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Chapter 108 - CVII. FREIXO

Ao sair do quarto, Alys virou à esquerda, não à direita.

A princípio achei que estivesse desorientada, mas, quando chegou a uma escada nos fundos, percebi que, na verdade, estava tentando sair sem passar pelo salão. Achou a porta que dava para a viela, mas ela estava firmemente trancada.

Assim, fomos para a parte da frente. Mal entramos no salão, tive aguda consciência dos olhares de todos voltados para nós. Alys traçou uma reta para a porta da entrada, deslocando-se com a lenta determinação de uma nuvem de tempestade.

Quase havíamos saído quando o homem atrás do bar nos chamou.

— Ei! Vocês aí!

Os olhos de Alys se desviaram para o lado. Sua boca desenhou uma linha fina e ela continuou em direção à porta, como se não tivesse ouvido.

— Eu resolvo com ele — eu lhe disse em voz baixa. — Espere por mim. Saio num segundo.

Fui até o hospedeiro de expressão carregada.

— Então, aquela é a sua prima? — perguntou-me. — O prefeito disse que ela pode ir embora?

— Pensei que o senhor não quisesse ouvir falar desse assunto.

— Com certeza não quero. Mas ela usou o quarto, fez refeições, e eu chamei o médico para lhe fazer um curativo.

Olhei-o com uma expressão dura:

— Se houver um médico nesta cidade que valha mais que meio lumen, então eu sou o rei de Mitreza.

— Ela me deve meio crimo, ao todo — insistiu o homem. — Atadura não é de graça, e mandei uma mulher ficar sentada com ela, esperando-a acordar.

Eu duvidava muito que lhe fosse devida metade desse valor, mas certamente não queria problemas com o prefeito da cidade. Na verdade, não queria nenhum tipo de atraso. Dadas as tendências de Alys, meu medo era que, se a perdesse de vista por mais de um minuto, ela desapareceria feito as brumas da manhã.

Tirei cinco iyanes da bolsa e espalhei-os no balcão do bar.

— Todo trapaceiro lucra com a peste — comentei em tom sarcástico, e me retirei.

Senti um alívio ridículo ao ver Alys esperando do lado de fora, encostada no poste de amarrar cavalos. Tinha os olhos fechados e o rosto inclinado para o sol. Deu um suspiro satisfeito e se virou para o som de meus passos que se aproximavam.

— Foi tão ruim assim? — indaguei.

— No começo eles até foram muito gentis — admitiu ela, apontando com o braço enfaixado. — Mas uma velha ficou me examinando sem parar — acrescentou.

Franziu o cenho e afastou o longo cabelo preto, dando-me uma visão clara da mancha roxa que subia de sua têmpora até a raiz dos cabelos:

— Você conhece o tipo: uma daquelas solteironas cheias de tempo livre, com a boca murcha feito traseiro de gato.

Caí na gargalhada, e o sorriso súbito de Alys foi como o sol espiando por trás de uma nuvem. Mas seu rosto voltou a ficar sombrio e ela prosseguiu:

— A velha ficava me olhando daquele jeito. Como se eu devesse ter tido a decência de morrer com todos os outros. Como se tudo aquilo fosse culpa minha.

Abanou a cabeça:

— Mas ela foi melhor que os velhos. O prefeito passou a mão na minha perna! — acrescentou, estremecendo. — Vieram até os guardas, todos cheios de estalos na língua para cima de mim, como se me dessem alguma importância, mas só estavam lá para me bombardear com perguntas: "O que você estava fazendo lá?", "O que aconteceu?", "O que você viu?"...

O desdém na voz de Alys me fez engolir minhas próprias perguntas tão depressa que por pouco não prendi a língua entre os dentes. É da minha natureza fazer perguntas, para não mencionar que todo o objetivo daquela corrida louca para os sopés das montanhas tinha sido investigar o que acontecera.

Mesmo assim, o tom de sua voz deixou claro que ela não estava disposta a responder coisa alguma naquele momento. Ajeitei melhor a sacola de viagem no ombro e me ocorreu uma lembrança:

— Espere aí. As suas coisas. Você deixou todas elas no seu quarto.

Alys hesitou por uma fração de segundo.

— Acho que não tinha nada meu lá — disse, como se essa ideia nem sequer lhe houvesse ocorrido.

