Eva releu os papéis pela terceira vez, tentando encontrar algum detalhe que, até agora, tivesse escapado. O ruído abafado das ovelhas gigantes batendo os cascos contra o solo seco e rachado era o único som no ambiente árido. O calor escaldante fazia o suor escorrer por suas costas, enquanto ela se ajeitava sobre a sela improvisada. À sua direita, um guerreiro com uma intimidadora máscara azul mantinha-se em silêncio, com os braços cruzados e o olhar fixo em sua direção. Havia algo no peso daquele olhar que a fazia estremecer, mesmo sem ele dizer uma única palavra.
— Isso vai dar merda — disse ele, sem desviar o olhar. — Você sabe que vai.
A garota fechou os olhos por um momento, sentindo o estômago revirar. Ele estava certo, claro. Sabia que aquilo era uma loucura. Mas seus dedos não largavam os papéis. Havia algo neles que ela precisava acreditar que resolveria tudo, como se neles estivesse a resposta que tanto procurava. Ela respirou fundo e ergueu o olhar para a direção da voz.
— E o que quer que eu faça, Alex? — perguntou, com uma ponta de desespero na voz. — Deixar minha amiga morrer? Deixar Luiz morrer?
Alex não respondeu de imediato. Sua postura continuou a mesma, impassível. O silêncio era sufocante, mais pesado que o calor abrasador do deserto que cruzavam. Ele finalmente se inclinou levemente para trás, batendo o calcanhar no flanco da ovelha, que bufou em resposta. A pressão invisível que ele exercia sobre Eva era quase insuportável, mas ela não podia fraquejar. Não agora.
Sua mente, no entanto, voltou ao momento em que tudo começou. Verath, o homem inseto, havia chegado à cidade três dias atrás. Alto, esguio e com uma postura formal, mas quase robótica. Sua presença, à primeira vista, não parecia ameaçadora. Mas havia algo nele, algo perturbador, que incomodava Eva desde o início. A princípio, a cidade o recebera de braços abertos, com entusiasmo genuíno. Afinal, era o primeiro emissário que os tratava como um reino de verdade. Um marco. Um reconhecimento que todos esperavam.
Mas essa alegria durou pouco. Muito pouco.
Na sala de reuniões, Verath abriu sua maleta de couro escuro com movimentos suaves, distribuindo relatórios e papéis com uma precisão quase cirúrgica. Cada documento que ele colocava sobre a mesa parecia transformar o clima, deixando as expressões mais sombrias. Suas palavras, ditas com uma calma inquietante, ainda ecoavam na mente de Eva como uma maldição, como se ele estivesse ali, repetindo-as incessantemente.
"Sua Majestade, Niala, não é irracional, nem injusta. Ela entende os equívocos do passado, mas não aceita insultos impunes."
Eva podia ver o olhar calculado de Verath enquanto ele falava, os olhos frios brilhando por trás de seus óculos redondos.
"Sendo assim, há uma oportunidade de redenção. A escolha é simples: ofereçam sua assistência e construam uma aliança. Ou então..."
Lembrar daquelas palavras fez sua pele arrepiar. Havia uma frieza nelas, algo cruelmente diplomático. Verath não estava ali para negociar; ele estava ali para impor. A ameaça estava clara. Eles deveriam eliminar a cidade dos escamosos, ou enfrentariam a guerra.
Eva fechou os olhos novamente, tentando afastar as imagens. Mas as palavras seguintes do homem esguio voltaram com força.
"Poder de fogo? Ah, isso não será problema. Temos pólvora o suficiente para mandar Carapicuíba pelos ares."
Ele riu enquanto falava, um riso seco e casual.
"Um pequeno 'presente' da era anterior reservado especificamente para tais situações."
Alex descruzou os braços, encostando a cabeça na fofa lã da ovelha, exausto. Por um momento, seus pensamentos vagaram, pensando em como era incrível que aqueles animais medonhos e agressivos agora estavam tão dóceis, mas logo suspirou e balançou a cabeça.
— Ana vai detestar isso.
