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Chapter 93 - XCII. COMEMORAÇÃO

Atraí Alas e Leif para a Foles com a promessa de bebida grátis, a única forma de generosidade com que eu podia arcar. 

Entenda, embora a interferência de Drazno pudesse me impedir de arranjar um nobre rico como mecenas, ainda havia diversos amantes da música que me ofereciam mais bebidas do que eu poderia consumir confortavelmente sozinho.

Para isso existiam duas soluções simples. Eu poderia tornar-me um bêbado, ou usar um arranjo que existe desde que surgiram as tabernas e os músicos. Espere eu abrir a cortina para revelar um segredo há muito guardado pelos menestréis...

Digamos que você esteja numa hospedaria. Você me ouve tocar. Ri, chora e, de modo geral, deslumbra-se com a minha arte. Depois quer demonstrar sua apreciação, mas não dispõe de recursos para me oferecer um presente substancial em dinheiro, como faria um mercador ou um nobre abastado.

Assim, você me oferece uma bebida.

Eu, porém, já tomei uma bebida. Ou várias. Ou talvez esteja tentando manter a cabeça sóbria. Será que recuso sua oferta? É claro que não. Isso apenas desperdiçaria uma oportunidade valiosa, e é muito provável que fizesse você se sentir esnobado.

Em vez disso, aceito, com toda a gentileza, e peço ao rapaz do bar um hidromel de Greysdawn. Ou um mule. Ou um vinho branco de determinada safra.

O importante não é o nome da bebida. O importante é que, na verdade, ela não existe. O homem do bar me dá água.

Você paga a bebida, eu lhe agradeço muito e todos vão embora felizes. Mais tarde o barman, o taberneiro e o músico dividem o seu dinheiro por três.

Melhor ainda, alguns estabelecimentos sofisticados nos permitem reservar as bebidas como uma espécie de crédito para uso futuro. A Foles era um deles.

E foi assim que, apesar de minha condição empobrecida, consegui levar uma garrafa inteira de smutten para a mesa em que Alas e Leif me esperavam.

Alas deu uma olhada apreciativa na garrafa quando me sentei.

— Qual é a comemoração especial?

— O Kelvin aprovou minha lamparina de simpatia. Vocês estão olhando para o mais novo artífice remunerado do Arcano — respondi, meio sem jeito.

A maioria dos estudantes leva pelo menos três ou quatro períodos para concluir o estágio como aprendiz. Guardei segredo de meu sucesso duvidoso com a lâmpada.

— Já era tempo — comentou Alas, secamente. — Você levou o quê? Quase três meses? As pessoas estavam começando a dizer que você tinha perdido o seu toque.

— Achei que vocês ficariam mais satisfeitos — disse eu, tirando o lacre de cera da tampa da garrafa. — Talvez meus dias de pobretão estejam chegando ao fim.

Leif produziu um ruído indiferente.

— Até que você paga suas rodadas direitinho.

— Vou beber ao seu sucesso contínuo como artífice — disse Alas, batendo na mesa com o copo vazio —, sabendo que ele levará a mais drinques no futuro.

— Além disso — acrescentei, tirando o finalzinho do lacre —, há sempre a possibilidade de eu o embriagar o bastante para que um dia você me deixe entrar no Arquivo, quando estiver trabalhando na recepção — sugeri. Mantive um tom cuidadosamente jovial e dei uma espiada nele, para avaliar sua reação.

Alas bebeu um gole devagar, sem me olhar de frente.

— Não posso.

A decepção aninhou-se com amargura na boca do meu estômago. Fiz um gesto de descaso, como se não conseguisse acreditar que ele tinha levado minha brincadeira a sério.

— Ora, eu sei...

— Eu pensei nisso — interrompeu Alastor —, uma vez que você não merecia a punição que recebeu e sei quanto isso o tem incomodado. — Bebeu um trago e continuou: — Às vezes o Loran suspende uns alunos. Durante alguns dias, por falarem alto demais nos Túmulos. Ou durante umas onzenas, quando são descuidados com um livro. Mas banimento é outra coisa. Fazia anos que não acontecia. Todo mundo sabe disso. Se alguém visse você... — Hesitou e abanou a cabeça. — Eu perderia minha posição de escriba. Nós dois poderíamos ser expulsos.

— Não se martirize — disse eu. — O simples fato de você ter pensado nisso significa...

— Estamos ficando sentimentais aqui — interrompeu Leif, batendo com o copo na mesa. — Abra a garrafa e vamos beber ao Kelvin, para que ele fique tão impressionado que converse com o Loran e suspenda o seu banimento do Arquivo.

