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Chapter 109 - CVIII. CIANURETO

Quando saímos do arvoredo no cume do morro, o vento tornou a soprar uma rajada, lançando mais detritos em nossa direção antes de amainar. Alys deu um passo para longe de mim, resmungando e esfregando os olhos. E subitamente a parte de meu braço em que sua mão se apoiara ficou muito fria.

— Mãos pretas — disse ela, esfregando o rosto. — Estou com farelo nos olhos.

— Não é farelo — retruquei, correndo os olhos pelo alto do morro.

A menos de 15 metros de distância havia um aglomerado de construções carbonizadas, que um dia deviam ter sido a fazenda dos Mathen:

— São cinzas.

Levei Alys a um pequeno bosque que bloqueava o vento e a visão da fazenda. Dei-lhe minha garrafa de água e sentamos num tronco caído, descansando enquanto ela lavava os olhos.

— Sabe — disse eu, hesitante —, você não precisa ir lá. Posso procurar suas coisas se me disser onde as deixou.

Ela espremeu um pouco os olhos.

— Não sei se você está sendo gentil ou condescendente...

— Não sei o que você viu ontem à noite, por isso não sei até que ponto devo ser delicado.

— Em geral não preciso de muita delicadeza — ela rebateu, em poucas palavras. — Não sou nenhuma margaridinha enrubescida.

— As margaridas não enrubescem.

Alys me encarou, piscando os olhos vermelhos.

— Você deve estar pensando em "violetinha corada" ou em "donzela ruborizada" — prossegui. — Seja como for, as margaridas são brancas. Não podem ficar coradas...

— Isso foi condescendente — disse ela sem rodeios.

— Bem, achei melhor você saber qual era a aparência certa. Para efeito de comparação. Para que haja menos confusão quando eu tentar ser atencioso.

Encaramo-nos um pouco e ela acabou desviando os olhos e esfregando-os.

— Está certo — admitiu.

Logo depois inclinou a cabeça para trás e borrifou mais água no rosto, piscando furiosamente:

— Na verdade, não vi muita coisa — disse, enxugando o rosto na manga da blusa. — Toquei antes da cerimônia de casamento e voltei a tocar quando eles se preparavam para a ceia. Fiquei esperando que o meu... — interrompeu-se, com um sorriso pálido — ...que Mestre Freixo aparecesse, mas sabia que não podia me atrever a perguntar por ele. Ao que eu soubesse, tudo aquilo era outro teste.

Parou de falar e franziu o cenho. Depois prosseguiu:

— Ele tem um jeito de fazer sinais. De me deixar saber que está perto. Pedi licença e o encontrei perto do celeiro. Fomos andar um pouco pelo bosque e ele me fez perguntas. Quem estava presente, quantos eram, que aparência tinham.

Fez um ar pensativo e concluiu:

— Agora que estou pensando no assunto, acho que o verdadeiro teste foi esse. Ele queria saber até que ponto eu era observadora.

— Ele chega quase a parecer um espião — ponderei.

Alys encolheu os ombros:

— Passeamos por cerca de meia hora, conversando. Depois ele ouviu alguma coisa e me disse para esperá-lo. Saiu em direção à casa da fazenda e ficou muito tempo ausente.

— Quanto?

— Dez minutos? — sugeriu ela, dando de ombros. — Sabe como é, quando se espera alguém. Havia escurecido, eu sentia frio e fome — explicou. Cruzou os braços sobre a barriga e dobrou um pouco o corpo. — Puxa, também estou com fome agora. Gostaria de ter...

Tirei uma maçã da sacola de viagem e a entreguei a ela. Eram maçãs magníficas, vermelhas como sangue, doces e frescas. Do tipo com que a gente sonha o ano inteiro, mas só consegue durante algumas onzenas no outono.

Alys me olhou com curiosidade.

— Eu viajava muito — expliquei, pegando também uma maçã para mim. — E era comum ficar com muita fome. Então costumo levar alguma coisa para comer. Vou preparar-lhe um jantar de verdade quando acamparmos à noite.

