PICCOLO
Na manhã seguinte, eu estava sentado à fogueira do Acampamento, mexendo nos gravetos para aumentar o fogo. Continuava nublado, numa temperatura mais amena. Então, avistei uma desesperada Lettie sair da barraca, confusa e procurando ao redor.
— Oh! — Ela correu até mim. Seu rosto estava todo amassado, seus olhos, sonolentos e, seus cabelos, desgrenhados.
— Bom dia. — Remexi os gravetos outra vez. Ainda era difícil encará-la depois do que aconteceu ontem.
— Que horas são?! — Lettie colocou a mão no peito, acalmando sua respiração, e olhou para os céus. — Já é tarde?! Estamos atrasados para o Treinamento?!
— Calma. — Ergui a mão, depois apontei o chão. — Sente-se e tome seu café-da-manhã. Tem frutas, e cozinhei alguns ovos.
Lettie se mostrou meio conturbada, pois, normalmente, era ela quem preparava o desjejum com os alimentos que eu trazia, contudo, acatou minha sugestão, sentando-se de joelhos numa postura ansiosa. Ela permaneceu em silêncio enquanto pegava algumas folhas de menta de um pote próximo à fogueira e as mastigava, alisando o cabelo, até se virar para mim e indagar:
— Por que não nos acordou?
Molhei os lábios, tentando olhá-la nos olhos, e respondi:
— Eu… a-achei melhor deixar vocês descansarem à vontade hoje. Não se preocupe com o treino. — Engoli saliva, com a boca seca. — Considere como um… um dia de folga. — Desviei o olhar, procurando mais gravetos para mexer num fogo já perfeito, e voltamos ao silêncio.
Segundos depois, Lettie se acomodou melhor ao cruzar as pernas e, quando ousei olhá-la de soslaio, vi que esboçava um pequeno sorriso introspectivo. Ela pegou uma fruta e depois, quatro ovos, que esfriavam numa pilha de musgos secos, e se pôs a descascá–los. Quando terminou, ela disse num tom suave:
— Obrigada. Por ontem.
Eu finalmente a olhei. Mas, para manter minha pose de durão, limpei a garganta e torci os lábios numa careta.
— N-Não foi nada — respondi, seco. — Você precisava dos remédios e da água quente.
— Eu não estou falando sobre remédios e água quente — replicou ela, convicta.
Prendi a respiração devido ao frio na barriga que senti. Então, era sobre o meu pedido de desculpas que ela estava falando?
Não consegui mais suportar e desviei o olhar novamente.
Era esquisito. Eu e Lettie parecíamos dois estranhos; como se estivéssemos nos conhecendo pela primeira vez de novo, só que agora, sem aquela tensão raivosa que tivemos na ilha do Mestre Kame, mas sim, uma tensão constrangedora ao relembrar o que fiz ela e Gohan passarem nos últimos dois meses, e as consequências que isso nos trouxe.
— Porém… — continuou Lettie, com a mesma expressão acanhada, mas também gentil. — Não nego que os remédios e a água quente me fizeram bem. — Ela levantou o rosto para mim, e seus olhos brilharam. — Que lugar era aquele que você nos levou ontem? Era real ou… eu sonhei?
— Sim, é real — afirmei. — Fica mais ao norte.
— Bom saber… — Lettie franziu o cenho ao massagear a região do ventre. — Acho que vou visitá-lo nos próximos meses. Vai ajudar a aliviar as dores. — Ela então arregalou levemente os olhos. — I-Isso, é claro, se você nos permitir.
Me senti mal ao ver um certo… medo de mim voltar a preencher sua feição. Aquele definitivamente não era o tipo de comportamento que eu queria que ela ou Gohan tivessem para comigo. Não depois do que aprendi ontem.
Respirei fundo e a respondi, na entonação mais calma e serena possível:
— Está tudo bem. Vocês podem ir às Águas Termais.
O medo em seu semblante deu lugar a um pequeno sorriso esperançoso.
— Sério? Puxa… — Ela olhou para trás, como se enxergasse as Águas Termais dali. — Se eu pudesse, iria agora…
— Está com dor?
