Chapter 9 - Capítulo 08

PICCOLO

No quarto mês de Treinamento, Lettie e Gohan eram outras pessoas.

Sim, eu mudei meus métodos de ensino, e foi a melhor decisão que tomei. 

Honestamente, ao ver o resultado desta mudança, percebi o quanto eu deveria ter agido diferente com eles desde o início. Teria nos poupado muito transtorno, e me poupado da tristeza e culpa que ainda invadia o meu coração vez ou outra, quando eu me recordava de tudo o que fiz para eles.

De fato, o motivo de Lettie ter passado tão mal naquela ocasião foi devido à quantidade de exercícios e simulações intensas que a fiz passar. Mesmo sendo uma Saiyajin, seu ciclo menstrual ficou uma bagunça com tantas mudanças bruscas; físicas, emocionais, e impactos em seu corpo, que, quando seu sangue enfim desceu, foi demais para ela aguentar.

E meu chute em sua barriga foi o estopim.

Com o tempo e com a, digamos, minha "nova convivência" com Lettie e Gohan, fui tendo ideias do que poderia adaptar para que nosso Treinamento ficasse confortável para uma mulher e uma criança, e eles não sucumbirem à exaustão e esgotamento.

A primeira coisa que deixei de fazer foi a de acordá-los de repente de madrugada. Planejei uma rotina de sono que fosse prática e eficiente, e os resultados foram promissores. Eles acordavam mais dispostos e rendiam muito mais ao longo do dia, o que fez suas técnicas de Ki e combate também melhorarem.

Inclusive, fui fiel à minha palavra e ensinei Lettie a canalizar seu Ki para ajudar nas cólicas. Com isso, uma alimentação balanceada e as mudanças no Treinamento, seu ciclo menstrual voltou a normalidade e ficou tão saudável a ponto dela quase não sentir mais tanto desconforto durante a menstruação.

Também percebi que, apesar de eu e Lettie termos praticamente iniciado nosso relacionamento do zero naquele dia, com toda a vergonha e constrangimento que um evento daqueles poderia causar, senti que uma barreira entre nós… desapareceu.

Não nego que, no começo, Lettie ainda se comportava de um modo inseguro perto de mim, porque eu naturalmente tinha uma cara fechada e ainda lutava contra meus impulsos de respondê-los com palavras ásperas. Porém, conforme os dias foram passando, percebi como ela, aos poucos e com cautela, foi se permitindo se abrir comigo. Lettie deixou de ser aquela mulher quieta e apática e voltou ao normal. Assim como Gohan, ela tinha um temperamento manso, mas a alegria e a vivacidade retornaram ao seu espírito.

Eu finalmente entendi o significado de ser um Mestre.

Falando em Gohan, ele também se beneficiou de todas as mudanças que fiz. Na verdade, fiquei surpreso em como seu desempenho escalonou ao ter uma rotina mais leve e menos traumática.

Ele se tornou uma criança… normal (ignorando sua natureza Saiyajin, é claro). Mas, ele não aparentava mais o abatimento que presenciei durante aqueles dois primeiros meses intensos. Pelo contrário, se mostrava um garoto alegre, empolgado com a perspectiva de lutar na companhia de seu pai no futuro contra os Saiyajins, e, acima de tudo, com uma energia tão absurda que, confesso, às vezes me deixava cansado e exausto após um dia de Treinamento.

Nós três ainda estávamos descobrindo como lidar um com o outro, contudo, gradualmente, um sentimento diferente passou a rondar nossa convivência: paz.

Era certo que Gohan ainda lamentava de saudades da mãe e do pai, mas se tornou raro, e acredito que a presença de Lettie preencheu este vazio. Pra ser sincero, acho que nunca vi uma mulher com tanta vocação para a maternidade do que ela.

Lettie sabia quais as necessidades de Gohan só de olhar. Sabia como ele se sentia, o que precisava, e até mesmo, o que pensava, o que me deixava bem assustado, e suspeitei fortemente que ela tinha habilidades telepáticas e não me informou.

