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Chapter 4 - Capítulo IV - Luzes

«Nova Dallas»•«São Preto»•«José Framergard»•«Flamingos»•«Santa Lianna»•«Don Jonas»•«Jhonsey»

Apesar de não estar em uma localização rural, a funcionária da estação São Preto, Eulália, não pôde trabalhar devido à liberação oficial da estação. O habitual tilintar do molho de chaves ecoa pelos gabinetes da bilheteria subterrânea da estação. Uniformizada de azul-marinho e branco, a senhora percorre o chão emborrachado, entrando de ala em ala, fechando todas as portas e gavetas que encontra, ou que pelo menos suas chaves consigam fechar ao longo do corredor da bilheteria. O uniforme se resume a uma saia azul apertada que termina nos joelhos, camisa social branca e o primeiro botão de cima vermelho, um blazer azul-marinho no conjunto feminino. Uma ideia totalmente descabida em relação aos vestuários do resto do estado. Eulália, mesmo para uma senhora com seus 67 anos, gosta da ideia de vestir uma saia que fosse até os joelhos. Para os lugares fora dos limites da linha vermelha, é um tanto difícil não encontrar alguém que ainda siga os regramentos da fé de Rossefield. Também tinha o mesmo pensamento dos Rossefield, antes de conhecer a formadora dos séculos. "A inimiga das águas e mãe de todo sangue."

Após a conversão de Eulália aos devotos de Ardna, seu Seravat induziu-a a usar roupas curtas por uma semana, tudo porque de uma costumeira olhadela reprovativa com uma irmã que usou roupas curtas em uma cerimônia. O inspetor da estação perguntou naquela semana a respeito do encurtamento de suas roupas, e a resposta da senhora limitou-se a uma pequena frase subentendida:

— A mãe Ardna não se importa com roupas.

Além do costume dos Rossefield que teve que abandonar, a outra questão é que Eulália se sente uma bruaca numa geladeira envelhecida de 200 anos quando está perto de alguém 20 anos mais jovem. Contudo, no fundo, Eulália sente que o motivo de ser levada pelos ventos da nova fé, talvez esteja relacionada a algo mais culposo que tenha feito anteriormente e que ao invés de aceitar tamanho castigo da crença mais antiga, preferiu a redenção da mais nova.

Eulália naturalmente tem uma cara de dar medo em qualquer um que tenha olhos. Não algo relacionado a formosura óssea de seu rosto ou coisa do tipo, mas ao seu semblante habitual e talvez no modo de se relacionar com outras pessoas, e essa segunda não tinham muita certeza já que a primeira elimina qualquer chance de alguém se aproximar para descobrir. Longe de Eulália ser um robô e tornar-se uma estátua nas horas vagas. Há aqueles que falavam com ela e de certa forma aparentam ter algum grau de intimidade, mas preferem não comentar muito sobre a funcionária de mais idade da estação São Preto.

Eulália arrasta os pés sobre o tapete, fechando todas as alas dos balcões da bilheteria que em sua grande maioria, mantêm-se limpos com o box de vidro tão cristalino que a transparência do material é quase invisível, mas, em contrapartida, abaixo do balcão, perto dos apoios, os suportes estão cheios de papéis rabiscados e amassados; portas-canetas tornaram-se verdadeiros cinzeiros de tantos resíduos de cigarros que possuem. Os computadores? Cheios de adesivos e mais se parecem com um mural ou alguma cabine telefônica pública muito antiga. Embaixo das mesas há tantos chicletes grudados que um papa-moscas sentiria inveja da quantidade de insetos sem vida no grude.

Decerto, isso não é sempre assim. Ao final de todo mês, o inspetor passa de cubículo em cubículo para a vistoria e é aí que, um ou dois dias antes, a maioria dos funcionários fazem suas limpezas.

Eulália segue fechando as alas, uma a uma, até estar em frente ao compartimento totalmente organizado. A mesa está limpa, dispondo apenas do monitor do computador e um porta-canetas. Mais ao lado há um gabinete com post-its coloridos grudados em algumas gavetas, a maioria descrevendo algum curioso conteúdo de não esquecer de olhar o setor de fichas ou algo do tipo. O ambiente odora a produto de limpeza e tudo ao redor de Eulália chega a brilhar de tão límpido. Ela entra na ala sorrindo e orgulhosa da amiga, "Outra oponente de Rossefield". Os suportes estão perfeitamente limpos e os apoios com pequenos amontoados de papéis muito bem organizados. Por um momento a senhora tem a impressão de ouvir alguém do lado de fora da cabine e olha para o vidro à frente logo acima do balcão, mas não há nada lá fora além do risco branco e vermelho no tapete de borracha delineando as filas.