— Sim… — Ela mais uma vez massageou a região do ventre, pesarosa. — Inclusive, vou tomar mais uma dose dos remédios e trocar meu absorvente. — Ela comeu o último ovo que descascou e se levantou. — Com licença.
Lettie foi até a barraca, entrando com cuidado para não acordar Gohan, e voltou com os remédios e um absorvente novo nas mãos. Após tomar os comprimidos, a observei caminhar até a borda do Acampamento e olhar para baixo, para a formação rochosa de oito metros de altura.
Foi evidente o quanto ela estava com zero vontade de descer aquilo, ainda mais com dores.
Uma comichão mexeu dentro de mim, e mordi o interior da boca até que soltei um suspiro cansado e fui até ela, a qual virou a cabeça ao me ver ao seu lado.
— Muito bem. — Assenti. — Já que deseja ir às Águas Termais, então vamos. — E a peguei no colo, do jeito que havia feito no dia anterior, o que a assustou, e levantei voo.
Foram quinze minutos de outro silêncio constrangedor até chegarmos nas Águas Termais, pois voei devagar para não machucá-la mais. Lettie ficou agarrada ao seu pacotinho de absorvente como se fosse o único bem que tinha nesta vida, com o corpo tenso ao se ver mais uma vez tão próxima a mim. Contudo, diferente de ontem, eu percebia que ela me analisava, não tirando os olhos de mim.
Cara, eu daria todo o dinheiro do mundo para saber o que ela estava pensando. Devo ter ficado muito vermelho, pois minhas bochechas queimaram.
Quando chegamos às Águas Termais, alguns raios solares encontraram uma brecha por entre as nuvens cinzentas e banhavam aquele lugar com sua luz, deixando a paisagem mais fantástica do que no dia anterior.
Desta vez, Lettie se permitiu abrir a boca em deslumbramento quando a coloquei no chão, arrebatada por aquela pintura viva. Entretanto, eu ainda estava com tanta vergonha, que apenas lhe dei um aceno com a mão e disse:
— Volto para te buscar em uma hora. A-Até logo. — E disparei pelos céus, sem olhar para trás.
Passei todo o trajeto de volta fritando o cérebro ao imaginar o que Lettie teria pensando sobre mim enquanto me olhava, e juro que quase colidi com um bando de pássaros migratórios em certo ponto.
Ao chegar no Acampamento, eu já estava estressado, e me pus a meditar no meu canto ao lado da fogueira. Daqui a pouco, seria eu quem precisaria de um dia de folga.
Passados quarenta e cinco minutos, eu não havia conseguido meditar porcaria nenhuma. Só estava mais nervoso. Será que aquela sensação de desconforto nunca passaria?
Foi então que ouvi um choro, vindo da barraca.
Gohan.
Corri até lá e, quando me agachei na abertura, o encontrei chorando debaixo dos cobertores.
— Não! — chorava ele. — Por favor, Sr. Piccolo! Não machuque eu e a Tia Lettie! Plometo que vamos tleinar melhor! Não!!!
Estreitei os olhos em confusão. Espera aí… Gohan por acaso estava tendo um pesadelo… comigo?
Toda minha irritação e ansiedade foram substituídas por uma profunda melancolia.
— Gohan… — o chamei, baixinho, o sacudindo de leve. — Acorde…
Ele despertou num susto e, ao me ver ali na entrada da barraca, gritou e engatinhou até um canto, se escondendo de mim sob os cobertores.
Droga…
— Ei, Gohan… — Estendi a mão, o que o assustou mais. — Está tudo bem…
Ele espiou por debaixo do cobertor e do olho roxo, com filetes de lágrimas escorrendo pelo seu rosto, e meu coração doeu ao ver que, assim como Lettie, ele ainda também tinha medo de mim.
— Foi só um pesadelo — sussurrei para ele. — Eu não vou te machucar. — Tentei estender minha mão outra vez. — Eu prometo.
Gohan ainda ficou encarando minha mão como se fosse um bicho peçonhento, até que, por fim, pareceu perceber que o Sr. Piccolo da realidade não bateria nele.