Ambos continuavam inseparáveis, numa conexão que apenas laços de sangue poderiam explicar tal fenômeno. Como parte da raça Saiyajin, era notório que Lettie era mais liberal em relação a permitir Gohan se aventurar à vontade nas lutas e exercícios, visto que ela própria tinha uma forte inclinação para essas atividades. No entanto, ela nunca deixava de ser carinhosa e prestativa para com o sobrinho, e, devido a esse seu jeito natural, acabava que todo esse cuidado também se direcionava… a mim.

Era muito estranho e, repito, constrangedor o quanto ela se tornou boa e simpática comigo, apesar de tudo o que fiz e que ainda fazia quando eu falhava em conter meus impulsos raivosos. Mas era como se Lettie de fato visse e reconhecesse que, mesmo falhando, eu estava tentando ser melhor.

Quando a conheci pela primeira vez na ilha do Mestre Kame e ela me inquiriu o porquê eu não a ajudei quando foi raptada por Raditz, pensei que fosse uma mulher arrogante e metida. Mas, parando para analisar, vi que sua reação comigo naquela ilhota foi até que bem plausível e realista, pois ela estava só… assustada e confusa com a virada repentina que sua vida deu.

E agora, ali, convivendo com a realidade do dia a dia junto a ela, Lettie se mostrou a pessoa mais gentil que já conheci, e tenho fortes suspeitas de que, no final das contas, Gohan puxou a tia, e não o pai ou a mãe na personalidade, pois ele era uma versão garoto em miniatura dela. Chegava a ser fascinante observá-los, tão parecidos eram.

Era nítido como ambos Lettie e Gohan adoravam lutas e combates. Isso era um atributo próprio de sua raça. Entretanto, eu percebia que eles… hã… como posso dizer? Eles traziam um significado para tudo aquilo.

Eles não lutavam apenas por gostar da adrenalina que as lutas causavam; como uma mera atividade prazerosa ou para ver quem era o mais forte entre os guerreiros deste mundo, não.

Lettie e Gohan lutavam por uma causa, e foi essa virtude que, um dia, também me fez questionar sobre o porquê eu lutava, e para quem.

Estávamos para iniciar o quinto mês de Treinamento, e eu lhes ensinava técnicas de levitação, antes de começarmos a voar de fato, numa área aberta lá pelas três da tarde.

De braços e pernas cruzadas, eu me sentava no chão arenoso e desértico, com Gohan me imitando ao meu lado, enquanto Lettie se posicionava de pé a nossa frente, de olhos fechados, punhos cerrados e uma expressão compenetrada ao se concentrar para conseguir executar a levitação.

— Vai, Tia Lettie! — Gohan ergueu os braços, ainda sorrindo de orelha a orelha após ter conseguido levitar na sua vez, minutos atrás. — A senhora consegue!

— Ah… — lamentou ela, sacudindo o corpo para relaxar. — Por que pra criança é mais fácil, hein?

— Porque elas têm menos preocupações na cabeça — repliquei com um riso.

Lettie fechou os olhos ao rir comigo, ajeitando a postura outra vez para se concentrar. Um minuto de silêncio passou, e ouvimos um alto ronco vindo de sua barriga.

— Aiiii, que fome! — Ela contorceu o rosto, ainda de olhos fechados, e em seguida, ergueu as sobrancelhas e umedeceu os lábios. — Acho que vou comer um quadradinho do meu chocolate hoje depois do jantar. Hmmmm!

— Pense bem nisso — falei. — Não vou sair para comprar outro na sua TPM.

Ela resmungou feito uma velha rabugenta.

(Sim, comprei uma grande barra de chocolate bem doce para ela, mas eu ainda tinha uma reputação a manter.)

— Foco — ordenei num tom firme. — Pare de pensar em comida e concentre-se direito.

— Está bem... — Ela encheu as bochechas de ar e o soltou. — Vamos lá, Lettie… Pelo futuro da Terra… Pelo futuro das galáxias e… Pelo futuro do seu estômago!!!

