A fazenda não estava nem de longe tão macabra quanto poderia estar. O celeiro não passava de um amontoado de cinzas e tábuas. De um lado havia uma gamela de água junto a um moinho carbonizado. O vento tentava girar a roda, mas só lhe restavam três palhetas e ela simplesmente balançava para a frente e para trás, para a frente e para trás.
Não havia cadáveres; apenas os sulcos fundos cavados no chão pelas rodas dos carroções que tinham ido buscá-los.
— Quantas pessoas estavam no casamento? — perguntei.
— Vinte e seis, contando a noiva e o noivo — disse Alys, chutando a esmo um pedaço de madeira carbonizada e meio enterrada nas cinzas, perto dos restos do celeiro. — O bom é que aqui costuma chover à noite, caso contrário, todo este lado da montanha estaria em chamas agora...
— Havia alguma desavença tradicional fervilhando por aqui, em estado latente? Famílias rivais? Outro pretendente em busca de vingança?
— É claro — respondeu Alys, descontraída. — Numa cidadezinha assim, é isso que mantém a estabilidade das coisas. Essa gente é capaz de guardar rancores por 50 anos pelo que o fulano de uma família disse sobre o beltrano de outra — comentou, abanando a cabeça. — Mas nada no gênero matança. Eles eram pessoas normais.
Normais, porém ricas, pensei comigo mesmo, andando em direção à sede da fazenda. Era o tipo de casa que só uma família rica poderia se permitir construir. As fundações e as paredes inferiores eram de sólida pedra cinzenta. O andar superior era de estuque e madeira, com os cantos reforçados por pedra.
No entanto, as paredes estavam curvadas para dentro, prestes a desabar. As janelas e a porta se encontravam escancaradas, deixando escapar fuligem pelos cantos. Espiei pela porta e vi a pedra cinzenta das paredes enegrecida como carvão. Havia cacos de louça espalhados por entre os restos dos móveis e as tábuas carbonizadas do piso.
— Se as suas coisas estavam aqui — comentei com Alys —, é quase certo que estejam perdidas. Posso entrar para dar uma olhada...
— Não seja bobo. Está tudo prestes a desabar — fez ela. Bateu com o nó de um dedo no umbral da porta, produzindo um som oco.
Curioso com a estranheza desse som, fui dar uma espiada. Cutuquei a ombreira da porta com a unha e tirei uma lasca comprida, do tamanho da palma da minha mão, com pouca resistência.
— Isso mais parece um tronco lançado à costa do que madeira de qualidade. Depois de gastar tanto dinheiro, por que economizar na moldura da porta? — indaguei.
Alys deu de ombros.
— Será que foi o calor do fogo?
Balancei a cabeça, distraído, e continuei a circular, examinando uma coisa e outra. Abaixei-me para apanhar um pedaço de ripa carbonizado e resmunguei entre dentes uma conexão por simpatia. Uma breve friagem se espalhou por meus braços e uma chama voltou à vida na borda áspera da madeira.
— Isso a gente não vê todo dia — disse Alys. Tinha a voz calma, porém era uma calma forçada, como se ela fizesse um grande esforço para parecer indiferente.
Levei um momento para entender do que estava falando. Aquele tipo de simpatia simples era tão corriqueiro na Academia que nem me ocorreu a impressão que causaria a outra pessoa.
— É só uma mexidinha em forças obscuras que melhor seria deixar em paz — comentei em tom leve, segurando a ripa em chamas. — Ontem à noite o fogo foi negro?
Ela fez que sim.
— Como uma chama que queima sem luz. Como as lâmpadas depois que morrem.
A ripa de madeira estava queimando com uma chama laranja, comum e alegre. Nem vestígio de negro. Mas podia ter sido negro na véspera. Deixei-a cair e a esmaguei com a bota.
Tornei a circundar a casa. Alguma coisa me incomodava, mas eu não conseguia descobrir exatamente o quê. Resolvi entrar e dar uma espiada.
— O incêndio não foi tão terrível assim — gritei para Alys. — O que você acabou deixando lá dentro?
