«Nova Dallas»•«São Preto»•«José Framergard»•«Flamingos»•«Santa Lianna»•«Don Jonas»•«Jhonsey»
O metrô solta um pequeno sinal sonoro, como aviso do radiocomunicador.
— Estação José Framergard
Seu destino continua bem longe. Por uns instantes, lhe passa a ideia do porquê não ter tentado uma emissora mais perto. Uma de São Preto. Ninguém o aceitou, mas "e se eu esperasse mais um pouco? Se tentasse um pouquinho mais, ahn?" Talvez não tivessem caído na desgraça como previram, talvez. "Talvez uma proposta melhor surgisse... que tal algo em Nova Dallas? Podia ser até na Novo Mundo, sem problemas. Andra Tavares parecia alguém até legal pelo rádio, quem sabe?" Entretanto, a força das contas e a ameaça de despejo, uma mulher gritando no seu ouvido e uma criança para alimentar, na opinião popular, faria qualquer pai não pensar duas vezes na primeira oportunidade, mesmo que tivesse que atravessar o estado até Jhonsey — "como estou fazendo agora mesmo...". A mulher, — "Ah sim! Nara..." — é incerto dizer algo sobre esse tipo de situação. Supostamente, uma parada em Flamingos para visitá-la na sogra é um tanto irresistível se pensar alguns momentos, mas ele ainda acha cedo demais para Nara estar com o coração mais mole.
O metrô dá novamente a partida e Artur fica inquieto. As pessoas são impulsionadas para trás e uma moça se desequilibra e quase cai sobre uma senhora. Uma mensagem passa nos televisores presos ao teto do metrô:
Assentos reservados a idosos, gestantes, lactantes, pessoas com deficiência e pessoas acompanhadas por crianças de colo.
Artur ouve a mais nova pedindo desculpas, mas não escuta nenhuma resposta da senhora. Ele se lembra de ligar a música nos fones de ouvido enquanto mexe na playlist e seleciona a música mais odiada pela esposa: Andante Cantabile. Não que ela odiasse as outras menos, uma vez que o gosto do marido por música clássica é algo enervante e antiquado para ela, mas essa é uma das favoritas de Artur, e como um bom audiente, seu gosto é algo viciante demais para impedir atitudes reiterativas em relação à música. Artur segue essa lógica de forma enjoativa e não vê grandes problemas nisso, desde que a experiência fosse experimentada de formas diferentes a cada vez.
Ele olha ao redor procurando a senhora e acha uma de semblante bem rabugento, próximo à janela. Uma pessoa sentada em um lugar ao lado segura uma risada. O contraste daquilo quase o faz ir ao êxtase enquanto a melodia da música corre em seus ouvidos. Os critérios para extrair a melhor versão do momento dependem da situação e tais argumentos são profundamente explorados por Artur e Nara. Em termos de eloquência, Nara sobressai e muito ao jornalista, deixando-o admirado por muitas vezes. Entretanto, Artur prossegue seus debates numa linha lógica e precisa, tão precisa que ninguém notaria a conotação ardilosa, fazendo a esposa dizer e contradizer variavelmente em suas próprias conclusões. Até ele mesmo se pergunta se às vezes não fazia aquilo de propósito, apenas para experienciar o mesmo debate de forma diferente... E esse, conscientemente, será o seu diferencial com sua esposa; Artur se denotaria suspicaz. Experimentar tudo de forma diferente é algo inebriante, que o faz pensar quantas vezes passara naquele mesmo metrô com pessoas diferentes. É como se estivesse o tempo inteiro em um comboio. Querendo sair para entrar novamente e... poder entrar de novo e de novo...
"Viver duas vezes"
Suas convicções o levam para fora disso. Desde a mais antiga e predominante crença de todo estado, como a fé de Rossefield, até os novos ventos da religiosidade moderna, como os devotos de Ardna, não poderiam sugerir que alguém saltasse de um prédio e começasse tudo de novo porque essa garantia, para Artur, eles mesmos não teriam. Mas para quê? Qual seria o cerne do inferir, a forma com a qual as pessoas deveriam ou não reagir às situações se voltassem no tempo?
