— Gostei deles — comentou Alys. — O Alastor é uma pedra em águas profundas. O Leif é um garotinho regando flores no jardim.
Sua descrição arrancou de mim uma gargalhada surpresa.
— Eu não conseguiria me expressar melhor. Você falou em jantar?
— Eu menti — disse ela, com um encanto descontraído. — Mas adoraria a bebida que você me ofereceu.
— Que tal o Barril?
Ela torceu o nariz.
— Velhos demais lá dentro, muitas poucas árvores. Está uma noite agradável para ficarmos ao ar livre.
Apontei para a porta:
— Conduza-nos.
Alys o fez. Deleitei-me sob o reflexo de sua luz e os olhares invejosos dos homens. Ao sairmos da Foles, até Droch pareceu meio enciumado. Quando passei por ele, no entanto, captei um vislumbre de algo diferente em seu olhar. Tristeza? Pena?
Não perdi tempo com isso.
Estava com Alys.
Compramos um pão preto e uma garrafa de vinho de morango ylliano. Depois achamos um lugar afastado num dos muitos jardins públicos espalhados por Torrente. As primeiras folhas caídas do outono bailavam pelas ruas a nosso lado. Alys tirou os sapatos e dançou de leve por entre as sombras, sentindo prazer com a sensação da relva sob os pés.
Instalamo-nos num banco embaixo de um enorme salgueiro, depois o abandonamos e achamos um lugar mais confortável no chão, aos pés da árvore. O pão era consistente e escuro, e cortar pedaços dele proporcionou uma distração para nossas mãos. O vinho era doce e leve e, depois que Alys beijou a garrafa, deixou seus lábios úmidos por uma hora.
Tudo trazia a sensação desesperada da última noite cálida de verão. Falamos de tudo e nada e, durante o tempo todo, eu mal conseguia respirar, por causa da proximidade dela, de seu jeito de se mexer, do som de sua voz ao tocar o ar outonal.
— Seu olhar estava distante agora há pouco — disse Alys. — No que estava pensando?
Encolhi os ombros, ganhando um momento para refletir. Não podia dizer-lhe a verdade. Sabia que todos os homens a elogiavam, cumulavam-na de uma lisonja mais enjoativa do que as rosas. Tomei um rumo mais sutil:
— Uma vez, um dos professores da Academia me disse haver sete palavras que fazem uma mulher se apaixonar — comentei, com um dar de ombros desdenhoso e proposital. — Eu estava pensando em quais seriam elas.
— É por isso que você fala tanto? Na esperança de tropeçar nelas por acaso?
Abri a boca para retrucar. Depois, ao ver seus olhos dançando, comprimi os lábios e tentei reprimir meu enrubescimento constrangido.
Alys colocou a mão em meu braço:
— Não fique calado por minha causa, Vanitas — disse, com meiguice. — Eu sentiria saudade de ouvir sua voz.
Bebeu um gole de vinho:
— De qualquer modo, não deve se incomodar pensando nisso. Você me disse as tais palavras quando nos encontramos pela primeira vez. Disse: Estava pensando no que você faz aqui — comentou, fazendo um gesto irreverente. — Desde aquele momento tornei-me sua.
Num lampejo, veio-me à lembrança nosso primeiro encontro na caravana de Rumi. Fiquei perplexo:
— Pensei que você não se lembrasse.
Ela parou de cortar um pedaço do pão preto e me deu um olhar intrigado:
— Lembrar de quê?
— De mim. Do nosso encontro na caravana do Rumi.
— Ora, vamos — brincou Alys. — Como é que eu poderia esquecer o menino de cabelos prateados que me trocou pela Academia?
Fiquei atônito demais para frisar que não a havia abandonado. Não mesmo.
— Você nunca mencionou isso.
— Nem você — contrapôs ela. — Talvez eu tenha pensado que você me esquecera.
— Esquecê-la? Como é que eu poderia?
Ela sorriu ao ouvir isso, mas baixou os olhos para as mãos.
— Você ficaria surpreso com o que os homens esquecem — disse; depois prosseguiu, num tom mais leve: — Mas, por outro lado, talvez não. Não duvido que tenha esquecido coisas, já que é homem.
— Lembro-me do seu nome, Alys — retruquei. Soou agradável dizê-lo a ela. — Por que você adotou um nome novo? Ou será que Alys foi apenas o que usou na estrada para Ailen?
— Alys — falou ela, baixinho. — Eu quase a havia esquecido. Era uma menina boba.
— Era uma flor desabrochando.
— Deixei de ser Alys há anos, parece — disse ela.
Esfregou os braços nus e olhou em volta, como se de repente se inquietasse com a possibilidade de alguém nos encontrar ali.
— Então devo chamá-la de Alice? Você gostaria mais disso?
O vento agitou os galhos do salgueiro quando ela inclinou a cabeça para me olhar. Seu cabelo imitou o movimento das folhas.
— Você é bondoso. Acho que gosto mais de Alys, vindo de você. Soa diferente quando você o diz. Mais suave.
— Pois Alys será — retruquei em tom firme. — O que aconteceu em Ailen, afinal?
Uma folha desceu flutuando e pousou em sua cabeça. Ela a afastou com um gesto distraído.
— Nada de agradável — respondeu, evitando meu olhar. — Mas nada inesperado, tampouco.