— Tem certeza de que não quer voltar para ver?

Ela balançou a cabeça com firmeza.

— Eu saio de onde não sou bem-vinda — disse, com ar displicente. — O resto eu posso recuperar no caminho.

Começou a descer a rua e me coloquei a seu lado. Entrou numa ruela estreita que levava para oeste. Passamos por uma senhora idosa, que estava pendurando um secudo feito de feixes de aveia. O boneco usava um tosco chapéu de palha e calças de aniagem.

— Para onde estamos indo? — perguntei.

— Preciso ver se minhas coisas estão lá na fazenda dos Mathen. Depois disso, aceito sugestões. Aonde você planejava ir antes de me encontrar?

— Para ser sincero, eu mesmo estava indo à fazenda dos Mathen.

Alys me olhou de soslaio.

— Vá lá, que seja. São só dois quilômetros até a fazenda. Podemos chegar lá ainda com muita luz.

As terras ao redor de Nebron eram agrestes, a maior parte composta de mata densa, cortada por trechos de terreno pedregoso. Depois a estrada dobrava uma curva e aparecia um campinho perfeito de trigo dourado enfiado entre as árvores, ou aninhado num vale cercado por escarpas de pedra escura.

Fazendeiros e lavradores pontilhavam os campos, cobertos de cizânia e se movendo com o lento cansaço que vem da certeza de que metade da colheita do dia ainda está por fazer.

Só havíamos caminhado um minuto quando ouvi um bater conhecido de cascos às nossas costas. Virei-me e deparei com uma carrocinha aberta, que chacoalhava devagar ladeira acima.

Alys e eu nos afastamos para os arbustos, já que a estrada mal tinha largura suficiente para a carroça. Um lavrador de ar exausto, curvado sobre as rédeas, nos olhou com desconfiança de onde estava sentado.

— Estamos indo para a fazenda dos Mathen — disse Alys quando ele chegou mais perto. — O senhor se importaria de nos dar uma carona?

O homem nos fitou com ar sombrio, depois fez sinal para a parte de trás da carroça.

— Vou passar pelo velho Mordzulmo. De lá vocês terão que seguir sozinhos.

Alys e eu subimos e nos sentamos de costas para o lavrador, na traseira de tábuas, com os pés balançando para fora da borda. Não era muito mais rápido que andar, mas ficamos contentes por não usar nossos pés.

Seguimos em silêncio. Era óbvio que Alys não estava interessada em discutir coisas na presença do lavrador, e gostei de dispor de um momento para concatenar as ideias. Eu havia planejado contar qualquer mentira necessária para arrancar da testemunha as informações que queria.

Alys tinha complicado a situação. Eu não queria mentir-lhe, mas, ao mesmo tempo, não podia me arriscar a lhe dizer coisas demais. A última coisa que desejava era convencê-la de que era maluco, contando histórias extravagantes do Sombraim...

E assim seguimos em silêncio. O simples estar perto dela era prazeroso. Talvez você não imagine que uma garota enfaixada e de olho roxo pudesse ser bonita, mas Alys era. Linda como a Lua: não impecável, talvez, mas perfeita.

O lavrador ergueu a voz, rompendo meu devaneio.

— Aqui é Mordzulmo.

Morro dos Ulmos.

Olhei em volta à procura de algum ulmo, mas não vi nenhum. Foi uma pena, porque eu bem que poderia sentar à sombra de uma árvore frondosa e me refrescar um pouco. As horas de cavalgada tinham me deixado suado e cheirando a cavalo.

Agradecemos ao lavrador e pulamos da carroça. Alys seguiu na frente pela trilha de terra que serpeava para lá e para cá, subindo a encosta do morro, passando por entre as árvores e um ou outro afloramento de rocha escura e desgastada.

Ela me parecia mais firme do que ao sairmos da taberna, mas conservava os olhos no chão, escolhendo onde pisar com um cuidado deliberado, como se não confiasse muito em seu equilíbrio.

De repente me veio uma ideia:

— Recebi o seu bilhete — informei, tirando o papel dobrado de um bolso da capa. — Quando foi que você o deixou lá?

— Faz quase duas onzenas.

Fiz uma careta.

— Só o achei ontem à noite.

Alys balançou a cabeça.