— Não foi tão terrível? — repetiu ela, incrédula, ao contornar um canto da casa. — O lugar está uma verdadeira casca seca.
Apontei para cima:
— O telhado não queimou todo, exceto bem ao lado da chaminé. Isso significa que provavelmente o incêndio não danificou muito o segundo andar. O que havia de seu lá dentro?
— Umas roupas e uma lira que Mestre Freixo comprou para mim.
— Você toca lira? — perguntei, surpreso. — De quantas cordas?
— Sete. Só estou aprendendo — respondeu ela, com um risinho sem humor. — Estava aprendendo. Só sirvo para tocar em casamentos no interior, e olhe lá.
— Não desperdice o seu tempo com a lira. É um instrumento arcaico, sem margem para sutilezas. Não que eu queira desmerecer sua escolha do instrumento — apressei-me a acrescentar. — Mas a sua voz merece um acompanhamento melhor do que a lira pode lhe oferecer. Se você está procurando um instrumento de cordas que possa carregar, fique com a meia-harpa.
— Você é uma gracinha, mas eu não a escolhi. Quem escolheu foi o Mestre Freixo. Da próxima vez vou pressioná-lo a me dar uma harpa. — Olhou em volta, ao acaso, dando um suspiro. — Se ele ainda estiver vivo.
Espiei por uma das janelas abertas para ter uma ideia do lado de dentro, mas só consegui que um pedaço do parapeito saísse nas minhas mãos quando me debrucei sobre ele.
— Isto também está podre — comentei, esfarelando-o entre os dedos.
— Exatamente — fez Alys, segurando-me pelo braço e me puxando da janela.
— A casa está só esperando para cair em cima de você. Não vale a pena entrar. Como você disse, é só uma lira.
Deixei que ela me afastasse, mas ponderei:
— O corpo do seu mecenas pode estar lá em cima.
Alys balançou a cabeça:
— Ele não é o tipo de homem que entra correndo num prédio em chamas e fica preso lá dentro — afirmou, e me deu um olhar severo. — O que você imagina encontrar aí, afinal?
— Não sei — admiti —, mas, se eu não entrar, não saberei onde mais procurar pistas sobre o que de fato aconteceu aqui.
— Mas, que rumores você ouviu?
— Não muitos — respondi, relembrando o que dissera o balseiro. — Uma porção de gente foi assassinada num casamento. Todos mortos, destroçados feito bonecas de trapo. Fogo negro.
— Eles não foram realmente destroçados. Pelo que ouvi na cidade, muita coisa foi obra de facas e espadas.
Desde minha chegada à cidade, eu não tinha visto ninguém portar nem mesmo uma faca na cinta. O mais próximo disso tinham sido os lavradores com foices e foicinhos nos campos. Tornei a olhar para o casarão prestes a ruir, certo de estar deixando escapar alguma coisa...
— Então o que acha que aconteceu aqui? — perguntou Alys.
— Não sei. Eu meio que esperava não descobrir nada. Você sabe como os boatos tendem a ser exagerados — comentei, olhando em volta. — Eu teria atribuído o fogo negro aos boatos se você não tivesse estado aqui para confirmá-lo.
— Outras pessoas o viram ontem. As coisas ainda estavam queimando em fogo lento quando vieram buscar os corpos e me encontraram.
Tornei a olhar ao redor, irritado. Continuava com a sensação de estar deixando escapar alguma coisa, mas não conseguia imaginar que diabo seria.
— O que eles estão pensando na cidade? — indaguei.
— O pessoal não estava muito falante perto de mim — disse Alys, em tom ressentido. — Mas entreouvi um pedaço de conversa entre o líder da guarda e o prefeito. O povo anda murmurando sobre demônios. O fogo negro garantiu que fosse assim. Havia gente falando em secudos. Imagino que a festa da colheita será mais tradicional que de hábito este ano. Muitas fogueiras, sidra e espantalhos...
Olhei mais uma vez ao redor. As ruínas desmoronadas do celeiro, um moinho com três palhetas e uma casca de casa queimada. Frustrado, passei as mãos pelo cabelo, ainda certo de estar deixando escapar alguma coisa. Eu havia esperado encontrar... algo. Qualquer coisa.