Senti o Ki dela aumentar, e a areia se mexeu ao seu redor, dançando com o suave redemoinho que a circundou, fazendo seus curtos cabelos flutuarem.

— Ela… Ela está conseguindo! — alegrou-se Gohan.

— Shhh! Fique quieto! Vai desconcentrá-la!

— Desculpinha!

A força do redemoinho se intensificou.

Eu e Gohan cobrimos nossos olhos contra a areia.

Os pés de Lettie se ergueram e… saíram do chão.

Ela conseguiu! Ela levitou!

CABUMMMMM!!!!!!!!! — O estrondo de um trovão ecoou ao longe, e ela se desconcentrou, perdeu o equilíbrio e caiu estatelada na areia.

Eu, Gohan e uma indignadíssima Lettie olhamos na direção daquele barulho e avistamos gigantescas nuvens pretas.

Uma tempestade se aproximava, e rápido.

Cinco minutos depois, nós três corríamos por aquela extensa área, encharcados. Olhei para Lettie e Gohan, cobrindo os rostos ao meu lado contra um vento gélido que nos castigava. Estávamos a quilômetros do Acampamento e, se continuássemos naquele ritmo, eles pegariam uma gripe daquelas, e isso atrapalharia o Treinamento.

Eu não tinha outra escolha.

— Lettie! — Elevei minha voz acima do ruído da chuva. — Pegue Gohan no colo, rápido!

— Certo! — Ela obedeceu de prontidão.

Eu a peguei nos braços e levantei voo (Gohan deu um gritinho de felicidade, pois, aparentemente, achou a situação super divertida). Ele se encolhia no peito da tia, e ela no meu para se protegerem da forte chuva e vento que nos atingia sem piedade pelos ares. Lettie então fez um malabarismo com o braço e conseguiu pegar minha capa, trazê-la para frente e cobri-los, agora os dois dando risadinhas abafadas e eu me lascando sozinho naquele temporal até o Acampamento.

Quando chegamos lá, os coloquei no chão. Por sorte, a barraca que comprei era relativamente grande, e logo transfigurei minhas roupas para tirar aquele trambolho que eu chamava de capa e nos esgueiramos barraca adentro.

Fui o último a entrar e Lettie se ajeitava de pernas cruzadas num canto, de cabelos molhados e toda corada devido ao esforço. Quando me sentei à sua frente, avistei um montinho encolhido debaixo dos cobertores entre nós.

— BU!!! — Gohan pulou pra fora dos cobertores, erguendo os bracinhos. Aquilo arrancou uma risada genuína minha e de Lettie, mas logo fechei a cara, pois precisava manter minha pose de homem durão, soturno e misterioso.

Então, assistimos à tempestade pela abertura da barraca.

— É… — resmunguei. — Acho que chega de Treinamento por hoje.

— VIVAAAAA! — comemoraram os dois.

— Dia de folga! — Gohan bateu palmas. — Obligado, chuva!

— Não vá se acostumar — repliquei. — É só por hoje e… Ei! Lettie, o que está fazendo?

Ela me cobria com um dos cobertores.

— Você pegou friagem. — Ela sorriu, ajeitando o tecido por cima dos meus ombros. — Precisa se aquecer.

Fiz uma careta emburrada, mas por dentro, me senti grato e encabulado pelo seu cuidado. Lettie também quis aquecer Gohan e disse para ele aproveitar a oportunidade para tirar uma boa soneca, mas, pelo visto, como toda criança normal, ele respondeu que dormir é para os fracos e que queria brincar!, e recusou o cobertor, pulando no colchão no pico máximo de sua energia.

Eu e Lettie trocamos o típico olhar de dois adultos cansados, e ela se virou para o sobrinho:

— Escuta aqui, ô garoto… Desse jeito, vamos precisar de outra criança para conseguir acompanhar toda essa empolgação. Vem cá, você não tem algum amiguinho que também queira se juntar a nós no Treinamento contra os Saiyajins?

— Lettie, não dá ideia — eu disse. — Não tenho saúde mental para treinar mais um pirralho.

