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Chapter 116 - A Cidade sem Portões

Não demorou para os muros de estacas afiadas que cercavam a cidade começarem a tomar forma. Curiosamente, não havia portões. A entrada era livre, como se os escamosos não temessem invasores, ou, talvez, acreditassem que quem ousasse entrar já sabia o risco que corria. 

O par simplesmente passou direto, sem qualquer resistência. Por um instante, Eva esperava que alguém os barrasse, que ao menos os questionasse sobre sua chegada, mas ninguém se deu ao trabalho.

Os olhares que recebiam das poucas pessoas que estavam nas proximidades não carregavam hostilidade, apenas curiosidade casual. Era como se fossem visitantes inesperados, mas não indesejados. No entanto, notaram que os olhares demoravam-se mais nas grandes ovelhas, olhos famintos, quase como se estivessem avaliando a carne suculenta que carregavam.

Eva notou uma mulher esfregando a boca com o dorso da mão, e não pôde deixar de rir baixinho com o comportamento.

— Acho que somos menos interessantes do que o jantar deles — murmurou Alex, o tom carregado de sarcasmo, quebrando o silêncio.

A garota deu um leve aceno, mas não tirou os olhos do caminho à frente. A cidade era muito maior do que ela imaginava. A rústica muralha externa sugeria uma fortaleza improvisada, mas o que se revelava por dentro era um lugar organizado, muito diferente de uma aldeia bárbara como ela imaginava.

As ruas de terra batida, pontuadas por pedras arredondadas, se estendiam diante deles, e tudo era surpreendentemente limpo. Simples, mas organizada, modesta, mas bem-cuidada. As casas de madeira e barro formavam fileiras que delineavam uma estrutura clara. Telhados de palha se estendiam sobre as construções, oferecendo sombra às janelas abertas, por onde o ar quente circulava. 

Do alto de suas montarias, Eva e Alex continuaram avançando, absorvendo os detalhes à sua volta. O cheiro de carne fresca invadiu seus sentidos, misturado ao leve odor de peixes que balançavam nas varandas das casas, pendurados para secar com suas escamas brilhando à luz do sol. Na verdade, logo perceberam que em todas as direções que olhavam havia algo sendo preparado, como se a preservação de alimentos fosse parte essencial do cotidiano.

Lojas se amontoavam nas laterais opostas as casas, vendendo um pouco de tudo: itens gerais eram exibidos em bancas rústicas, enquanto as armas de madeira e pedra encostadas nas paredes chamavam a atenção. Lanças longas, arcos, e até mesmo clavas cômicas repousavam contra os edifícios como se fossem ferramentas do dia a dia. Pequenos escudos, broqueis de madeira e pequenos pedaços de metal, estavam à venda, desgastados pelo uso, mas ainda funcionais. Algumas armaduras de couro, poucas e mal feitas, pendiam das fachadas das lojas, embora quase novas, revelando o pouco valor dado a elas em tal ambiente.

Um grupo de homens e mulheres conversava animadamente mais adiante, gargalhando alto, enquanto as crianças corriam descalças pela rua, rindo e gritando, simulando uma épica batalha com espadas improvisadas de madeira. 

Suas lutas eram vigorosas, e as quedas na poeira do chão eram seguidas por ainda mais risos, como se a dor fosse irrelevante. Uma delas, um garoto robusto, derrubou seu oponente com um golpe bem-dado no ombro, fazendo-o cair de joelhos na terra. Os adultos ao redor assistiram com expressões orgulhosas ao combate, parecendo despreocupados, relaxados e felizes.

Ela trocou um olhar com o guerreiro ao seu lado, que observava a cena com atenção, os olhos apertados por trás da máscara azul. Eles estavam em território desconhecido, e a atmosfera, embora aparentemente descontraída, tinha um toque de algo feroz.

Conforme avançavam, Alex começou a observar com mais atenção os habitantes escamosos que cruzavam seu caminho. Ele inclinou-se um pouco para frente na sela, tentando discretamente observar melhor seus intrigantes corpos

— Interessante... — murmurou, mais para si do que para Eva.

