Morrer é uma sensação estranha...
Não respiro, nem sinto o peso e as dores de sempre. A paz, como se meu corpo estivesse rodeado de água; a consciência anestesiada, mas estranhamente ali. Agindo como inconsciência. Eu sabia que estava morto, mas lembrava de todos os meus dias em vida.
Num vazio livre dos sentidos, as memórias passam como num filme longo e desinteressante.
O choro de um bebê, que saiu do casulo que é a barriga de sua mãe, do conforto e proteção da ignorância para ter os pulmões preenchidos dolorosamente pelo oxigênio e o mundo real. O sorriso inocente de uma criança, que sumia conforme o tempo passava. Momentos de felicidade, momentos de tristeza. A vida foi passando. Até que os momentos tristes se tornaram predominância.
Aos 17 anos, fiquei doente para nunca mais me recuperar. O hospital era minha segunda casa. Os médicos e enfermeiros meus segundos pais e mães. Após definhar por três anos, morri aos 20. Foi uma vida curta, com um final infeliz, mas com pessoas especiais. E assim que chego no meu fim...
...?
Espera, ainda tem mais? Mas eu já morri, não é pra ter mais!
No filme que eu achei já terminado a pouco, uma criança que eu acreditava nunca ter visto antes aparece no nada. Uma criança familiar demais, mas ao mesmo tempo estranha demais. A pontada de familiaridade acaba me fazendo duvidar da minha antes certeza de tê-lo nunca visto. Eu sentia que conhecia aquele rosto alvo, com os grandes olhos azuis cinzentos e o cabelo branco como se tecido com fios macios de nuvem, mas da onde? Quem era aquela criança? E logo em seguida, palavras piscantes e sombrias surgem para me ordenarem.
PROTEJA A CRIANÇA
Em segundos, as palavras se esfarelam, como castelo de areia que um pé maldoso ousou chutar, dando lugar às ruínas sangrentas de algum lugar.
EVITE A DESTRUIÇÃO
Mais uma frase, que dá lugar a um nome.
ALEXANDER WHITEHOUSE
Antes mesmo que aquilo tudo fosse digerido por minha consciência, sinto o ar em meus pulmões de novo, e eu puxo-o desesperadamente, num instinto natural de sobrevivência, que tenta sempre agarrar-se na vida com todas as suas forças. Meus olhos se abrem arregalados, mas nada consigo ver além de borrões.
"Alguém chame um médico! O mestre acordou!"
Merda... esse maldito não podia falar mais baixo? Aos poucos tudo ao meu redor desembaça, e encontro-me num quarto escuro, frio e gigantesco, pipocado de faces desconhecidas. Do meu lado direito, ouço o estalo de chamas queimando madeira seca, e o cheiro de muitos perfumes confundem meu nariz, fazendo-o frizar em desconforto. Sim, por mais estranho que isso possa soar, eu estava vivo de novo, e num lugar muito diferente de um hospital.
...
Ainda desorientado, tenho o pulso tomado pelo médico.
"Ele ainda está fraco, mas vai ficar bem com um pouco de descanso"
Eu olho ao redor, apenas para me desorientar com a quantidade de pessoas. Muitos em pé, encostados nas paredes, enquanto dois estão do lado da cama em que eu estava. São eles um jovem bonito e franzino; a face deformada pela preocupação tinha os olhos azuis apertados, o cabelo está lambido para trás. Veste-se como um empregado. Enquanto o outro, de cabelos grisalhos e pele escura, é o médico chamado Anastácio(o jovem havia citado seu nome em meio aos gritos alguns minutos atrás). Virando a cabeça de um para o outro, eu decido quebrar o desconfortável silêncio.
"O que está acontecendo? Onde estou?"
Todos me olham em choque.
"Está em seu quarto, o mestre não lembra o que aconteceu?"
Pergunta o mais jovem.
Não posso falar, simplesmente, que possuí o mestre deles sem querer. Minhas sobrancelhas ficam mais juntas, tensas, enquanto tento pensar em uma desculpa. Nesse meio tempo, dou de cara com os olhos brilhantes e preocupados do empregado.
"..."
Pft! Que cara de pastel! Bom, voltando ao que interessa...
De repente, meus olhos suavizam; uma ideia surge. Ok, acho que isso servirá.
"Não consigo lembrar de nada"
"Como assim... nada?"
Ele arrasta a última palavra, com medo do que poderia estar prestes a sair da minha boca.
"Do que aconteceu no meu passado, do porquê de eu estar aqui e também não sei o nome de nenhum de vocês"
Dou uma breve pausa, fingindo me esforçar para tentar lembrar de alguma coisa.
"É... não lembro de absolutamente nada. Quem são vocês?"
Todos ficam estupefatos. O empregado logo vasculha minha cabeça, procurando por algum machucado ou coisa do tipo. Para sua frustração, não encontra nada. Incapaz de responder a sua própria dúvida, ele olha para o médico esperando por uma explicação para o que estava acontecendo. Anastácio, percebendo seu olhar, apressa-se a responder.
"Parece que o mestre está com amnésia, Lin"
Então o nome dele é Lin.
"Como ele pode estar com amnésia, doutor?! Só teve uma instabilidade hormonal, como sempre tem desde que nasceu!"
"Essas coisas acontecem de repente, já vi casos como esse" Anastácio alisa a barba com os dedos. "Provável que seja consequência da febre alta que o mestre teve ontem."
"Que tragédia..."
É, tenho que concordar. Um silêncio esmagador contamina o quarto, e só é dissipado quando a porta foi quase quebrada por um homem. Suas íris são vermelhos como o sangue, os cabelos pretos e curtos bem penteados, com alguns fios delicadamente sobre a face alva e bela.
"Sebastian, querido, vejo que acordou" ele se aproxima em passos elegantes, e está prestes a tentar tocar minha testa. " Ainda está com febre? Ah..."
Eu afasto a mão do estranho com um tapa. Quem ele acha que está chamando de querido?!
Todos ficam chocados, e com os lábios entreabertos, o homem tem dificuldade de encontrar palavras.
"O q-?"
"Quem é você?"
Um silêncio devastador faz sucumbir todos ao desconforto.
"É... o caso é grave"
Lamenta Anastácio, que em seguida é complementado por Lin
"Estamos perdidos..."
O golpe final foi desferido. Aquele "Quem é você?" foi demais para o jovem empregado, que simplesmente capota para trás desmaiado, assustando a todos.
"Jovem, meu jovem!"
Grita o médico apreensivo, enquanto o menino era apoiado por outros empregados que estavam próximos. Eu olho a cena aterrorizado, não fazia ideia do que fazer. Aliás, o que eu poderia fazer? Com meu corpo fraco como estava, até me manter sobre as duas pernas seria tarefa difícil.
Francamente, mais que bom lugar que o universo resolveu me meter...