Gohan, no entanto, parou de pular e se sentou no colchão com um semblante de profunda tristeza, e declarou:

— Eu… Eu não tenho amigos.

Lettie e eu nos entreolhamos com o cenho franzido.

— Como assim? — indagou ela. — Você não me disse que ia à escola?

— Sim, eu ia.

— Então, aposto que tem amigos por lá, não tem?

— Ah, a mamãe não gosta muito que fico blincando… — Gohan suspirou. — Ela acha que é uma perda de tempo e prefere que eu estude.

Lettie buscou meu olhar com uma feição de espanto.

— Mas, você não brinca nem na hora do recreio? — perguntei.

Ele negou com a cabeça e respondeu:

— As outras crianças tiram sarro de mim por causa da minha cauda, e sinto vergonha, então, fico sozinho na sala de aula ao invés de ir no parquinho.

Lettie abriu a boca numa indignação silenciosa, e confesso que também me senti mal por Gohan.

— Mas, e seus vizinhos? — Ela questionou. — Não tem algum casal com filhos por perto?

— Minha família mora no interior. Nossos vizinhos mais próximos ficam nas montanhas.

— E o que você faz quando está em casa, então? — perguntei.

— Eu estudo.

Silêncio.

— Você estuda e…? — começou Lettie.

— Só isso — completou Gohan. — Eu estudo.

— E mais nada? — Ergui a sobrancelha.

— Não. A mamãe é muito rígida com isso, e me faz estudar umas oito horas por dia.

Lettie ficou em pleno estado de choque.

— M-Mas, você só tem quatro anos! — objetou ela. — Como já estuda oito horas por dia? — Ela ergueu o olhar para mim. — Nem um adolescente no Ensino Médio deve fazer isso, não é?

— Não sei — respondi. — Nunca tive a infelicidade de chegar perto de um.

Ela revirou os olhos e voltou-se para o sobrinho:

— Mas, Gohan, querido, o que você faz no seu tempo livre?

— Hmm… — Ele botou a mão no queixo, pensativo. — De vez em quando, tleino com o papai. Mas, fora isso, é só estudar, estudar e estudar.

Percebi que Lettie inconscientemente agarrou o tecido de suas calças com força, se mostrando muito perturbada, com a chuva lá fora sendo o único som entre um silêncio incômodo que nos rodeou.

Olha, a Chi-chi poderia ter seus motivos, e eu não era nenhum especialista em relação à criação de filhos, mas, naquele momento, ao observar Gohan desabafar sobre sua miserável vida acadêmica, tive uma imensa vontade de falar umas poucas e boas para sua mãe, e, quando olhei de esguelha para Lettie, ela parecia pensar o mesmo.

— Bom… Hã… — Ela coçou atrás da cabeça e tentou soar mais otimista. — Mas, me diga… O que você faria se tivesse tempo livre para fazer o que quisesse?

— Ah, eu gostaria de explorar! — Gohan respondeu de prontidão, com seu rosto iluminado.

— Explorar o quê, exatamente? — indaguei.

— A natureza, os insetos, os animais… — Ele abriu os braços. — Quero ser um glande investigador quando crescer!

— Ah, então, você gosta de Ciências, é? — Lettie se mostrou mais aliviada ao ver o repentino ânimo do sobrinho.

— Bastante! É a minha matéria favorita! Tenho muitos livros em casa sobre os animais e as plantinhas e... — Ele então parou e nos olhou com um sorriso enorme. — Oh, tive uma ideia!!! Tia Lettie, depois que delotarmos os Saiyajins, porque a senhora e o Sr. Piccolo não se casam e me dão um priminho? Tenho certeza de que, se for da família, a mamãe vai deixar eu blincar com ele de explorador na floresta perto de casa!

Lettie riu alto, evidentemente achando a maior graça daquela sugestão, ao passo que me enrijeci de tal forma que meus músculos doeram.