Os escamosos eram realmente fascinantes. Caudas longas e grossas balançavam suavemente atrás de cada um deles, poderosas e musculosas, como se pudessem derrubar árvores com um único golpe. A pele deles exibia um padrão intricado, como o de lagartos, com escamas que refletiam a luz de maneiras surpreendentes, alternando entre tons de verde, marrom e dourado. E, apesar dessas mutações marcantes, ainda havia uma humanidade visível. Seus rostos, embora cobertos de escamas, mantinham belas feições humanas. Eram diferentes, mas não monstruosos.

Praticamente todos que viam carregavam uma lança nas costas, algumas curtas, outras mais longas, com pontas afiadas de pedra ou metal rudimentar. Na verdade, não era raro ver alguns carregando mais de uma. E, ao cruzarem pelas ruas, os fragmentos de conversas que chegavam até eles sempre envolviam discussões sobre caças, combates, ou como aperfeiçoar seus equipamentos. Aquela era uma cidade onde a luta e a sobrevivência não eram apenas uma necessidade, mas uma parte intrínseca de sua cultura emergente.

Era um povo guerreiro, mas não havia nada sombrio ali. Era apenas... a vida.

— Eles vivem bem — comentou Eva, apreciando a leveza de tudo, o equilíbrio entre o perigo e a normalidade. 

Havia algo tranquilizador naquela simplicidade.

— Mais do que eu imaginava — respondeu Alex com uma risada curta, mas não de escárnio. Havia algo mais ali, uma admiração genuína. — Sabe de uma coisa? Eu gosto disso, é meu tipo de lugar.

— Realmente, é a sua cara.

Foi então que o homem balançou a cabeça, soltando um suspiro pesado. Seu rosto, antes calmo, agora estava sério, quase sombrio.

— Nós não podemos explodir esse lugar.

Eva olhou para ele, com lágrimas voltando a brilhar no canto de seus olhos, apesar de se recusarem a sair.

— Eu sei — respondeu ela, sua voz quase inaudível.

Eles continuaram caminhando montados em silêncio, permitindo que o ambiente descontraído ao redor os envolvesse. Era difícil conciliar a leveza daquele lugar com a missão cruel que carregavam.

Então, finalmente, avistaram uma casa um pouco maior que as outras. Embora ainda simples, havia algo de mais elaborado nela, com uma estrutura ligeiramente mais robusta e um pequeno enfeite de dragão preso à parede da frente. As escamas metálicas da criatura mítica reluziam à luz, como se fossem feitas para impressionar, ainda que de forma discreta. Um detalhe chamava a atenção de quem o observava; suas asas foram quebradas bruscamente, fazendo com que parecesse apenas uma grande serpente.

A garota ruiva deslizou lentamente para fora da ovelha, sentindo o peso dos papéis em sua bolsa, e caminhou até a porta. Havia um frio incômodo se instalando no fundo de seu estômago.

Ela olhou para Alex, que ainda estava montado, observando-a. Ele deu de ombros, com um gesto casual, como se dissesse: não temos escolha. Faça o que precisa ser feito.

De frente para a entrada, pegou o pequeno enfeite que servia como aldrava. O metal estava quente ao toque, aquecido pelo calor forte. 

Respirando fundo, deu três batidas fortes, o som ecoou pela casa e pelo ar ao redor, reverberando pela estrutura de madeira. Após alguns momentos de silêncio pesado, a porta rangeu lentamente ao se abrir. 

A mulher que apareceu era pequena e atarracada, provavelmente na casa dos 40 anos. Seu rosto irradiava uma doçura quase reconfortante, com bochechas rosadas e olhos que brilhavam com uma gentileza sincera. Havia algo maternal em sua presença, algo que teria deixado qualquer um à vontade... se não fosse pelos detalhes perturbadores.

