a intuir a inutilidade daquilo. Era simplesmente floresta demais. Percebi que Alys chegou depressa à mesma conclusão. Mais uma vez, as pistas de livros de histórias que esperávamos encontrar não se evidenciaram.

Não havia retalhos rasgados de roupa pendurados em galhos, nem pegadas fundas ou acampamentos abandonados. Encontramos, isso sim, cogumelos, bolotas de carvalho, mosquitos e fezes de guaxinim habilmente escondidas por agulhas de pinheiros.

— Está ouvindo a água? — perguntou Alys.

Fiz que sim e disse:

— Um gole me cairia muito bem. E um banhozinho.

Afastamo-nos de nossa busca sem dizer uma palavra, nenhum dos dois querendo admitir que estava ansioso por desistir, e ambos sentindo, no fundo, o quanto ela era inútil. Seguimos o som da água na descida da encosta até cruzar um pinheiral denso e deparar com um rio lindo e fundo, com uns seis metros de largura.

Nessa água não havia cheiro de escoamento de fundição, de modo que a bebemos e enchi minha garrafa.

Eu conhecia o rumo das histórias. Quando um casal jovem se aproxima de um rio, há uma forma definida do que vem a seguir. Alys se banharia do outro lado do abeto mais próximo, longe dos meus olhos, num trechinho de margem arenosa. Eu me manteria discretamente afastado, sem ser visto, mas a uma distância em que a conversa seria fácil. E então aconteceria... alguma coisa. Ela escorregaria e torceria o tornozelo, ou cortaria o pé numa pedra afiada e eu seria forçado a correr até lá. E aí...

Mas essa não era uma história de dois jovens enamorados se encontrando à beira de um rio. Assim, borrifei um pouco de água no rosto e troquei de roupa atrás de uma árvore, vestindo minha camisa limpa. Alys mergulhou a cabeça na água para se refrescar. Seu cabelo cintilante ficou preto como tinta até ela torcê-lo com as duas mãos.

Depois sentamo-nos numa pedra, com os pés balançando dentro d'água e desfrutando a companhia um do outro enquanto descansávamos. Dividimos uma maçã, passando-a para lá e para cá entre uma mordida e outra, o que é bem parecido com beijar para quem nunca beijou ninguém.

Após uma instigação gentil, Alys cantou para mim. Entoou uma estrofe de Venha banhar-se que eu nunca tinha ouvido; uma estrofe que, desconfio, inventou ali mesmo, de improviso. Não a repetirei aqui, porque ela a cantou para mim, não para você. E, como esta não é a história de dois enamorados se encontrando à beira do rio, a estrofe não tem um lugar particular aqui, portanto vou guardá-la para mim.