— E, ainda por cima, ele sabe cozinhar... — comentou Alys. Mordeu a maçã e bebeu um gole de água para acompanhar. — Enfim, achei que tinha ouvido gritos e voltei andando para a fazenda. Quando saí de trás de uma árvore, decididamente ouvi uma gritaria. Então cheguei mais perto e senti cheiro de fumaça. E vi a luz do fogo por entre as árvores...

— E de que cor era o fogo? — perguntei, com a boca meio cheia de maçã.

Alys me lançou um olhar incisivo, com a expressão subitamente desconfiada.

— Por que você está me perguntando isso?

— Desculpe, eu a interrompi — retruquei, engolindo o bocado de maçã. — Termine a história, depois eu lhe conto.

— Já falei muito, e você ainda não fez nenhuma referência ao motivo de estar neste cantinho do mundo.

— Os professores da Academia ouviram uns boatos estranhos e me mandaram aqui para descobrir se eram verdadeiros — declarei.

Não houve constrangimento nem hesitação na minha mentira. Nem sequer a planejei; aliás, ela simplesmente saiu. Forçado a tomar uma decisão assim de estalo, não seria seguro eu lhe dizer a verdade sobre minha busca do Sombraim. Eu não suportava a ideia de que ela achasse que eu tinha o miolo mole.

— A Academia faz esse tipo de coisa? Pensei que vocês só ficassem sentados, lendo livros.

— Algumas pessoas leem — admiti —, mas, quando ouvimos rumores estranhos, alguém precisa sair para descobrir o que de fato aconteceu. Quando as pessoas se tornam supersticiosas, começam a olhar para a Academia e a pensar: quem é aí que anda mexendo com forças obscuras que mais valeria deixar em paz? Quem devemos atirar numa grande fogueira flamejante?

— Quer dizer que vocês fazem muito esse tipo de coisa? — Gesticulou com a maçã parcialmente comida. — Investigações?

Abanei a cabeça:

— Apenas despertei a antipatia de um professor. Ele se certificou de que eu fosse sorteado para fazer esta viagenzinha.

Não era uma mentira ruim, considerando-se que fora tirada da ponta da língua. Poderia até sustentar-se, caso Alys saísse fazendo perguntas, porque algumas partes eram verdadeiras. Quando a necessidade o exige, sou um excelente mentiroso. Não é a mais nobre das habilidades, mas é útil. Combina muito com a arte cênica e com contar histórias, e aprendi os três com meu pai, que era um mestre rematado.

— Você é mesmo cheio de conversa fiada — disse Alys sem maiores rodeios.

Fiquei imóvel, com os dentes a meio caminho de uma mordida na maçã. Recuei, deixando marcas brancas na casca vermelha.

— Perdão, o que você disse?

Ela deu de ombros.

— Se não quer me contar, tudo bem. Mas não invente histórias pelo desejo equivocado de me agradar ou me impressionar.

Respirei fundo, hesitei e falei devagar:

— Não quero mentir para você sobre a razão de estar aqui. Mas tenho medo do que você pode pensar se eu lhe disser a verdade.

Os olhos dela ficaram sombrios, pensativos, sem revelar nada.

— Tente — disse-me finalmente, com um aceno quase imperceptível. — Nisso eu acredito.

Deu uma dentada na maçã e me fitou demoradamente enquanto mastigava, sem nunca tirar os olhos dos meus. Seus lábios eram úmidos e mais vermelhos que a maçã.

— Ouvi uns boatos — acabei dizendo. — E quero saber o que aconteceu aqui. É apenas isso, de verdade. Eu só...

— Escute, Vanitas, desculpe-me — fez ela, dando um suspiro e passando a mão pelo cabelo. — Eu não devia tê-lo forçado. Não é da minha conta, na verdade. Sei como é ter segredos.

Quase lhe contei tudo nesse momento.

Toda a história de meus pais, da minha segunda vida, do Sombraim, do homem de olhos negros e sorriso de pesadelo. Mas iria parecer a invenção desesperada da criança apanhada numa mentira. Assim, em vez disso, segui o rumo dos covardes e permaneci calado.

— Assim você nunca encontrará o verdadeiro amor — disse Alys.

Saí do meu devaneio, confuso.

— Desculpe, o que disse?

— Você come o miolo da sua maçã — comentou ela, com ar divertido. — Come tudo em volta, depois vai de baixo para cima. Nunca vi ninguém fazer isso.