Com visível receio, ele veio até mim. Quando o peguei no colo e me levantei, senti o quanto ele tremia, o que só me trouxe mais abatimento.
— C-C-Cadê a Tia L-Lettie? — Ele a procurou ao redor, agarrando minha roupa com força.
— A Tia Lettie estava com dor e foi tomar um banho quentinho nas Águas Termais. Já, já vamos buscá-la, tá bom? — Me surpreendi ao notar o quanto meu tom de voz era doce e amistoso, beirando ao infantil. — Vamos tomar o café-da-manhã? Tem ovinho cozido, que você tanto gosta.
Gohan emitiu um chorinho fino, balançando a cabeça em concordância enquanto esfregava o olho bom. Ao colocá-lo sentado próximo à fogueira, lhe entreguei três ovos cozidos e pedi para ele descascá-los. Mas ele estava com muita dificuldade; talvez por ainda estar assustado, talvez por ainda estar com sono, ou talvez por ainda estar com dor, e destroçava o primeiro ovo que descascava.
Perdi a paciência e tomei os ovos de suas mãos, fazendo o serviço eu mesmo, senão, não sobraria nada para ele comer. Gohan baixou a cabeça e ficou quieto, e ainda emitia alguns soluços quando enfim comia os ovos perfeitamente descascados por mim, e o observei com atenção.
No mesmo instante, senti uma pontada dolorosa e acusadora.
Será que havia a necessidade de ter sido tão grosso e impaciente com ele, só por causa de… um mísero ovo? E, caramba… Como ele era pequeno… Eu não me cansava de me surpreender com aquilo.
Droga, Piccolo…
— Como está seu olho? — perguntei.
— Dói… — Gohan abocanhou mais um pedaço do ovo.
Silêncio.
— Vai melhorar quando você também for nas Águas Termais daqui a pouco. — Foi a única resposta decente que consegui dizer.
— É mesmo? — Ele ergueu a cabeça para mim. — O senhor vai deixar eu blincar naquelas piscinas quentinhas?
— Por mim, pode. Agora, precisa ver com sua tia.
Gohan abocanhou o restante dos ovos de uma só vez e se pôs de pé.
— Tô pronto, Sr. Piccolo!
Não consegui conter um riso e respondi:
— Lettie não vai gostar que você chegue assim lá, descabelado e com o rosto todo catarrento. Vá buscar o pente nas coisas dela, que vou te arrumar.
Em dez segundos, ele estava de volta e se sentou de costas para mim. Enquanto ele lavava o próprio rosto (não sem emitir alguns "Ai!" quando esbarrava no olho roxo), tentei realizar a tarefa de domar seus longos cabelos.
Me arrependi no mesmo instante.
— Ai, Sr. Piccolo! — reclamou Gohan, não do olho roxo, mas do puxão que dei quando o pente enroscou num emaranhado de nós. — Não é assim que faz. Tem que começar pelas pontas. — Ele se virou para mim. — Acho melhor deixar isso para a Tia Lettie.
Soltei um grunhido irritado. Será que eu era incapaz de pentear os cabelos de uma criança?
Nada disso! Agora, virou questão de honra.
— Vire para frente e fique parado! — retruquei, ríspido, mas logo fingi uma tosse e completei, numa voz mais calma: — Hã… Digo… Eu vou tentar de novo.
Demorei uns quinze minutos para domar os cabelos dele e prender do jeito mais parecido que eu via Lettie prender todas as manhãs, não sem ter tirado mais inúmeros "Ais!" de Gohan no meio do processo.
— Vamos! — Levantei e o peguei no colo. — Já estamos atrasados. Segure firme, hein? — O coloquei nas minhas costas e levantei voo.
Com Gohan, pude voar mais rápido e, durante todo o trajeto, ele ficou apontando para as paisagens e lugares novos que não conhecia daquela região, e os quais no dia anterior não pôde apreciar devido à situação que passamos com Lettie.
Foi a primeira vez que ouvi ele rir desde que atendi seu pedido quando fiz o uniforme igual ao do seu pai antes de iniciarmos o Treinamento.