Ela volta sua atenção para a organização da ala quando nota algo na poltrona. Uma foto. Ao pegar a foto, Eulália esfrega um pouco nos dedos percebendo alguns enrugamentos, concluindo não se tratar de algo recente. Apesar de estar rasgada, a vistas grossas parece algo de natureza documental. Daquelas que se tiram 3x4 nos shoppings. Eulália revista sua pequena bolsa ao lado e acha os óculos. Após colocá-los, o borrão preto em suas mãos se torna mais nítido. O papel revela um moço de cabelos cacheados e camisa escura. Uma moça estava ao seu lado, mas essa é a parte rasgada.

Nada na imagem denuncia a jovem ruiva, colega de trabalho de Eulália, Melissa! No entanto, o perfil do rapazinho lembra Artur Carvalho, o repórter da TV Nova Jhonsey. Não que Eulália esteja antenada nas atualidades, que para ela não passam de banalidades joviais do novo mundo das tecnologias. No entanto, Melissa costuma comentar uma coisa ou outra da TV quando acha algo interessante. E baseado na forma como ela presta atenção, — "bastante atenção" — quando raramente o referido jornalista aparece na TV, já é de se imaginar. Outro fato também, é nas vezes em que ele raramente aparece no balcão para comprar passagem, como fizeram hoje mais cedo:

"Obrigado jovem", recorda Eulália da fala do referido jornalista a ela.

Eulália ajeita os óculos, estudando o jovem da foto, meditando mais profundamente no perfil dos interesses da colega e, por fim, nota que na camisa do jovem há uma caveira branca estampada. "Fã de rock?". Observando melhor a pequena foto, pondera: "deve ter deixado cair da carteira ou da bolsa". Olhando mais atentamente, conclui que "não era o bonitão da TV Nova Jhonsey! Ele com certeza é muito mais alto do que isso".

Por um lado, Eulália se impressiona por encontrar uma jovem que ainda faz uso de fotos físicas em vez de digitais. Pensava que nem existissem mais fotografias assim. Pela organização da ala, é de se imaginar que aquele lugar pertence à Melissa, dado o esforço, desempenho e zelo da colega. Até o momento, Eulália avistara apenas uma pessoa ser tão zelosa quanto ela desde o início do trabalho em relação às colegas ali na bilheteria; Melissa — o que de pronto a fez deduzir alguma verossimilhança com os Rossefield —, e apesar de se dar muito bem com a colega, acha sua vida por demais um mistério, já que sempre que falavam de suas experiências passadas, Melissa nunca citou nomes. Ciente de que as pessoas não contam os nomes e sobrenomes das pessoas nos relatos, mas uma vez ou outra, alguém bem próximo, com certeza esperava sair. Por vezes, chegou a perguntar o nome de algum primo que ela se envolveu, e a ruiva desconversou várias vezes, contando outros fatos por cima até, por fim, deixar um "ah! Eu não lembro". Tal comportamento levou Eulália a uma ampla conclusão de "essa menina deve ter deitado com todos os homens ricos e perigosos das maiores máfias do mundo".

Foram diversas as oportunidades de fazer tais perguntas à Melissa, mas por fim acabou desistindo, dando vazão a outros assuntos, que entre as duas, ao menos para Eulália, parece estar sempre se renovando. Perto dela, a senhora sente que vários assuntos fluem naturalmente, sem haver problemas para contar as coisas para a colega.

Tomada pela curiosidade, ela começa a perscrutar o local em busca de algo que denuncie definitivamente sua colega, e se pergunta se alguma outra colega não sabe algo a respeito da amiga festiva e baladeira, ou ao menos, é essa a imagem tingida em sua cabeça depois de algumas informações soltas deixadas pela ruiva. Decerto, ainda assim a organização da amiga parece algo surreal de se esperar de alguém — até mesmo por um fanático de Rossefield —; o mesmo tipo de organização quando os demais funcionários da bilheteria vão embora, e sonham nas coisas se limparem sozinhas apesar de já saber da grande probabilidade de estar tudo como no dia anterior.

Toc toc...

Eulália prende a respiração e joga por instinto o pedaço de foto em direção à cadeira, mas ele flutua até cair no tapete.

— Dona Eulália.

Ela solta o ar. É uma voz masculina.

Toc toc...

— Sou eu, Bryan.

Bryan é um homem calvo que passa um pouco da meia-idade. Geralmente é o responsável pela manutenção geral da estação de São Preto, mas perde o posto quando Élton visita o lugar. Élton é considerado o mentor de Bryan, o homem que esteve no lugar que Bryan ocupa agora, e que agora é o chefe da manutenção geral da linha vermelha.