— É um velho hábito — respondi com displicência, por não querer dizer-lhe a verdade. Dizer que houvera uma época na minha vida em que o miolo da maçã era tudo que eu costumava encontrar, e ainda ficava contente. — O que você quis dizer antes disso?

— Você nunca fez essa brincadeira? — perguntou Alys, levantando o miolo de sua maçã e segurando o cabinho com dois dedos. — Você pensa numa letra e gira a maçã. Se o cabo continuar preso, pensa em outra e gira de novo. Quando o cabo se solta... — e o dela se soltou, nesse momento — ...você fica sabendo a primeira letra do nome da pessoa por quem se apaixonará.

Baixei os olhos para o pedacinho de maçã que me restava. Não era o bastante para segurar e girar.

Comi a última sobra e joguei fora o cabinho.

— Parece que meu destino é ser solitário.

— Lá vai você de novo: sete palavras — fez ela, sorridente. — Já notou que você sempre faz isso?

Demorei um minuto para perceber a que ela se referia, mas, antes que pudesse responder, Alys já tinha prosseguido:

— Ouvi dizer que as sementes fazem mal. Têm arsênico.

— Isso é história da carochinha — retruquei. Tinha sido uma das 10 mil perguntas que eu fizera a Marcy na época em que ele viajava com a trupe: — Não é arsênico. É cianureto, e não há uma quantidade suficiente para fazer mal, a menos que a pessoa coma baldes de sementes.

— Ah — fez Alys, fitando a sobra de sua maçã com ar especulativo e começando a comê-la de baixo para cima.

— Você estava me contando o que aconteceu com o Mestre Freixo antes da minha interrupção grosseira — instiguei-a, com toda a delicadeza possível.

Alys deu de ombros.

— Não há muito mais para contar. Vi o fogo, cheguei mais perto, ouvi mais gritaria e comoção...

— E o fogo?

Ela hesitou.

— Negro.

Senti uma espécie de antecipação sombria avolumar-se em mim. Agitação por finalmente me aproximar de respostas sobre o Sombraim, medo da ideia de estar próximo deles.

— Como eram as pessoas que a atacaram? Como você escapou?

Alys deu uma risada amarga.

— Ninguém me atacou. Vi as silhuetas de umas formas desenhadas contra o fogo e saí correndo feito o diabo — explicou.

Levantou o braço enfaixado e pôs a mão na lateral da cabeça:

— Devo ter entrado de cabeça numa árvore e me nocauteado. Acordei hoje de manhã, na cidade. Essa era a outra razão por que eu precisava voltar — prosseguiu. — Não sei se Mestre Freixo ainda pode estar aqui. Não ouvi ninguém na cidade falar de terem encontrado um corpo a mais, só que não podia indagar sem deixar todos desconfiados...

— E ele não gostaria disso.

Ela confirmou com um aceno.

— Não duvido que ele transforme isso em outro teste, para ver até onde consigo ficar de boca fechada — disse, e me lançou um olhar significativo. — Por falar nisso...

— Farei questão de me mostrar terrivelmente surpreso se encontrarmos alguém. Não se preocupe.

Alys me deu um sorriso nervoso.

— Obrigada. Só espero que ele esteja vivo. Investi duas onzenas inteiras na tentativa de conquistar seu apoio — disse, bebendo um último gole da minha água e me devolvendo a garrafa. — Vamos dar uma olhada por aí?

Levantou-se meio trôpega enquanto eu guardava a garrafa na sacola de viagem, observando-a pelo canto do olho. Eu havia trabalhado na Iátrica durante quase um ano. Alys levara uma pancada tão forte na têmpora esquerda que ficara com um olho roxo e um hematoma que passava muito da orelha, avançando pelo couro cabeludo. O braço direito estava enfaixado e, por sua maneira de andar, calculei que ela também tinha uns machucados sérios no lado esquerdo do corpo, se não umas costelas quebradas.

Se ela se esborrachara numa árvore, devia ter sido uma árvore de formato bem estranho.

Mesmo assim, não expus essa ideia. Não a pressionei.

Como poderia? Eu também sabia o que era ter segredos.