Não muito depois de termos acabado a maçã, Alys e eu tiramos os pés da água e nos preparamos para ir embora.
Pensei em continuar sem as botas, já que pés capazes de correr descalços pelos telhados de Notrean não corriam o risco de se machucar nem mesmo no solo mais irregular de uma floresta. Mas, não querendo parecer incivilizado, calcei as meias, apesar de estarem úmidas e pegajosas de suor.
Estava amarrando as botas quando ouvi ao longe um ruído vago na floresta, fora do meu campo visual, atrás de um pinhal denso.
Sem fazer barulho, estendi a mão, toquei de leve no ombro de Alys para chamar a sua atenção e pus um dedo nos lábios.
— O que foi? — perguntou ela, mexendo a boca sem produzir nenhum som.
Cheguei mais perto, pisando com cuidado para fazer o menor barulho possível.
— Acho que ouvi alguma coisa — expliquei, com a cabeça junto à dela. — Vou dar uma olhada.
— Vai uma ova — murmurou Alys, com o rosto pálido à sombra dos pinheiros. — Foi exatamente isso o que disse o Mestre Freixo ontem à noite antes de ir embora. Raios me partam se também vou deixá-lo desaparecer.
Antes que pudesse responder, ouvi mais movimento no meio das árvores. Um farfalhar de arbustos, o estalido alto de um galho seco de pinheiro quebrando. À medida que os ruídos ficavam mais altos, captei o som de alguma coisa grande, de respiração pesada. Em seguida, um grunhido grave de animal.
Não era humano. Não era o Sombraim. Meu alívio durou pouco, pois ouvi outro grunhido e uma bufadela. Provavelmente um javali a caminho do rio.
— Fique atrás de mim — eu disse a Alys.
A maioria das pessoas nem sequer imagina como os porcos selvagens são perigosos, especialmente no outono, quando os machos lutam pela dominação. A simpatia não adiantaria nada. Eu não tinha nenhuma fonte, nenhuma conexão. Não tinha nem ao menos um bordão pesado. Será que o bicho se distrairia com as poucas maçãs que me restavam?
O javali empurrou com os ombros os galhos baixos do pinheiro mais próximo, fungando e bufando. Provavelmente, tinha o dobro do meu peso. Soltou um enorme grunhido gutural ao erguer os olhos e nos ver. Levantou a cabeça, torcendo o focinho para nos farejar.
— Não corra, senão ele a persegue — instruí baixinho, colocando-me devagar à frente de Alys. Na falta de coisa melhor, saquei o canivete e o abri com o polegar. — Vá recuando e entre no rio. Eles não nadam bem.
— Acho que ela não é perigosa — disse Alys atrás de mim, em tom normal. — Parece mais curiosa do que aborrecida — completou, fazendo uma pausa. — Não que eu não aprecie suas nobres advertências e tudo o mais.
Olhando melhor, vi que Alys tinha razão.
Era uma porca, não um javali, e, sob a cortina de lama, tinha a coloração rosada dos porcos domésticos, não as cerdas duras e acinzentadas dos porcos selvagens. Entediada, baixou a cabeça e começou a fuçar a vegetação rasteira sob os pinheiros.
Então percebi que eu tinha assumido uma pose meio agachada, com uma das mãos estendida, feito um lutador. Na outra segurava meu canivete desprezível, tão pequeno que precisava cortar várias vezes para partir ao meio uma maçã de bom tamanho. E o pior de tudo é que só havia calçado uma das botas. Estava com uma aparência ridícula: doido como Elohkar em seus piores dias.
Senti o rosto queimar e percebi que devia estar vermelho feito uma beterraba.
— Ardonai misericordioso, estou me sentindo um idiota.
— Até que é muito lisonjeiro, na verdade — comentou Alys. — Com exceção de umas discussões bem irritantes nas tabernas, não sei se alguém já tinha saltado de verdade em minha defesa até hoje.
— Sim, é claro — respondi, mantendo os olhos baixos enquanto enfiava a outra meia e a bota, envergonhado demais para encará-la. — O sonho de toda garota é ser salva do porco de estimação de alguém.
— Estou falando sério — ela contrapôs. Levantei a cabeça e vi em seu rosto um ar de meiga diversão, mas nenhuma zombaria. — Você pareceu... feroz. Feito um urso com o dorso eriçado. — Parou de falar, olhando para a minha cabeça. — Ou uma raposa das neves, eu acho. Você é grisalho demais para um urso.