— Ai, Gohan… Só você, viu? — Ela secou uma lágrima, ainda rindo. — Mas, não sei se faço o tipo do Sr. Piccolo. — Ela me deu uma piscadela brincalhona, e prendi a respiração.

— Olha! — Gohan apontou para mim. — O Sr. Piccolo ficou vermelho! — E ambos cobriram as bocas para rir feito dois idiotas trocando confidências e fofocas.

— ARGH! — grunhi em impaciência e saí da barraca. — Já chega!

— Hahah-ué? Aonde você vai? — Lettie elevou a voz para ser ouvida acima do barulho da chuva na entrada da barraca, enquanto eu caminhava batendo os pés em irritação até a borda do Acampamento, espalhando água a cada pisada.

— Pra qualquer lugar longe dessa palhaçada! — retruquei e levantei voo, deixando os dois sozinhos com suas gracinhas.

Voei sem nem saber para onde ia, sentindo veias latejarem nas minhas têmporas.

Ora essa! Eu e Lettie? Nos casarmos e darmos um priminho para Gohan?! Dá pra acreditar nessa ideia?!

Era simplesmente patético! 

"Mimimi, não sei se faço o tipo do Sr. Piccolo." Aff! Que perda de tempo! Com uma ameaça a nível global se aproximando, e eles pensando nessas bobagens?! Sinceramente, só não os obriguei a treinarem na chuva porque eu já estava longe demais do Acampamento. Só por isso.

Que absurdo! Eu e Lettie, um casal?!

Ridículo!

Ridículo…

 

***

Quando retornei ao Acampamento já de noite, encontrei ela preparando o jantar. Em silêncio e a observando com uma expressão fechada, me sentei no meu canto de sempre ao lado da fogueira.

— Onde está Gohan? — Minha voz ecoou, ríspida.

— Consegui fazê-lo dormir depois que você saiu. — Lettie levantou o olhar com um pequeno sorriso enquanto mexia no caldeirão.

— Hum! — resmunguei. — Se ele dormir até tão tarde, não vai dormir de madrugada.

— É só pedir para ele dar umas cinquenta voltas ao redor do Acampamento, que logo se cansa de novo. — Ela esboçou uma feição travessa. — Está mais calmo?

— E quem disse que estou bravo??? — retruquei.

Lettie riu e replicou:

— Não leve o que Gohan disse tão a sério. Ele é apenas uma criança fantasiando alguém com quem brincar.

Torci o nariz, e não soube o que responder. Lettie então pegou uma colher dos utensílios de cozinha, a encheu de sopa e ofereceu para mim.

— Aqui, prove. Veja se hoje está tão boa quanto nos outros dias. Vai te acalmar.

— EU JÁ DISSE QUE ESTOU CALMO! — Menti, mas aceitei aquele momento vergonhoso dela me dar a colherada de sopa na boca. Analisei o sabor, limpei a garganta e fiz uma cara de desdém. — Coloca um pouco numa cumbuca. Não deu pra sentir nada só com essa mixaria.

Lettie se empertigou em entusiasmo, e logo me entregou a cumbuca cheia de sopa. Comi uma colherada, e outra, e mais outra, e mais outra…

Por fim, concluí:

— É... Está razoável. Um dia você chega lá.

Ela deu um riso baixo e me agradeceu. Contudo, seu semblante se agravou e disse:

— Deixa eu te perguntar uma coisa… Sobre o que conversamos lá na barraca.

Engasguei com a sopa. Ela não ousaria entrar naquele assunto de novo, ousaria?

Lettie se sentou de pernas cruzadas e esfregou as mãos.

— Lembra que Gohan comentou que, quando ficava em casa, só estudava, estudava e estudava?

Ah, era isso, então?

Menos mal…

— Sim, lembro — respondi. — O que tem?

— É que… — Lettie mordeu o interior da boca, se mostrando receosa. — Refleti um pouco e… cheguei a conclusão de que ele está vivendo a mesma coisa aqui, com a gente. Só que, ao invés de estudar, estudar e estudar, tudo o que ele faz é treinar, treinar e treinar.