Seus dentes, embora pequenos, eram afiados como lâminas, visíveis cada vez que ela sorria, o que gerava uma dissonância estranha em seu rosto doce. O avental que usava, outrora branco, estava manchado de sangue de um vermelho intenso, espalhado de maneira descuidada. Parecia ter saído direto de um abatedouro.

Ela piscou algumas vezes, parecendo confusa ao ver os dois mascarados parados em sua porta. Seus olhos passaram de Alex para Eva, sem reconhecer imediatamente quem eram. Mas quando seus olhos recaíram sobre o arco pendurado nas costas da garota ruiva, sua expressão mudou completamente, como se um interruptor tivesse sido acionado.

— Oh! — exclamou, surpresa e alegre ao mesmo tempo. Sem aviso, ela avançou e abraçou Eva com força. — Minha pequena Eva! Você cresceu tanto!

Eva congelou por um momento, surpresa pela súbita intimidade. O abraço era firme, caloroso, mas o cheiro do sangue no avental da mulher era impossível de ignorar. Com as mãos paradas ao lado do corpo, ela tentou devolver o gesto de maneira desajeitada.

— Sim, faz... faz realmente um tempo.

— Mas o que você está fazendo aqui, minha querida? Esses tempos estão tão conturbados! — comentou a mulher, mantendo o abraço, apertando-a cada vez mais.

— Eu... vim fazer uma pequena visita para a Lana. Ela está por aqui?

A mulher se afastou um pouco ao ouvir a pergunta, e com um estalo finalmente percebeu o que havia feito. Seus olhos caíram sobre o avental ensanguentado e, ao notar que tinha sujado Eva, afastou-se ainda mais, levando as mãos à boca em um gesto de surpresa.

— Ai, ai! Perdão, querida, que distraída eu sou! Esqueci completamente que estava preparando o almoço. — ela riu com um pouco de nervosismo, enquanto esfregava as mãos contra ele como se isso fosse limpá-las. — Ah, entre, entre! Lana está no quarto. Vou chamá-la para você. Ela vai adorar te ver!

Eva assentiu, aliviada por ter um pouco de espaço para respirar. Antes de virar-se para entrar na casa, a mulher lançou um olhar para Alex, que estava amarrando as rédeas das ovelhas em uma estrutura próxima.

— E você também, rapaz… também faz tempo que não o vejo. Alex, certo?

Alex se endireitou e deu um aceno curto, respondendo apenas com um leve sorriso por trás da máscara. Ele não parecia surpreso com a familiaridade da mulher, mas tampouco parecia confortável.

— Isso mesmo. Olá!

A gentil escamosa sorriu novamente, satisfeita por reconhecer os dois. Com um último gesto, desapareceu pelo corredor da casa, deixando-os à porta.

O interior da casa era acolhedor. O chão de madeira era liso e sem muitas imperfeições, e o cheiro de carne recém-cozida dominava o ambiente. Pequenas janelas deixavam a luz do sol entrar, iluminando os móveis rústicos que decoravam a sala.

Em cada canto, havia detalhes curiosos. Pequenos jarros de flores secas, figuras de animais talhadas em madeira, e mais enfeites como os do lado de fora espalhados pelas prateleiras e paredes, como se fossem um tema recorrente. O dragão que tinham visto agora parecia menos solitário, toda a casa estava cheia dessas figuras.

Eva ficou parada no centro da sala, tentando organizar seus pensamentos enquanto Alex, por sua vez, estava casualmente encostado em uma parede, seus olhos em alerta, analisando cada canto.

— Lugar estranho, não acha? — murmurou ele, quebrando o silêncio.

Eva apenas deu um leve sorriso, mas seu coração estava acelerado. Antes que pudesse responder, passos firmes vieram da cozinha, parando ao lado da escada para o segundo andar. A mulher então gritou de forma ameaçadora, tão alto que sua voz reverberou pela casa.

— Lana! Temos visita!

Sua voz, carregada de autoridade fria, contrastava bruscamente com o sorriso gentil que ela exibira momentos antes. Quando o grito cessou, o sorriso retornou aos seus lábios, e voltou a desaparecer no corredor.