A verdade não é tão perto, nem tão longe. Ela é apenas uma versão — esse é um texto do seu primeiro e único livro não publicado. "Os rascunhos ficaram ótimos", disse a esposa em certa ocasião. Artur duvida que ela tivesse lido o livro por inteiro, mas a verdade é que, por mais que ela o incentive a publicar, ele percebeu não ter convicção alguma no que estava defendendo. Esse é um efeito que costumeiramente o jornalista chama de anestesia religiosa. O sentimento de culpa por algo que não é concreto e que só existe de verdade no mundo das ideias, no mundo dos pensantes. Para se livrar disso, teve que se adequar à ideia de trocar seu ponto de vista por outro. Não é o mesmo que se livrar da autopunição, mas ver mais como um ato corajoso de libertação, e não uma forma fugidia de ter que escolher entre a fé de Rossefield e a expansão do mundo dos pontos de vista.
Fato é que, quando terminou de escrever seu livro de 268 páginas no Word, percebeu o quanto sua ideia tinha amadurecido durante o livro. Algo totalmente diferente das práticas jornalísticas que fizera na faculdade. Mal sabia que dois anos depois estaria procurando uma forma de repassar uma matéria que se encaixava com o seu estigma problemático de notícias reaproveitadas.
O painel acima da porta automática exibe um mapa da linha vermelha do metrô, com uma luzinha vermelha piscando no ponto de Flamingos. A pesquisa de Artur começou dois anos antes, com estimativa de seis meses para um belo documentário. A sequência dos fatos despertou uma curiosidade em Artur sobre as narrativas das manchetes já construídas. Ora! Qualquer um que quisesse alguma oportunidade visionária na carreira jornalística, Geloema é a cidade com todos os elementos mais tendenciosos para tal. Talvez há oito anos isso fizesse alguma diferença, mas na atualidade, a maioria das pessoas não tem tal conhecimento — "e nem quer" —, é que entre a estação Flamingos e a que o metrô acabara de sair, jaz a estação Sandor Allulasu. A abandonada estação somente pode ser perceptível por um curto flash que passa pelas janelas, devido à velocidade do metrô.
Artur deixa de mirar o painel e vira-se para a janela que por sua vez exibe nada mais que um plano cinza e disforme. Ocasionalmente consegue ver alguma linha horizontal que demarcam a divisória dos blocos do muro do túnel, alguma barra de ferro, sinaleiros ou até mesmo um vão com corredores e portas; provavelmente para manutenção. Artur prende seu foco se atentando ao flash da abandonada estação prestes a passar do lado de fora.
"O café da manhã do Nando", se recorda. "Droga! Sabia que tinha esquecido algo!"
Ele procura o número do filho na lista de contatos quando as luzes do metrô piscam por um momento.
— Droga!
Uma senhora se vira, demonstrando certo incômodo pela palavra que Artur proferiu. Artur finge não ouvir, ainda indignado por deixar suas preocupações o levarem a tal pecado contra as suas prioridades ou algo que pelo menos deveria ser, o café da manhã do filho. Nando pode ter oito anos, mas o modo de agir do garoto dentro de casa e a forma de lidar com os problemas dos pais, deixa o filho mais próximo de uma intelectualidade casual — ou maturidade, na opinião de Nara —, juntando os fatos de que aquela seria a opinião deles somado a da maioria das pessoas que passavam tempo suficiente com o garoto além de falar sobre o quão taciturno ele é. Artur gosta da ideia do garoto intelectual, mas a prática seria mais fácil para ele, pois "ainda é muito cedo para dizer qualquer coisa sobre". Pegou certa vez Nara pedindo conselhos para o filho... Artur só conseguiu se segurar atrás da porta, imaginando possíveis soluções com o feito após aquela terapia.