— Fiquei preocupada quando você não apareceu. Achei que talvez ele tivesse caído, ou ficado tão molhado que você não houvesse conseguido lê-lo.

— Eu não tenho usado a janela ultimamente.

Alys deu de ombros, com ar descontraído.

— Foi mesmo bobagem minha presumir que a usaria. Pensei em deixá-lo embaixo do seu travesseiro, mas queria ter certeza de que seria você a encontrá-lo.

— Quem mais encontraria algo na minha cama?

Alys me fitou com um olhar franco.

— Acho que você superestima a minha popularidade — continuei, no tom mais seco possível, fazendo o máximo para não enrubescer.

E tentei pensar em algo para acrescentar, algo que explicasse o que ela poderia ter visto na ocasião em que Faela me dera a capa de presente na Foles. Não me ocorreu nada:

— Lamento ter faltado ao almoço que combinamos.

Alys ergueu os olhos, com ar divertido.

— O Droch me contou que você ficou preso num incêndio, ou coisa assim. Que ficou com um ar decididamente arrasado.

— Senti-me arrasado. Mais pela sua falta do que pelo incêndio...

Ela revirou os olhos:

— Tenho certeza de que ficou terrivelmente aflito. Fez-me um favor, de certa maneira. Enquanto estive sentada lá... sozinha... toda tristonha...

— Eu já pedi desculpas.

— ...um cavalheiro mais velho se apresentou a mim. Conversamos, travamos conhecimento um com o outro... — disse ela, encolhendo os ombros e me olhando de lado, quase envergonhada. — Tenho me encontrado com ele desde então. Se tudo continuar a correr bem, acho que ele será meu mecenas antes do fim do ano.

— É mesmo? — comentei, sentindo-me borrifado pelo alívio como se fosse água fria. — Isso é maravilhoso, e já não é sem tempo. Quem é ele?

Alys balançou a cabeça, fazendo o cabelo escuro cair em volta do rosto.

— Não posso dizer. Ele é obcecado com a sua privacidade. Não quis me dizer seu nome verdadeiro por mais de uma onzena. Até hoje não sei se o nome que me deu é real.

— Se não sabe direito quem ele é — retruquei, devagar —, como você sabe que é um cavalheiro?

Era uma pergunta boba. Ambos conhecíamos a resposta, mas ela a deu assim mesmo:

— O dinheiro. As roupas. O porte — disse e encolheu os ombros. — Mesmo que seja apenas um comerciante rico, ele ainda dará um bom mecenas.

— Mas não um grande mecenas. As famílias de mercadores não têm a mesma estabilidade...

— ...e seus sobrenomes não têm o mesmo peso — ela concluiu, com outro dar de ombros. — Meio pão é melhor do que nenhum, e estou cansada de não ter nenhum. Tenho trabalhado muito para fazê-lo aproximar-se de mim. Mas ele é muito esquivo... Nunca nos encontramos duas vezes no mesmo lugar, e nunca em público. As vezes ele marca um encontro e nem sequer aparece. Não que isso seja novidade para mim...

Alys oscilou quando uma pedra se deslocou sob seu pé. Estendi-lhe a mão e ela se agarrou em meu braço e meu ombro para não cair. Por um momento ficamos encostados um no outro, e tive aguda consciência de seu corpo contra o meu enquanto ela usava um instante para se equilibrar.

Firmei-a e nos afastamos. No entanto, depois de recuperar o equilíbrio, ela continuou com a mão pousada de leve em meu braço. Movimentei-me devagar, como se um pássaro selvagem tivesse pousado ali e eu tentasse desesperadamente não assustá-lo, para evitar que voasse.

Pensei em passar um braço em volta dela, em parte para lhe dar apoio, em parte por razões mais óbvias. Descartei prontamente a ideia. Ainda me lembrava da expressão de seu rosto ao mencionar que o prefeito passara a mão em sua perna. O que eu faria se ela reagisse a mim de maneira semelhante?

Os homens se acumulavam em bando ao seu redor e, por nossas conversas, eu sabia o quanto ela os achava cansativos. Não suportava a ideia de cometer os mesmos erros que eles simplesmente por me deixar cair nessa. Era melhor não me arriscar a ofendê-la, melhor ser prudente.

Como eu já disse, há uma enorme diferença entre ser destemido e ser audacioso.