Sorri e comecei a usar o saca-rolhas.

— Tenho um plano melhor. Proponho que bebamos à perpétua inimizade e incomodação de um certo Drazno Grozzi.

— Acho que todos podemos concordar com isso — disse Alas, levantando o copo.

— Deus do céu! — exclamou Leif baixinho. — Olhem só o que o Droch encontrou.

— O que foi? — perguntei, concentrando-me em tirar a rolha inteira.

— Ele tornou a conseguir ficar com a mulher mais linda do lugar — respondeu Leif, num resmungo atipicamente mal-humorado. — É de deixar a gente com ódio de um homem.

— Leif, o seu gosto em matéria de mulheres é, na melhor das hipóteses, questionável — comentei.

A rolha soltou-se com um som agradável e eu a levantei, triunfalmente, para que meus amigos a vissem. Nenhum dos dois prestou a menor atenção. Seus olhos estavam grudados na porta.

Virei-me para olhar.

— Aquela é a Alys.

Leif voltou-se para mim.

— Alys?

Franzi o cenho.

— Alice. Alys. É a moça de quem eu falei. A que cantou comigo. Ela usa uma porção de nomes diferentes. Não sei por quê.

Alastor me olhou fixamente:

— Aquela é a sua garota? — perguntou, com a voz carregada de descrença.

— A garota do Droch — corrigiu Leif gentilmente.

Era o que parecia. O belo e musculoso Droch conversava com ela daquele seu jeito descontraído. Alys riu e passou o braço em volta dele, num abraço casual. Senti um grande peso assentar-se em meu peito ao vê-los conversar.

Depois Droch virou-se e apontou. Ela acompanhou o gesto, deparou com meu olhar e se iluminou ao sorrir para mim. Retribuí o sorriso por mero reflexo. Meu coração voltou a bater. Fiz sinal para que ela se aproximasse. Depois de uma palavra rápida com Droch, Alys começou a caminhar por entre as mesas em direção a nós.

Bebi um gole rápido de smutten, enquanto Leif se virava para mim com uma incredulidade quase reverente.

Era a segunda vez que eu via Alys em roupas de passeio. Nessa noite, porém, ela usava um vestido verde-escuro que deixava os braços e ombros à mostra. Estava deslumbrante e sabia disso. Sorriu.

Nós três nos levantamos quando chegou.

— Eu tinha esperança de encontrá-lo aqui — disse ela.

Fiz uma pequena mesura.

— E eu esperava ser encontrado. Estes são dois dos meus melhores amigos. Leif... — ele deu um sorriso ensolarado e afastou o cabelo dos olhos — ...e Alastor — que acenou com a cabeça. — Esta é a Alice.

Ela se acomodou numa cadeira.

— O que traz à cidade um grupo de rapazes tão bonitos?

— Estamos planejando a queda de nossos inimigos — disse Leif.

— E comemorando — apressei-me a acrescentar.

Alastor levantou o copo num brinde:

— À confusão do inimigo.

Leif e eu o acompanhamos, mas parei ao me lembrar que Alys não tinha copo.

— Desculpe-me. Posso lhe oferecer uma bebida?

— Eu esperava que você me oferecesse um jantar — respondeu ela —, mas me sentiria culpada por roubá-lo de seus amigos.

Minha mente acelerou-se na tentativa de pensar numa forma gentil de me livrar desse compromisso.

— Você está presumindo que o queremos aqui — disse Alastor, de cara séria. — Estará nos fazendo um favor se o levar embora.

Alys inclinou-se para a frente, atenta, um sorriso a lhe roçar os cantos rosados da boca.

— É mesmo?

Alastor balançou a cabeça, com ar grave.

— Ele bebe mais até do que fala.

Alys me olhou de forma provocante.

— Tanto assim?

— Além disso — continuou Leif inocentemente —, ele passaria dias emburrado se perdesse a oportunidade de estar na sua companhia. Seria inteiramente inútil para nós se você o deixasse aqui.

Meu rosto queimou de rubor e tive a ânsia repentina de esganar Leif. Alys deu um risinho meigo.

— Nesse caso, acho melhor levá-lo — disse.

Levantou-se, fazendo o movimento de um galho de salgueiro que se curvasse ao vento, e me ofereceu a mão. Segurei-a:

— Espero vê-los de novo, Alastor, Leif.

Os dois nos deram um adeusinho e saímos em direção à porta.