Eva torceu o nariz ao ouvir aquilo em voz alta. Ela tinha plena consciência de que Ana teria ignorado o pedido. Luiz estaria por conta própria. A líder não teria hesitado em sacrificar algumas peças para evitar problemas cansativos. E Eva?
Não podia fazer isso, não conseguia.
— Ela mandaria Verath e sua colônia direto para o inferno — respondeu a ruiva, quase num sussurro, evitando evidenciar os demais pensamentos sombrios. — Não seria um final feliz.
O homem não disse nada por alguns segundos. Ele olhou para a estrada, o horizonte nebuloso com o calor do fim de tarde, e respirou fundo.
— É. Mas ainda devíamos ter esperado a chefona voltar.
— Eu não posso contar com a sorte, não posso simplesmente deixá-los…
O silêncio voltou a cair entre eles, denso e desconfortável. As ovelhas continuavam a marchar, com cada passo chiando um pouco ao passar por um trecho de cascalho solto.
— A gente deve chegar em alguns minutos — disse a garota por fim, tentando voltar o foco para o seu objetivo. — Repassando mais uma vez: pelo que os mascarados disseram, os escamosos não são hostis. Então... nada de criar brigas desnecessárias.
Alex a olhou de esguelha, com uma expressão que ela conhecia muito bem. Ele estava irritado, frustrado. Ele não queria estar ali, e ela sabia disso. A missão era arriscada demais. Era praticamente suicida.
— Eu vou achar a Lana, pedir para ela avisar o povo dela, e a gente foge de volta para a cidade o mais rápido possível. Isso tem que acontecer antes que a Ana volte... e, por Deus, sem que aquele maldito esquisito descubra o que estamos fazendo.
— Você realmente acha que Lana vai te ouvir? — perguntou o pugilista, com uma pitada de dúvida na voz. — Quero dizer, eu conheci ela antes das mutações, lembra? Ela já era... meio intensa.
Eva franziu a testa, lembrando-se da amiga antes de todo o caos. Sempre cheia de energia, decidida, e, por vezes, teimosa como uma porta. Aquela era uma das qualidades que ela mais admirava na amiga, mas, ao mesmo tempo, era o que tornava tudo mais complicado. Agora, com as mutações e o tempo que passou distante, Lana poderia ser ainda mais imprevisível.
— Tá me ouvindo? Intensa é um jeito educado de dizer que ela nunca aceita uma ordem sem questionar, mesmo que isso coloque a vida dela em risco — completou Alex, com um tom sarcástico ao notar a falta de resposta da garota com máscara de raposa. — Não estou dizendo que ela vai recusar... mas... você sabe.
— Eu sei. Mas tenho que tentar. Se alguém pode convencê-la, sou eu. Ela confia em mim — respondeu Eva, a voz soando firme, mas com uma sombra de dúvida escondida.
— Bom, vamos ver… mas sobre a segunda parte, acho que vão matar Luiz de qualquer jeito — murmurou Alex, com o tom amargo de quem já viu o pior do mundo. — Não senti muita confiança com aquele cara falando que libertaria os emissários. Já que vai fazer isso de qualquer forma, finja que ele já está morto, foda-se se Verath descobrir.
Eva engoliu em seco e abaixou a cabeça, novamente segurando os papéis com força enquanto sentia o peso das palavras acertando-na como uma pedra no estômago. Talvez isso tudo fosse inútil.
— Sinto muito por meter você nisso — sussurrou, sem encará-lo. Sua voz falhava um pouco, e suas mãos trêmulas evidenciando seu nervosismo.
— Merda — resmungou o guerreiro, esticando o braço e bagunçando o cabelo dela com um carinho bruto, mas afetuoso. — Esquece tudo que eu disse. Você é família. É claro que eu ajudaria.
Eva sorriu, meio de lado, tentando disfarçar a mistura de alívio e culpa que sentia. Estava grata aos céus por não estar sozinha em sua insanidade, mesmo que seu companheiro fosse um pouco pragmático de vez em quando.