Sua risada foi como canção para os meus ouvidos.
— Achei que você tinha me abandonado aqui. — Lettie nos recebeu com um sorriso tímido e, ouso dizer, um pouco brincalhão quando chegamos às Águas Termais. Ela parecia mais saudável, de cabelos molhados e sentada na beira de uma das piscinas naturais, com as calças do pijama erguidas até os joelhos e mergulhando os pés e balançando-os devagar.
— Bom dia, Tia Lettie! — Gohan pulou das minhas costas e correu até ela, completamente esquecido do pesadelo que teve há pouco. — Demoramos porque o Sr. Piccolo não conseguia pentear meu cabelo.
Lettie me encarou numa mistura de feição confusa e incrédula.
— Você… penteou os cabelos dele? Você?
Fiquei parado na frente dela, decerto tão vermelho quanto fiquei antes, ao ver que minha reputação para tarefas tão banais e domésticas quanto pentear os cabelos de uma criança era quase zero para Lettie.
Murmurei e limpei a garganta, desviando o olhar.
— Hã… Eu… N-Não interessa! — Cruzei os braços, querendo me esconder, como se isso fosse possível, visto meus mais de dois metros de altura. — E outra, os cabelos dele estão muito secos e embaraçados, precisa de um condicionador.
— Mas eu pedi para você comprar um condicionador. — Lettie alisou o rabo de cavalo improvisado que tentei fazer em Gohan, com uma sobrancelha levantada e um meio sorriso irônico para mim. — Não se lembra? Foi há duas semanas, e você se recusou.
Droga. Ela tinha razão.
Lettie, no entanto, deve ter percebido a careta transtornada que fiz e riu pelo nariz, virando-se para o sobrinho.
— Como está esse olho? — Ela acariciou o rosto de Gohan. — Hmm, parece bem menos inchado. Que ótimo!
— Sim! — Ele levantou os braços em empolgação. — Acho que foi por causa do banho quentinho de ontem. Posso tomar outro agora? Deixa, vaaai! O Sr. Piccolo deixou!!!
Lettie me olhou de um jeito indagador, como se duvidasse que EU havia permitido esse tipo de diversão. Minha resposta foi torcer os lábios num bico ranzinza e virar a cara.
— Tudo bem, querido — disse ela para Gohan. — Pode ir.
Lettie nem teve tempo de despir o sobrinho, pois ele simplesmente se jogou na piscina em que ela molhava os pés, de pijama e tudo, e começou a nadar feito um golfinho filhote.
Permaneci parado no meu lugar, sem saber o que fazer. Eu deveria me sentar aqui mesmo, ou deveria me sentar perto deles? Talvez eu devesse ir embora e deixar os dois se divertirem. Tenho certeza de que preferiam mil vezes ficarem sozinhos do que comigo e–
— Molhe os pés aqui comigo. — Lettie deu tapinhas na grama ao seu lado. — A água está uma delícia.
— Vem, Sr. Piccolo! — completou Gohan, após dar uma cambalhota na água.
O-O quê?
Eles queriam que eu… ficasse com eles? Não queriam que eu fosse embora?
Pra ser sincero, não sei se aquilo me deixava melhor ou pior.
De qualquer maneira, acatei sua sugestão e me sentei ao lado de Lettie, não sem resmungar, só pra não quebrar o costume. Através da transfiguração, tirei minha capa, turbante e sapatos, e ergui meu uniforme de luta até os joelhos igual ela.
Lettie tinha razão. A água estava ótima.
Passou-se um minuto conosco observando Gohan brincar na piscina. Ambos estávamos um pouco desconfortáveis na presença do outro numa situação tão informal quanto molhar os pés numa piscina quente.
Aposto que daria para ver a fumaça saindo da minha cabeça, do tanto de coisa que eu pensava, na tentativa de descobrir se eu puxava algum assunto com ela ou não.
— A-Ainda está com dor? — Foi a pergunta genial que consegui bolar.
— Um pouco, mas acredito que vai passar. — Lettie deu de ombros.
Silêncio de novo.
