Fiquei satisfeito por percorrer o último quilômetro usando minha própria energia, o que me ajudou a diminuir a rigidez das pernas e das costas. Ao chegar ao cume do morro, avistei Nebron espalhada lá embaixo, aninhada numa tigela rasa formada pelas montanhas. Não era uma cidade grande, de forma alguma: talvez uma centena de construções dispersas por umas 12 ruas sinuosas de terra batida.
Em minha infância com a trupe eu havia aprendido a avaliar as cidades. É muito parecido com interpretar a plateia quando se toca numa taberna. Os riscos são maiores, é claro: se a gente toca a música errada numa taberna, pode levar uma vaia, mas, se avalia mal uma cidade inteira, as coisas podem ficar piores do que isso.
Assim, avaliei Nebron. Era um tanto inusitada, a meio caminho entre uma cidade de mineradores e uma cidade de lavradores. Eles não tenderiam a suspeitar imediatamente dos estranhos, mas a cidade era pequena o bastante para que todos soubessem, à primeira olhadela, que o sujeito não era morador local.
Fiquei surpreso ao ver pessoas pondo bonecos de pano feitos com enchimento de palha do lado de fora das casas. Isso significava que, apesar da proximidade de Torrente e da Academia, Nebron era uma comunidade realmente atrasada.
Toda cidade tinha algum tipo de festival da colheita, mas, nos últimos tempos, quase todo mundo se arranjava com uma fogueira e um pileque. O fato de ela seguir antigas tradições folclóricas era indício de que a população de Nebron era mais supersticiosa do que eu normalmente esperaria.
Ainda assim, gostei de ver os secudos. Gosto de festas tradicionais da colheita, com superstições e tudo. Na verdade, elas são um tipo de gênero teatral.
A igreja dos ardonianos era o melhor prédio da cidade, com três andares e feito de cantaria. Nisso nada havia de estranho, mas, fixada acima das portas da frente, muito acima do chão, ficava uma das maiores rodas de ferro que eu já tinha visto. E era ferro de verdade, não apenas madeira pintada. Tinha três metros de altura e devia pesar uma sólida tonelada.
Em condições habituais, uma exibição daquela natureza me deixaria nervoso, mas, como Nebron era uma cidade mineradora, calculei que aquilo mais demonstrava orgulho cívico do que uma religiosidade fanática.
Quase todas as outras construções da cidade ficavam no rés do chão e eram de madeira tosca, com telhados de ripas de madeira. A hospedaria, no entanto, era respeitável, com dois andares, paredes firmes de tijolo e telhas de barro vermelho. Era fatal haver por lá alguém que tivesse mais informações sobre o casamento.
Havia apenas um punhado de pessoas, o que não era de admirar, considerando-se que era plena época da colheita e que ainda restavam cinco ou seis boas horas de luz do dia. Armei minha melhor expressão de ansiedade ao me dirigir ao bar onde se encontrava o hospedeiro.
— Desculpe-me, lamento muito incomodá-lo, mas estou procurando uma pessoa — disse-lhe.
O hospedeiro era um homem de cabelo preto e cenho perpetuamente carregado.
— E quem é?
— Minha prima esteve aqui para ir a um casamento, e ouvi dizer que houve uns problemas.
À palavra casamento, o sobrolho carregado do hospedeiro assumiu um ar assustado. Senti que os dois homens mais adiante no bar não me olharam, fizeram questão de nem sequer olhar na minha direção.
Portanto, era verdade: algo terrível tinha acontecido.
Vi o hospedeiro estender a mão e apertar os dedos no balcão do bar. Levei um segundo para perceber que estava tocando na cabeça de ferro de um prego cravado na madeira.
— Um negócio feio — falou, pouco depois. — Não tenho nada a dizer a respeito.
— Por favor — pedi, deixando a apreensão transparecer em meu tom. — Eu estava visitando a família em Evesdon quando chegou o boato de que havia acontecido alguma coisa. Estão todos ocupados, terminando a colheita da aveia, e por isso prometi vir até aqui e ver qual era o problema.
O hospedeiro me olhou de cima a baixo. Um bisbilhoteiro boquiaberto ele poderia despachar, mas não tinha como me negar o direito de saber o que havia acontecido com um membro da família.
— Tem alguém lá em cima que esteve lá — acabou dizendo. — Não é daqui. Vai ver que é a sua prima.
Uma testemunha! Abri a boca para fazer outra pergunta, mas ele abanou a cabeça.
— Não sei de nada — disse-me com firmeza. — E não quero saber.
Deu-me as costas e ficou subitamente ocupado com as torneiras de seus barris de cerveja.
— Lá em cima, no fim do corredor, à esquerda.
Atravessei o salão e comecei a subir a escada. Nesse momento senti que todos evitavam me olhar. O silêncio deles e o tom do hospedeiro deixaram claro que quem quer que estivesse lá em cima não era um dos muitos que haviam comparecido ao casório, mas o único.
O único sobrevivente.
Fui até o fim do corredor e bati à porta, primeiro baixinho, depois de novo, mais alto. Abri a porta devagar para não assustar quem estivesse lá dentro.
Era um quarto estreito com uma cama estreita. Nela estava deitada uma mulher inteiramente vestida, com um braço envolto numa atadura. A cabeça estava virada para a janela, de modo que eu só podia ver seu perfil.
Mesmo assim, reconheci-a.
Alys.
Devo ter feito algum ruído, porque ela se virou para me olhar. Arregalou um pouco os olhos e, para quebrar o hábito, dessa vez foi ela quem ficou sem fala.
— Eu soube que você teve um problema — comentei, com ar indiferente. — E por isso pensei em vir ajudá-la.
Ela tornou a arregalar os olhos, depois os espremeu.
— Você está mentindo — disse, torcendo a boca com ironia.
— Estou, sim. — admiti. — Mas é uma boa mentira — acrescentei.
Dei um passo para dentro do quarto e fechei a porta sem barulho:
— Eu teria vindo antes, se tivesse sabido.
— Qualquer um pode viajar, recebida a notícia — disse ela com desdém. — É preciso um tipo especial de homem para aparecer sem ter sabido que há problemas.
Ergueu o corpo, sentou-se e se virou para mim, balançando as pernas ao lado da cama.
Então, olhando mais de perto, notei que havia um machucado no alto de uma de suas têmporas, além da atadura no braço. Dei mais um passo em sua direção.
— Você está bem? — perguntei.
— Não estou — fez ela, em tom seco. — Mas poderia estar muito pior.
Pôs-se de pé devagar, como se não estivesse segura de sua firmeza. Deu um ou dois passos cautelosos e pareceu mais ou menos satisfeita:
— Certo. Eu consigo andar. Vamos sair daqui.