Após achar o contato do filho na agenda do celular, as caixas de som do metrô chiam e costumeiramente o operador fala qualquer coisa importante que Artur não conseguiu distinguir. Retirou um dos fones do ouvido, não se recordando ao certo se já passou a estação Flamingos ou se ainda chegavam nela. Ouvindo com mais atenção, ele percebe que, apesar da voz indistinta do operador devido ao chiado e o barulho do metrô, algo mais ao fundo parece dificultar a voz. Algo destoante, como vibrações que sobressaem anedotas perfeitas de algo totalmente inconstante... e antes que notasse, Artur percebe um impasse. A voz do maquinista sai pelos seus fones de ouvido. Destoante e estática, mas ainda assim uma voz enrouquecida, diferente do rapaz que estava anunciando as estações anteriormente. Uma harmonia entre as vibrações e a grossa voz masculinizada estabelece alguma virtude sinfônica naquilo tudo.
Como uma música...
Não vejo a luz nem dia e de noite...
Artur observa a confusão estampada nos rostos das pessoas no metrô. É esperado algum tipo de notícia sobre o itinerário, aviso sobre os bancos reservados, lixo no chão ou incentivo contra assédio em transporte público, mas ao invés disso, algo presunçoso como cantar no banheiro de casa em meio a muita estática — ou em um metrô no caso. Talvez o maquinista tenha esquecido o microfone próximo ao rádio ligado.
Meus dias são os mesmos… nadaa...
— Efetivamente não é uma propaganda — Um jovem de mochila fala para o amigo.
— Sertanejo versão capiroto!
Enquanto alguns dão risadas, outros ligam suas câmeras e começam a gravar, instaurando um certo caos cômico no trem. Alguns, sem se importar, voltam a ler, escrever ou dormir.
... São Preto em açoites...
Artur reconhecia a música. Embora quase inaudível, trata-se realmente de uma música melancólica de um cantor muito antigo chamado Vaidon. Ele lembra de certa vez ter dito a mulher que achava a voz dele parecida com a do Cid Moreira, mas foi reprovado pela mesma logo em seguida como se tivesse proferido algum tipo de blasfêmia profética.
Artur digita a mensagem de texto para Nando, mas no exato momento em que termina de escrever, Oi Filho! Tem b a tela do aparelho começou a chuviscar em píxeis retangulares, o que é um tanto incomum para um smartphone com apenas oito meses. Comprou um smartphone ao invés do presente de aniversário de casamento, e quando recordou da data, já estava com um smoking de aproximadamente dois mil reais em mãos — "economias do sogro e dela provavelmente" — frente a uma esposa ansiosa e feliz que abria as compras subentendendo a caixa lacrada do smartphone em mãos. Nara percebeu rápido o despreparo do marido para a data concluindo que a troca de presentes do ano seria um smoking por um súbito esquecimento de gratidão — "algo que só faz sentido na cabeça dela, mas ainda bem que nem entrei na questão" —, e logicamente seu dia terminara — onze horas de um domingo de manhã — com a devolução do smartphone ao marido e uma esposa em lágrimas.
Artur ficou vários dias sem abrir a caixa do aparelho na última gaveta de sua escrivaninha no cantinho da leitura — um lugar reservado na sala de estar. Envergonhou-se de vestir o presente de dois mil reais da esposa e tentou o possível para negociar com ela. Se fosse somente ela, sabia que cederia e esse presente ou outro poderia ser bem recebido. Entretanto, Nara parecia estar obtendo uma resistência fora do normal para aquilo. Chegou a fazê-la chorar de emoção com seus discursos de perdão e a maioria dos resultados de seus esforços, ela travava ou ia para o quarto. A distância certamente a salvaria de uma possível rendição, mas a resposta era sempre a mesma. "O problema não é o presente, mas a lembrança!"
Inhores… é feitiço ou jogadaaa...