Relaxei um pouco. Uma raposa eriçada era melhor do que um idiota lunático com um único pé calçado.
— Mas segura o canivete da maneira errada — Alys acrescentou com ar displicente, apontando com a cabeça para minha mão. — Se esfaqueasse mesmo alguém, perderia a firmeza e cortaria seu próprio polegar — explicou.
Estendeu a mão, segurou meus dedos e os deslocou de leve:
— Se o segurar desse jeito, seu polegar ficará protegido. O lado negativo é que você perde muita mobilidade no pulso.
— Você já brigou muitas vezes com faca? — perguntei, intrigado.
— Não tantas como você poderia supor — disse ela, com um sorriso maroto. — É uma outra página daquele livro surrado que vocês, homens, gostam tanto de usar para nos cortejar. Nem sei contar os homens que tentaram me seduzir a abrir mão da minha virtude ensinando-me a defendê-la.
— Nunca a vi usando facas. Por quê?
— E por que eu usaria uma faca? Sou uma florzinha delicada. É óbvio que uma mulher que anda por aí usando facas está procurando encrenca — enfiou a mão no bolso e tirou um pedaço de metal comprido e fino, com um gume reluzente: — Mas a mulher armada com uma faca está pronta para enfrentar encrencas. Em geral, é mais fácil parecer inofensiva. Costuma ser menos complicado.
Somente o fato de ela ser tão direta impediu que eu levasse um susto. Sua lâmina não era muito maior que a minha, porém não era dobrável. Era um pedaço reto de metal com o punho envolto num couro fino. Obviamente não fora concebido para comer nem para fazer um ou outro serviço em volta da fogueira. Mais parecia uma das afiadas lâminas cirúrgicas da Iátrica.
— Como é que você carrega isso no bolso sem se retalhar toda?
Alys virou-se de lado para me mostrar:
— Meu bolso tem, por dentro, um corte em toda a extensão. Ela fica presa na minha perna. É por isso que é tão chata. Para ninguém ver que a estou carregando — explicou. Pegou o cabo de couro e segurou a faca à frente do corpo, para que eu visse. — É assim. Você tem que manter o polegar na parte plana.
— Você está tentando me seduzir a abrir mão da minha virtude, ensinando-me a defendê-la? — perguntei.
— Ora, como se você tivesse alguma virtude — Alys gargalhou. — Estou tentando impedi-lo de cortar suas lindas mãos, da próxima vez que salvar uma garota de um porco. — Inclinou a cabeça de lado. — Por falar nisso, sabia que quando você fica zangado os seus olhos...
— Eia, poico! — veio uma voz de trás das árvores, acompanhada pelo tilintar monótono de uma sineta. — Poico, poico, poico...
A porca enorme ficou atenta e voltou trotando pela mata em direção ao som da voz. Alys levou um instante para repor a faca no lugar, enquanto eu pegava a sacola de viagem.
Seguindo a porca, avistamos um homem ao lado do rio, com meia dúzia de porcas grandes a rondá-lo. Havia também um velho javali eriçado e uma vintena de leitõezinhos zanzando por perto.
O porqueiro olhou para nós com ar desconfiado.
— Ei, ocêis! — gritou. — Num carece de fica cum medo. Eis num morde.
Era magro, curtido pelo sol e tinha a barba descuidada. Seu casaco comprido tinha pendurada uma tosca sineta de bronze e ele carregava num ombro um saco esfarrapado. Cheirava melhor do que se esperaria, provavelmente, já que os porcos criados soltos eram mais limpos do que os mantidos em cercados. Mesmo que ele cheirasse como um porco de chiqueiro, a rigor eu não poderia censurá-lo por isso, já que sem dúvida eu tivera um cheiro pior em vários momentos da minha vida.
— Achei que tinha escutado quarqué coisa ali pelas banda d'água — disse, com um sotaque tão carregado e escorregadio que quase dava para sentir seu gosto.
Mamãe costumava referir-se a ele como o sotaque das profundezas do vale, uma vez que só era encontrado em vilarejos sem muito contato com o mundo externo. Nem mesmo em cidadezinhas rurais como Nebron as pessoas tinham muito sotaque.
Tendo vivido em Notrean e Torrente por tanto tempo, fazia anos que eu não ouvia um dialeto tão carregado. O sujeito devia ter crescido num lugar realmente remoto, provavelmente enfurnado nas montanhas.