Seguimos a trilha em seus múltiplos meandros e continuamos a subir a encosta. Tudo era silêncio, exceto o vento que agitava o capim alto.

— Então quer dizer que ele é sigiloso? — instiguei-a gentilmente, com medo de que o silêncio não tardasse a se tornar incômodo.

— Sigiloso não é nem metade da história — disse Alys, revirando os olhos. — Uma vez, uma mulher me ofereceu dinheiro para lhe dar informações sobre ele. Banquei a boba e depois, quando lhe falei disso, ele me contou que tinha sido um teste para ver até que ponto eu era digna de confiança. Noutra ocasião uns homens me fizeram ameaças. Desconfio que foi outro teste.

O sujeito me pareceu bastante sinistro, como um fugitivo da lei ou alguém que estivesse se escondendo da família. Já ia dizendo isso quando vi Alys me olhando, ansiosa. Estava preocupada, com medo de que eu a visse com maus olhos por satisfazer os caprichos de um nobrezinho paranoico.

Pensei em minha conversa com Droch, no fato de que, por mais difícil que fosse a minha sina, a dela era sem dúvida pior. O que eu suportaria se conseguisse ganhar o apoio de um nobre poderoso? A que me submeteria para encontrar alguém que me desse dinheiro para as cordas do alaúde, garantisse minha roupa e minha alimentação e me protegesse de cretinos perversos como Drazno?

Refreei meus comentários anteriores e lhe dei um sorriso compreensivo:

— É bom ele ser rico a ponto de compensar sua chateação. Com sacos de dinheiro chovendo a cântaros. — Alys levantou de leve o canto da boca e senti seu corpo relaxar, contente por eu não a estar julgando.

— Ora, isso é que seria incrível, não? — fez ela, e seus olhos dançaram, dizendo sim. — Ele é a razão de eu estar aqui. Disse-me para aparecer nesse casamento. É muito mais rural do que eu esperava, mas... — Tornou a dar de ombros, num comentário silencioso sobre os desejos inexplicáveis da nobreza. — Eu esperava que meu futuro mecenas estivesse presente... — Interrompeu-se, rindo. — Será que isso está fazendo algum sentido? 

— Invente um nome para ele — sugeri.

— Escolha um. Eles não lhe dão aulas sobre nomes na Academia?

— Anabele — propus.

— Eu me recuso a me referir a meu mecenas em potencial como Anabele — retrucou ela, rindo.

— Duque do Dinheirão.

— Ora, agora você só está sendo irreverente. Tente de novo.

— Diga-me quando eu acertar um que lhe agrade... Federico, o Petulante. Franco. Feroce.

Ela abanou a cabeça enquanto chegávamos ao alto do morro. Quando enfim o escalamos, o vento nos atingiu em rajadas. Alys agarrou meu braço para se equilibrar e levantei uma das mãos para proteger os olhos da poeira e das folhas. Tossi, surpreso, quando o vento empurrou uma folha para dentro da minha boca, fazendo-me engasgar e espirrar.

Alys achou isso divertidíssimo.

— Ótimo — disse eu, pescando a folha na boca. Era amarela, em forma de ponta de lança. — O vento decidiu por nós. Mestre Freixo.

— Tem certeza que não é Mestre Olmeira? — perguntou ela, examinando a folha. — Esse é um erro comum.

— Tem gosto de freixo. Além disso, olmeira é feminino.

Alys balançou a cabeça com ar sério, embora seus olhos dançassem.

— Pois que seja Freixo.

  1. cizânia;
    1. A cizânia é uma planta que pode prejudicar os cultivares de trigo, pois compete pelos mesmos nutrientes do solo. A cizânia e o trigo são bastante semelhantes e apresentam diferenças somente na fase adulta.
    2. JOIO.
  2. cântaro;
    1. espécie de vaso grego de barro ou metal usado para beber, de bojo largo e gargalo, com duas asas, usado para conter e transportar líquidos.
  3. freixo;
    1. A madeira de freixo é nobre, sendo apreciada como material duro e denso, que não só é forte, como elástico. Desde que seja submetida a uma boa usinagem, é ideal para pregar, aparafusar e colar, podendo igualmente ser pintada e polida, de modo a realizar bons acabamentos.
    2. Freixo-de-folhas-estreitas (Fraxinus angustifolia).