Estendi a mão e ela me devolveu o pão preto.
— Bem, fico feliz por você ter voltado. Minha Aloise.
Alys emitiu um som decididamente impróprio para uma dama refinada.
— Por favor, se algum de nós é o Silver, certamente sou eu. Fui eu que vim procurá-lo — assinalou. — Duas vezes.
— Eu a procuro — protestei. — Só não pareço ter talento para achá-la — acrescentei, e ela revirou os olhos num gesto teatral. — Se você pudesse me recomendar um local e um momento favorável para procurá-la, isso faria uma diferença gigantesca...
Deixei minha frase no ar, transformando-a numa pergunta:
— Amanhã, talvez?
Alys me olhou, risonha.
— Você é sempre tão cauteloso! Nunca conheci um homem que agisse com tanto cuidado — comentou, olhando para meu rosto como se fosse um quebra-cabeça que ela pudesse resolver. — Imagino que amanhã, ao meio-dia, seja um momento favorável. Na Foles.
Senti um calorzinho agradável ao pensar em reencontrá-la.
— Estava pensando no que você faz aqui — matutei em voz alta, relembrando a conversa que parecia ter ocorrido séculos atrás. — Depois disso você me chamou de mentiroso.
Alys inclinou-se para mim e afagou minha mão, num gesto consolador. Recendia a morangos e seus lábios eram de um vermelho perigoso, mesmo à luz do luar.
— Como eu já o conhecia bem, mesmo naquela época!
Conversamos durante as longas horas da noite.
Falei em rodeios sutis do que sentia, não querendo me atrever demais. Pareceu-me que ela talvez estivesse fazendo o mesmo, porém não pude ter certeza. Foi como se executássemos uma daquelas complexas danças da corte sereniana, nas quais os parceiros ficam a meros centímetros de distância, mas, quando são habilidosos, nunca se tocam.
Assim foi nossa conversa. Mas não nos faltou apenas o tato para nos guiar: foi como se também fôssemos estranhamente surdos. E por isso dançamos com muito cuidado, sem saber ao certo que música o outro ouvia, sem ter certeza, talvez, de que o outro sequer estava dançando.
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Droch fazia sentinela à porta, como sempre. Acenou com a mão ao me ver.
— Mestre Vanitas. Receio que tenha-se desencontrado dos seus amigos.
— Achei que teria. Há quanto tempo eles foram embora?
— Faz apenas uma hora — disse ele, alongando os braços para o alto, com uma careta. Depois deixou-os cair com um suspiro cansado.
— Pareceram aborrecidos por eu os ter abandonado?
Droch riu.
— Não aparentemente. Eles também toparam com umas duas beldades. Não tão encantadoras quanto a sua, é claro — disse.
Pareceu constrangido por um momento, depois começou a falar devagar, como se escolhesse as palavras com enorme cuidado:
— Escute, fi... Vanitas. Sei que isso não cabe a mim e espero que você não me leve a mal. — Olhou ao redor e deu uma cusparada súbita. — Diacho! Não sou bom nesse tipo de coisa.
Tornou a voltar os olhos para mim e fez um gesto vago com as mãos.
— Sabe, as mulheres são como o fogo, como chamas. Algumas parecem velas, luminosas e afáveis. Outras são como centelhas isoladas ou brasas, como pirilampos para se perseguir nas noites de verão. Há as que lembram fogueiras, todas feitas de luz e calor durante uma noite e dispostas a ser deixadas depois dela. Outras parecem lareiras: não são grande coisa para se olhar, mas, por baixo, são todas feitas de brasas vivas e quentes, que ardem por muito, muito tempo.
Parou por um momento.
— Mas a Alice... — hesitou — ...a Alice é como uma cascata de fagulhas brotando de um pedaço pontiagudo de ferro segurado por Deus junto à pedra de amolar. Não se pode deixar de olhar, não se consegue deixar de querê-la. Você pode até colocar a mão nela por um segundo. Mas não consegue retê-la. Ela destroça seu coração...
A noite ainda estava recente demais em minha memória para que eu prestasse muita atenção à advertência de Droch. Sorri e disse:
— Droch, meu coração é feito de material mais forte do que o vidro. Quando ela atacar, descobrirá que ele é forte como uma liga de bronze e ferro, ou uma mescla de ouro e diamante. Não pense que estou desprevenido, que sou um cervo assustadiço, imobilizado pela arma de um caçador. Ela é quem deve tomar cuidado, porque, quando atacar, meu coração emitirá um som tão lindo e claro que não terá como deixar de trazê-la de volta para mim, voando como se tivesse asas.
Minhas palavras surpreenderam Droch e o fizeram cair na gargalhada.
— Santo Deus, você é corajoso! — exclamou, abanando a cabeça. — E jovem. Eu gostaria de ser corajoso e jovem como você — disse. Ainda sorrindo, virou-se para entrar na Foles. — Então boa noite.
— Boa noite.
Droch gostaria de se parecer comigo? Era o maior elogio que alguém já me fizera.
Ainda melhor do que isso, porém, era o fato de meus dias de busca infrutífera por Alys estarem chegando ao fim.
No dia seguinte, ao meio-dia, na Foles: "para almoçar, conversar e passear", na expressão dela. A ideia me encheu de uma empolgação estonteante.
Como eu era jovem!
Quão tolo!
Quão sensato!