Aproximou-se de onde estávamos com um ar sombrio no rosto curtido, espremendo os olhos:
— Qu'é q ocêis dois tão fazeno por aqui? — perguntou, cheio de suspeita. — Achei q'o tinha uvido arguém canta.
— Foi minha prima — disse eu, com um aceno da cabeça em direção a Alys. — Ela tem uma voiz munita pra canta, num tem? — Estendi a mão. — É um prazê cunhecê o sinhô. Pode me chama de Van.
Ele pareceu surpreso ao me ouvir falar assim, e boa parte da desconfiança ameaçadora desapareceu de sua expressão.
— Tamem é um prazê pra mim, inhô Van — disse, apertando minha mão. — E raro nóis incuntrá um moço que fala direito. Os ricaço das banda de cá parece que vive co'a boca cheia de argodão.
Dei uma risada.
— Meu pai costumava dizê: "Argodão na boca e argodão na cabeça."
Ele sorriu, ainda apertando minha mão:
— Meu nome é Skaivon Schromelpfenneg.
— Ocê tem é nome de rei. Fica muito zangado se eu diminuí ele pra Ivon?
— Meus amigo tudo faz isso — respondeu ele com um sorriso e um tapinha nas minhas costas. — "Ivon" tá muito bom pra duas pessoinha bonita que nem ocêis. — E correu os olhos para a frente e para trás, de Alys para mim e de mim para Alys.
Alys, verdade seja dita, nem havia piscado ante minha mudança súbita de dialeto.
— Me discurpe — disse eu, apontando na direção dela. — Ivon, essa aqui é a minha prima mais querida.
— Aloyne — disse ela.
Baixei a voz para o nível de um sussurro no palco:
— Mocinha meiga, mas encabulada que só ela, sô. Acho que ocê num vai escuitá muitas palavra dela...
Alys pegou a deixa do papel sem a menor hesitação, olhando para os pés e torcendo os dedos, com ar nervoso. Levantou os olhos por tempo suficiente para sorrir para o porqueiro, depois tornou a baixá-los, criando uma imagem tão perfeita de acanhamento envergonhado que até eu quase me deixei enganar.
Ivon levou a mão à testa polidamente e balançou a cabeça:
— Prazê em conhece ocê, nhá Aloyne. Nunca ouvi uma voiz tão munita na minha vida toda — disse, empurrando um pouco para trás da cabeça o chapéu amorfo. Quando, mesmo assim, Alys não o encarou, virou-se outra vez para mim.
— Bonito rebanho — comentei, movendo a cabeça em direção aos porcos dispersos que andavam ziguezagueando por entre as árvores.
Ele abanou a cabeça, com um risinho:
— Num é rebanho. Oveia e boi é que faiz rebanho. Poico foima vara!
— É mermo, sô? Escuite, amigo Ivon, será que dava jeito d'eu cumpra um bom leitãozinho d'ocê? Minha prima e eu sentiu farta do janta de hoje...
— Pode sê — fez ele, com cautela e uma olhadela rápida para minha bolsa.
— Se ocê perpará ele pra nóis, eu lhe dô quatro iota — propus, sabendo que era um preço generoso. — Mas só se ocê nos fizé o favo de se senta pra dividi um bocado com nóis.
Era uma sondagem informal.
As pessoas que têm trabalhos solitários, como os pastores ou os porqueiros, tendem a apreciar sua própria companhia, ou a ficar ávidas de uma conversa. Torci para que Ivon fosse deste último tipo. Eu precisava de informações sobre o casamento e nenhuma das pessoas da cidade parecia inclinada a falar.
Dei-lhe um sorriso honesto e enfiei a mão na sacola de viagem, tirando a garrafa de conhaque que havia comprado do criaferro.
— Tenho inté uma coisinha aqui pra tempera. Isso se ocê num fô contra um traguinho com dois estranho ansim tão cedo...
Alys pegou a deixa e levantou a cabeça a tempo de atrair a atenção de Ivon, dar-lhe um sorriso tímido e tornar a baixar os olhos.
— Bom, a minha mãe me inducô direito — disse o porqueiro com ar reverente, espalmando a mão no peito. — Eu só bebo quando tô com sede, ou senão quando o vento assopra.
Tirou da cabeça o chapéu amorfo com um gesto dramático e fez uma meia mesura para nós:
— Ocêis parece gente boa. Vai sê um grande prazê fazê uma boquinha com ocêis.