Apertei tanto a borda daquela piscina, que os nós dos meus dedos ficaram brancos, até que, por fim, eu disse:
— Sabe… Hã… Dá para canalizar seu Ki para aliviar esse tipo de dor. Eu… posso te ensinar, se quiser.
— Sério?! — Lettie virou-se para mim, com a boca entreaberta em surpresa.
— S-Sim… — Passei a mão atrás do pescoço. — Não é difícil.
Ela então curvou os lábios num sorriso gentil e piscou devagar.
— Adoraria aprender, Mestre.
Pode ter sido impressão minha, mas, o jeito que Lettie disse "Mestre" veio carregado de uma confiança que só me lembro de ter ouvido quando ela me chamou por aquele título pela primeira vez.
Me senti envergonhado e não consegui respondê-la.
— Sr. Piccolo, pensa rápido! — Gohan encheu a boca com água e mirou para esguichar em mim. Desviei no último instante, e o jato d'água caiu na grama onde antes estava meu braço esquerdo.
— Tia Lettie, pensa rápido! — Gohan também esguichou água nela e, assim como eu, também se desviou, por pouco não levando um jato d'água na cara.
— Bons reflexos — eu disse a ela.
— Obrigada, os seus, també–OH! — Ela cobriu a boca quando eu, distraído ao falar com ela, não vi que Gohan havia enchido a boca com água de novo e atingido com êxito bem no meio da minha cara.
Fez-se um silêncio quase palpável.
Enquanto eu limpava meu rosto ensopado de baba infantil e água, aquela típica sensação de raiva quis tomar conta de mim.
Porém, quando vi que ambos Gohan e Lettie me fitavam de olhos arregalados, mostrando o mesmo medo que eu vira em seus rostos mais cedo, o alerta em meu coração falou mais alto.
Se aquilo tivesse acontecido há dois dias, eu provavelmente teria feito Gohan pagar duas horas de flexões seguidas, e colocaria Lettie para fazer junto só por pirraça.
Mas naquele momento, minha reação seria diferente. Em resposta ao jato d'água de Gohan, fechei minhas mãos em concha, as enchi com água, coloquei na boca e também esguichei bem no meio da cara dele.
Agora, estávamos quites.
Fez-se outro silêncio quase palpável, e Gohan e Lettie voltaram a me encarar de olhos arregalados.
Só que agora, não havia mais medo em seus rostos, mas sim, o mais puro e sincero… divertimento.
Então, Lettie explodiu numa crise de risos. Foi a primeira vez que ouvi ela fazer isso, genuinamente e sem restrições da timidez.
Sua risada era tão calorosa, tão viva, tão… linda.
Iniciou-se uma guerra d'água.
Jogamos água um no outro, numa competição de quem atirava o jato mais forte e quem conseguia se desviar com mais rapidez. Eu e Gohan tínhamos a vantagem de nos deslocarmos à vontade pela piscina, visto que Lettie não quis entrar por conta da menstruação, mas fiquei surpreso ao ver como ela se desviava de nossas investidas aquáticas com grande proeza e agilidade, mesmo sentada na beirada e com dores.
No caminho de volta lá pelo meio-dia, vi que o olho de Gohan estava bem menos inchado ao olhar para ele agarrado à minha capa enquanto apontava para uma paisagem nova que avistara, mas, sobretudo, percebi que Lettie também não estava mais rígida em meus braços.
Ao chegarmos no Acampamento, Lettie se mostrou bem disposta e fez um almoço caprichado para ela e Gohan, com legumes no vapor, acompanhado com uma salada de frutas que sobraram do café-da-manhã. Após isso, os dois dormiram o resto da tarde.
Tentei meditar durante este período sozinho ao lado da fogueira acessa, pois o clima ainda continuava mais frio, no entanto, um filme se passava na minha cabeça, no qual cenas dos últimos dois meses surgiam em imagens vívidas e cruéis em minha mente, torturando meu peito sem misericórdia.
Como, depois de tudo o que fiz Lettie e Gohan passarem, eles ainda quiseram minha companhia lá nas Águas Termais?
Como Gohan se sentiu tão à vontade para brincar comigo? Como Lettie conseguiu rir, mesmo sabendo que suas dores foram causadas por mim?