Artur passa o antebraço no queixo pensando se aquilo não seria um castigo e tanto por abrir a caixa do aparelho no fim das contas. Voltou a olhar o aparelho preocupado e nesse momento sente que seu semblante está completamente alterado. Ele respira fundo, se recompondo enquanto tenta ligar o smartphone. Voltando-se para os outros passageiros, agora ele percebe um semblante de dúvida e preocupação estampado no rosto dos outros passageiros, olhando para seus celulares. Artur engole seco até constatar que os que estão com celulares e tablets em mãos parecem passar por algum problema semelhante nos aparelhos. Quando volta a olhar para o aparelho, a tela já está completamente chuviscada e cheia de estática. A música melancólica, destoante com a grave voz do cantor, é interrompida. Subitamente, uma pancada toma o lugar do silêncio que se estabeleceu.
Bam!
Parecia alguma pancada em algo metálico, mas vinha das... caixas de som do metrô...
Bam!
...dos telefones...
Bam!
… dos fones de ouvido.
BAM!
Os estrondos no som foram altos o suficiente para tremer as estruturas do metrô. Assemelhavam-se a pancadas contra alguma estrutura de ferro. Artur levanta o olhar novamente e observa a estranheza de algumas pessoas já assustadas e outras rindo como se não passasse de algum tipo de pegadinha. Alguns segundos se passaram e a estranha estática do celular cessou. Pela cara dos demais, os outros aparelhos também voltaram ao normal. Os passageiros começam a conversar, aumentando a voz gradualmente, impressionados com a situação. Alguns jovens sentados no piso próximo ao fim do vagão comentam sobre algum possível ataque hacker. Outros comentavam parecer alguma interferência de alguma rádio, profundidade do metrô, o retorno de Ardna e até comentários sobre alienígenas. Artur se recorda de ter estudado efeitos semelhantes em alguns lugares que foram alvos caóticos de tempestades geomagnéticas, entretanto não consegue assimilar muita coisa do que acabara de acontecer ainda. "Vai dar uma reportagem e tanto", pensa enquanto visualiza com esperança o celular terminar de ligar, "ia dar uma reportagem e tanto".
Poderiam estar apenas alguns minutos ou segundos da estação Flamingos, enquanto Artur está a procurar pelo número do filho novamente, desta vez na agenda do ShugarLife quando subitamente lhe estende um questionamento sobre a estação Sandor Allulasu "E o flash da estação?". Ele não se recorda de ter avistado as luzes acesas no lado de fora. Nenhuma luz havia passado ainda pelo lado de fora do metrô ou pelo menos ao alcance dos seus olhos. O que logicamente faz suas engrenagens trabalharem no que estava pesquisando nos últimos dois anos. Talvez estivesse enganado quanto a isso e também tão absorto no momento do estranho acontecimento que nem se deu conta do flash passar pelo lado de fora do vagão. "Afinal de contas, para quem se esqueceu de que o rádio já estava ligado no celular hoje de manhã".
Seus dedos continuam a deslizar autômatos sobre a tela do aparelho quando subitamente gritos de desespero sobrevêm das caixas de aviso do metrô. Vozes gritantes e gradualmente mais altas das caixas fazem todos tomarem um terrível susto. Vários passageiros taparam seus ouvidos enquanto outros procuram acalmar os acompanhantes mais idosos e gestantes. Outra voz ao fundo faz todos taparem seus ouvidos instintivamente, seguido de uma microfonia.
— Está vindo... está ali... caiu.
BAM!
Um estrondo sobressai o barulho do metrô e essa é a última coisa que todos presenciam ali a 120 metros abaixo da terra. Talvez não. Pelo menos a Artur, uma vez que antes do veículo descarrilar — ao menos segundo a imprensa no dia seguinte — o flash das luzes acesas da abandonada estação passou como um raio do lado de fora. O metrô chocou-se em algo, ou algo se chocou com o metrô. Os vagões se amontoaram e se viraram em alguma roda diferente dos serpenteantes túneis desligados na altura entre Flamingos e Geloema. Ao menos essas seriam as notícias dadas por todos os telejornais mais tarde, após averiguar as marcas nos túneis, porém uma coisa não conseguiria explicar:
O sumiço do metrô 568 da linha vermelha estadual.