— E daí? É necessário para a nossa missão. Queria que ele fizesse mais o quê? Explorasse a natureza? — Ri com indiferença.

Lettie se virou e me olhou profundamente.

— Exato.

Ela falou de um modo tão sério, que endireitei as costas.

— Não entendi — repliquei.

— O que estou dizendo é que… — suspirou ela. — Estamos no ambiente perfeito para ele fazer esse tipo de exploração e soltar sua criatividade e imaginação. — Ela abriu os braços e olhou ao redor. — Esse lugar é lindo! Tem muita coisa interessante para se fazer aqui. Se pudéssemos tirar um tempinho do nosso dia para praticar essas atividades e–

— Ah, não, não e não! — cortei. — De jeito nenhum, Lettie! Não permitirei que Gohan se distraia com essas tolices. Esqueça. Sem condições.

— Mas, não são tolices. Vai fazer bem para alguém tão pequeno como ele relaxar um pouco depois do Treinamento. — Ela apontou para a barraca e baixou a voz. — Esse garoto não tem diversão alguma além de ficar lutando e treinando o dia todo! Eu e você fazemos isso sem problemas porque somos adultos e sabemos das nossas responsabilidades. Mas até você deve ver como o Gohan está ficando muito inquieto. Ele precisa gastar essa energia com algo que ele de fato goste de fazer. Ele precisa ser criança!

— Mas ele gosta de lutar. — Dei de ombros.

— Sim, mas não é a atividade preferida dele, e você sabe disso.

Fiquei em silêncio, olhando para ela, pensativo e ponderando nas questões que levantou.

Odiei admitir, mas Lettie tinha razão.

Se Gohan continuasse com toda aquela energia infantil se acumulando sem ser descarregada da maneira apropriada, quem arcaria com as consequências seriam nós dois, e o incidente com a menstruação de Lettie me ensinou o bastante em como não era prudente negligenciar tais assuntos.

Ela tocou em meu braço.

— Não se preocupe com nosso Treinamento. O que te peço é que nos libere meia-horinha mais cedo, para explorarmos a região e brincarmos um pouco.

Meia-hora?! — repeti num tom alto, mas logo baixei a voz ao olharmos para a barraca, e me voltei para Lettie. — É muita coisa. Nada disso. Quinze minutos já é o suficiente.

— Vinte! — rebateu ela, e me olhou de um modo doce e suplicante. — Por favor…

Algo naqueles olhos azuis e brilhantes me causou um incômodo, e precisei desviar o olhar.

Droga.

— Tá, tá! Tudo bem! — bufei. — Vinte minutos depois do Treinamento e nada mais. E quero um relatório semanal sobre as descobertas que ele fez. — Grunhi em impaciência. — Pelo menos, treinará os músculos do cérebro.

— Por acaso eu já te disse que você é incrível? — Lettie sorriu, pegando a minha cumbuca já vazia e colocando mais sopa. — Tome. Em agradecimento, coma mais um pouquinho. Já, já, chamo o Gohan para vir jantar.

— E por acaso eu já te disse que você me enche o saco? — Aceitei a sopa, não sem dar mais um resmungo de irritação, e voltei a comer enquanto ela ria pela sua vitória.

— Bom, agora estou curiosa. — Lettie estreitou os olhos para mim. — Já que Gohan disse que quer ser um grande explorador quando crescer, me conte… O que você quer ser quando crescer? Qual é o seu… maior sonho?

— Já falei. Dominar o mundo.

— Ah, é mesmo. — Ela assentiu com um sorriso. — Desculpe por esquecer.

Permanecemos em silêncio por um tempo. Caramba, a sopa estava excelente. Tinha até pequenos pedaços de peixe.

— Então… — Lettie voltou a falar. — Depois que você dominar o mundo, vai fazer o quê?

— Como assim? — perguntei, confuso.

— Você vai fazer o quê, exatamente? Qual é a rotina de um Dominador do Mundo? Você acorda, se senta num trono chique e… o que acontece depois?

O que… acontece… depois?