A porta já estava destrancada quando Eulália apanha a foto no chão, guarda na bolsa da colega e sai balançando seu molho de chaves da cabine da bilheteria, mostrando ao outro que já estava de saída. Bryan está com seu habitual macacão vermelho e branco, um tanto sujo, bem verdade, mas suas mãos estão limpas naquele momento, mostrando que não esteve mexendo em nada que fizesse uma boa combinação com graxas, óleo ou solda como habitualmente.

— Hey cara! Como vai à senhora?

— Sim, Bryan.

— Preciso que a senhora abra a sala dos condutores para mim – ele dá um tapinha na própria cintura. – Esqueci minhas chaves.

Eulália pigarreia, fitando-o de soslaio, e prossegue pelo corredor, vira a catraca dos passageiros ao final e anda até o fundo da estação, que está parcialmente escuro. Os dois param em frente a uma pesada porta de ferro e madeira. Mais à direita e um pouco para trás, é possível achar o túnel de metrô sentido Jhonsey. É estranho ver a plataforma vazia daquela forma, sem nenhuma máquina na linha funcionando.

Voltando à porta, Eulália mexe na maçaneta, trancada. "Vai que ele esqueceu aberto também", pensa ela, relembrando os trejeitos de Bryan, acostumada pelo tratamento de "cara", pois até onde sabe, apesar de aparecer um homem bem animado, tal tratamento é estendido a todos ao seu redor. Enquanto procura a chave no molho, a porta dá um trinco e a maçaneta se move sozinha, abrindo a porta logo em seguida.

— Oh, meu pai! – exclama Eulália. – Eu não tenho coração para essas coisas!

— Desculpa, dona Eulália – se desculpa Élton ainda com a mão na maçaneta do lado de dentro. – Eu chamei o outro aí atrás, mas ele não apareceu, aí acabei fazendo o serviço.

"Sozinho", Eulália quase o sente completar.

Élton é outro sujeito de meia-idade com uma barbicha bem marcante. Tem uma trave escurecida que passa abaixo do nariz e desce pelos flancos da boca até o queixo, já que nunca gostou de deixar o bigode — que cresce absurdamente muito rápido — raspando sempre quando pode. Também possui uma barbicha que o faz se sentir bem mais adequado a um bar de beira de esquina que encontre para encher a cara nos fins de semana. Não é alguém muito festeiro ou algo do tipo. A maior parte do tempo em que bebe, assim faz apenas para se esquecer de muitas coisas, como a ex-mulher — e aí uma analogia bem compartilhada com seu eterno aprendiz, Bryan. Nada como dois homens cujos carregam no legado atual a palavra ex, e uma verossimilhança tão fincada, que Bryan certa vez sugeriu que ambas as ex fossem a mesma mulher. Assim como Bryan, Élton traja o macacão vermelho e branco, com pequena a diferença: um emblema na altura do peito e um cordão listrado num verde quase amarelo e cinza, exibindo o posto de oficial de manutenção da linha vermelha do metrô.

— Dona Eulália, o que faz aqui até agora? – pergunta Élton antes que o outro se defendesse. — Que eu saiba, a linha vermelha está dispensada desde o meio-dia — diz, afastando a manga da blusa a fim de espiar o relógio — Se não for perguntar muito, é claro.

— Pois é, bom homem – responde ela, guardando o molho de chaves na bolsa. – Demorei um pouquinho no almoço, então, como fui a última, aproveitei para entregar os caixas.

Élton encolhe os ombros em um gesto de compreensão e fecha a pesada porta da sala dos condutores. Enquanto isso, Bryan está entretido em alguma observação perto da linha vermelha da plataforma. Ele está observando algo nos trilhos em direção ao túnel à sua frente, balbuciando algo. Eulália sempre desconfiou que ele não bate muito bem da cabeça. Em verdade, uma conversa com Bryan leva boa parte das pessoas a crer nisso, mas também há aqueles de opinião oposta, provavelmente porque é algum especialista ou simplesmente cria algo mais complexo do que meras deduções, ou simplesmente por criar algum tipo de ligação mais empática com Bryan. Eulália volta para Élton quando este acaba de pigarrear.

— Não é todo dia que vemos um acidente desses, dona Eulália.

— Faz alguma ideia de quando tudo vai voltar por aqui? — Indaga Eulália para Élton, que por sua vez assobia alto para Bryan.

— Ahn? Não. — responde coçando a pequena barbicha — imaginei que o inspetor tivesse alguma informação. — termina arqueando um dos olhos num ar de dúvida.

— Ele não disse nada por enquanto, bom homem.

Élton guarda um molho de chaves no bolso do macacão enquanto Bryan se aproxima dos dois.

— O jeito vai ser esperar mesmo para vermos aonde isso vai dar.