Como? COMO?!
Eu não conseguia entender… Eu não conseguia… suportar!
Que sentimento era aquele que me constrangia tanto? E será que um dia eu saberia lidar com isso?
A única coisa que sei é que a tarde passou rápida, e quando menos percebi, já havia anoitecido. Me sentindo exausto emocionalmente, levantei voo e saí para providenciar o alimento do jantar. Quando retornei, Lettie e Gohan me aguardavam perto da fogueira.
Eles pareciam bem melhor.
Lettie me agradeceu pelo alimento e se pôs a fazer a sopa, pedindo para Gohan ajudá-la a descascar as batatas. Pela primeira vez, reparei em como ela era carinhosa, o ensinando a pegar a faca da maneira certa e segura, e a descascar a batata sem destroçá-la.
Gohan se divertiu muito no processo, e no final, destroçou a batata, mas Lettie apenas sorriu e afagou sua cabeça, dizendo que, amanhã, ele poderia tentar de novo.
Me recordei da cena com os ovos pela manhã, e quis me enterrar no chão.
Para tentar me distrair daquela sensação horrorosa, peguei outra faca para também ajudá-la a descascar os legumes. O problema foi que ambos eu e Lettie miramos a mesma cenoura e nos inclinamos para pegá-la. Nossas mãos tocaram, e nos esquivamos como se tivéssemos levado um choque.
— D-Desculpe… — gaguejou Lettie, esfregando a mão que me tocou. Ela então me olhou de baixo. — Não precisa fazer isso, afinal, você… hã…
"Você nunca ajudou," era o que ela tinha em mente. Tenho certeza.
E Lettie estava certa.
Teria como a situação ficar pior?
Em resposta, soltei um grunhido ranzinza e peguei a cenoura e comecei a descascá-la. Lettie não disse mais nada.
Poucos minutos depois, ela colocava todos os legumes para cozinhar e mexia o caldo com uma colher de pau enquanto adicionava alguns temperos.
— Onde… hã… você aprendeu a cozinhar? — perguntei ao sentir que o silêncio ficou insuportável.
— Uma senhora que me abrigou por um tempo me ensinou quando eu era pequena. — Lettie ajuntou os utensílios sujos para lavá-los numa pequena bacia com água.
— O que aconteceu com ela?
Lettie parou e encarou a fogueira com um olhar abatido.
— Ela morreu.
Silêncio. Gohan nos observava.
— Você… — prossegui, cauteloso. — Você viveu em muitos abrigos?
— Sim. — Lettie começou a lavar os utensílios. — Cresci pulando de um para o outro, até que, quando eu tinha uns catorze anos, fui expulsa.
— Expulsa? — perguntei. — Por quê?
— Porque espanquei um garoto.
— O que ele te fez?
Lettie olhou receosa para Gohan, molhou os lábios e respondeu num tom baixo:
— Ele queria abusar de mim.
Meu estômago embrulhou numa náusea incômoda. Para disfarçar, peguei um graveto e mexi no fogo para aumentá-lo.
— E… hã… para onde você foi? — indaguei.
— Para as ruas. — Lettie franziu o cenho, me olhando como se aquela fosse a resposta mais óbvia do mundo.
Uma garota de catorze anos, sem família, morando nas ruas. Foi então que me recordei que, na noite em que os salvei das leoas, Lettie me disse algo sobre ela já ter sido uma… sem-teto, e que não foi nada agradável.
Agora, eu via o porquê, e aquilo só piorou meu estado emocional.
— Um tempo depois — Lettie suspirou —, descobri a existência das arenas clandestinas, e comecei a lutar. Afinal, pelo visto, era a única coisa que eu era boa em fazer.
— Mas eles não aceitam só pessoas maiores de idade? — repliquei.
— E você acha mesmo que eles ligavam para isso? — Lettie me ergueu uma sobrancelha, então, voltou a olhar para o fogo, sacudindo a cabeça devagar. — Esses caras só querem assistir uma boa luta, e pagam por isso. Pouco, mas pagam. — Ela de repente pareceu muito interessada na sopa já fervendo no caldeirão. — Oh! Está pronta!