Parado ali, ocorreu-me o quanto fora tola essa esperança. O que eu esperara achar? Uma pegada? Um retalho de tecido da capa de alguém? Um bilhete amassado, com uma informação vital, convenientemente escrito para que eu o encontrasse? Essas coisas só aconteciam nas histórias.
Peguei a garrafa de água e bebi o pouquinho que restava.
— Bem, já acabei por aqui — comentei, andando para a gamela de água. — O que você planeja fazer a seguir?
— Ainda preciso dar uma espiada por aí. Há uma possibilidade de que o meu amigo esteja em algum lugar, ferido.
Contemplei os morros ondulantes, dourados pelo sol de outono e pelos trigais, verdes com as pastagens, os pinheirais e os bosques de abetos. Por toda parte se espalhavam as cicatrizes escuras dos penedos e dos afloramentos de rocha.
— É muito chão para percorrer... — observei.
Ela balançou a cabeça, com expressão resignada.
— Pelo menos, tenho que fazer um esforço.
— Quer ajuda? Entendo um pouco de florestas...
— Com certeza, eu não ficaria triste por ter companhia, especialmente considerando que talvez haja um bando de demônios saqueadores por estas paragens. Além disso, você já se ofereceu para me preparar o jantar de hoje.
— E verdade — confirmei.
Passei pelo moinho carbonizado e cheguei à bomba manual de ferro. Segurei a alavanca, apoiei nela o peso do corpo e, após algum esforço, saí cambaleando, porque ela se quebrou na base.
Fitei a alavanca quebrada. Estava enferrujada até o miolo, desfazendo-se em camadas granulosas de ferrugem vermelha.
Num lampejo súbito, lembrei-me de quando voltara para minha trupe e a encontrara morta, muitos anos antes. Lembrei-me de ter estendido a mão para me apoiar e constatado que as sólidas ferragens da roda de uma carroça estavam apodrecidas pela ferrugem. Lembrei-me também da madeira grossa e sólida se desfazendo em pedaços quando a toquei.
— Vanitas? — chamou Alys, com o rosto junto ao meu e a expressão preocupada. — Você está bem? Por Ardonai enegrecido, sente-se, senão você vai cair. Está machucado?
Desloquei-me para sentar na beirada da gamela, mas as tábuas grossas se desmancharam sob o meu peso feito um toco de árvore podre. Deixei a gravidade acabar de me puxar para baixo e sentei na grama.
Levantei a alavanca totalmente enferrujada da bomba d'água para que Alys a visse. Ela carregou o sobrolho:
— Essa bomba era nova. O pai se gabou de quanto havia custado construir um poço aqui no alto do morro. Ficou repetindo que nenhuma filha sua teria de carregar baldes encosta acima três vezes por dia.
— O que você acha que aconteceu aqui? Sinceramente.
Ela correu os olhos ao redor, o machucado na têmpora formando um contraste acentuado com a pele alva.
— Acho que quando acabar de procurar o meu futuro mecenas vou lavar as mãos, sair desse lugar e nunca mais olhar para trás.
— Isso não é resposta. O que acha que aconteceu?
Ela me olhou por um momento demorado antes de responder:
— Alguma coisa ruim. Nunca vi nem espero ver um demônio. Mas também nunca vi o rei de Mitreza...
— Você conhece aquela cantiga infantil? — perguntei.
Alys me olhou sem entender e, por isso, cantei:
"Quando na lareira escura o fogo,
O que fazer? O que fazer?
Correr para fora e se esconder.
Se a luzente espada enferrujar,
Em quem confiar? Em quem confiar?
Sozinho permaneça; como pedra, enrijeça."
Alys empalideceu ao perceber o que eu deixava implícito. Balançou a cabeça e entoou baixinho o refrão para si mesma:
"Vês a mulher de neve pintada?
Silenciosa vem e sai calada.
Qual será seu fim? Qual será seu fim?
Sombraim. Sombraim."