O sorriso fingido que ela esboçou para Gohan e eu denunciou que não gostaria de prosseguir mais sobre o assunto do seu passado, e não a culpei.
Ela serviu Gohan, que se pôs a comer com gosto, e voltou-se para mim, segurando a concha cheia de sopa.
— Você… hã… quer um pouco? — perguntou, incerta.
— Não.
Lettie inclinou a cabeça e estreitou os olhos para mim.
— Você nunca vai experimentar minha comida? — Ela soltou um riso baixo. — Está bem diferente daquela que fiz na primeira noite no Acampamento, não é, Gohan?
— Xim! — respondeu ele de boca cheia. — Extá uma delíxia!
De cara amarrada, analisei os dois ali, me olhando com um brilho esperançoso, até que, por fim, revirei os olhos e bufei:
— Tá, tá! Só uma concha e nada mais. Que coisa…
Vi Lettie e Gohan trocarem sorrisinhos vitoriosos, e ela me serviu um pouco de sopa numa cumbuca, e nós três comemos em silêncio.
Por meu corpo ser capaz de sobreviver apenas com água, eu não tinha comido muitas sopas na vida, para falar a verdade. Entretanto, acredito piamente que, numa competição de sopas, a da Lettie com certeza seria a vencedora.
Só que, aquela sensação estranha repleta de vergonha e acusação que eu vinha sentido ainda me rondava, e não tive coragem de pedir para repetir.
Logo, o caldeirão foi se esvaziando até não ter mais nada. Gohan foi o maior responsável por isso. Comeu tanto que ficou de bucho cheio e não demorou muito para seus olhos ficarem pesados. Além de que, aposto que ainda se sentia exausto e com dores dos exercícios.
— Parece que a soneca de hoje a tarde não foi o suficiente, não é? — Lettie o pegou no colo após vê-lo bocejar e o aninhou no peito. — Quer ir ao banheiro antes de dormir?
Gohan respondeu que não, praticamente já babando no pijama da tia.
— Certo — disse ela. — Diga "boa noite" ao Sr. Piccolo e vamos para cama.
Tropicando nos próprios pés, um sonolento Gohan veio até mim e, para minha surpresa, me abraçou.
— Boa noite, Sr. Piccolo — ele sussurrou. — Eu te perdoo, tá bom?
Se Lettie ouviu as palavras do sobrinho ou não, não sei dizer. A única coisa que sei, é que um formigamento me acometeu e, por apenas um segundo, meu coração ficou menos pesado.
Após pedir licença, ela se levantou e o pegou no colo de novo, e foi até a barraca. Após colocá-lo na cama, me avisou que desceria para trocar o absorvente e se aliviar, e fiquei sozinho com a fogueira e os meus pensamentos.
Quando Lettie escalou de volta, veio até a fogueira para pegar água e tomar mais uma dose dos seus remédios. Eu precisava falar uma coisa importante para ela, mas estava difícil por causa do meu nervosismo e ansiedade.
— E-Eu… hã… — comecei, a olhando de pé ao meu lado tomando a água de um odre, então, me recompus e falei, firme: — Escute. A partir de amanhã, nosso Treinamento mudará.
Ela parou e virou-se para mim com um semblante curioso, e não vi outra saída a não ser continuar:
— Adaptarei os exercícios para que não fiquem tão pesados, mas que sejam eficientes, especialmente nessa sua… hã… nessa sua fase do mês. Também permitirei que você tire folga no primeiro dia da sua menstruação, e você e Gohan também terão meio dia de folga por semana para descansarem e recuperarem as energias.
Quando terminei, parecia que eu tinha corrido uma maratona, a olhando com meu peito subindo e descendo, e lá estava ela de novo, me analisando daquele mesmo jeito que fez pela manhã quando a levei às Águas Termais.
O que ela estava pensando?!
Devagar, Lettie se aproximou de mim, se abaixando até ficar na minha altura, e me olhou profundamente.
— Obrigada.
Então, com delicadeza, ela tocou meu braço, o apertando de leve, e sorriu.