Eu e ela ficamos nos olhando por longos segundos, e refleti em sua pergunta.

O que acontece depois…?

Eu… nunca cheguei nessa parte. Eu conquistaria toda a Terra e… era isso. Este era o meu objetivo desde que meu pai, o grande Piccolo Daimaoh, me colocou no mundo.

O que acontece depois?

Eu… Eu… Eu não sei!

— Mestre? — Ela me chamou. — Você está bem? Está com uma cara de quem está tendo uma crise existencial. 

E eu… E eu estava, mesmo!

— Falei algo de errado? — completou ela.

— Não! — respondi, seco. — Esqueça, não foi nada. E-Eu… Hã… — Sacudi minha cabeça para me recompor. Então, pausei e respirei fundo, normalizando minha entonação e ávido para deixar de ser o protagonista daquela conversa o mais rápido possível. — Me diga você, Lettie. Qual é o seu sonho?

Ela olhou para a fogueira e adquiriu uma expressão contemplativa, com seus olhos brilhando pelo crepitar das chamas, e abriu um sorriso tímido para mim.

— Eu conto se você não ficar bravo comigo.

— E por que eu ficaria bravo com você?

— É porque… o meu sonho é… — Ela parecia bem ansiosa, escondendo as mãos entre as pernas cruzadas. — É justamente o que Gohan disse na barraca. — Ela virou-se para mim. — Casar e ter filhos. — Ela deu de ombros. — Enfim… ter uma família.

Senti um súbito frio na barriga e estremeci. De novo aquele assunto?!?!

Fingi uma mistura de tosse com risada desdenhosa.

 — HÁ! E depois você diz que o meu sonho é clichê.

— Ah, para, vai? — Ela riu, me dando um tapinha. — Não tire sarro de mim.

Não consegui evitar sorrir de volta. Lettie era desse jeito. Tinha o dom de deixar qualquer conversa mais leve, por mais constrangedora que fosse.

— E não tinha algo mais interessante pra você sonhar, não? — questionei, me sentindo mais relaxado.

— Ah… É que… — Ela suspirou e, de repente, adquiriu um semblante triste. — Acho que quando se é encontrada num terreno descampado quando bebê, fica pulando de um abrigo para o outro porque te acham esquisita, e acaba crescendo sozinha, você acaba tendo esses sonhos bobos, mesmo.

Silêncio.

Lettie também tinha o dom de me deixar sem graça.

Porém, como se nada tivesse acontecido, ela voltou a sorrir para mim e perguntou:

— Posso só te pedir uma coisa?

— Diga.

— Se quando você dominar o mundo eu já tiver a minha família, poderia poupá-la, por favor?

Paralisei, e ela permaneceu ali, me olhando com uma feição doce e sorrindo no seu típico jeito brincalhão, enquanto minha sopa caía da colher a meio caminho da boca e sujava minha roupa. Balancei a cabeça, meio transtornado por aquele momento de dispersão, e respondi:

— V-Vou pensar na sua proposta.

— Obrigada. — Ela se levantou e alongou os músculos dormentes. — Sabia que você era uma pessoa boa. Capaz até de ter um coração.

— Cuidado com o que fala… — Enchi minha cumbuca pela terceira vez. — Que te faço correr por este Acampamento cinquenta vezes com Gohan.

Lettie riu pelo nariz e se pôs a caminhar em direção à barraca, mas então, parou e voltou-se para mim:

— Sabe… Acho que, no fundo, temos muito em comum. No final das contas, eu e você não passamos de duas pessoas que viveram solitárias por um longo tempo. Eu te entendo, e sei que não é fácil.

Abri levemente a boca. 

Aquilo me pegou de surpresa, e mexeu comigo profundamente.

Apesar da constatação de Lettie, pela primeira vez na minha vida, senti que eu não estava mais sozinho.

Ela me deu um aceno com a cabeça, piscando e sorrindo com gentileza, e voltou a caminhar até a barraca para chamar Gohan. Banhada pela luz das estrelas e da Lua que Kami-sama colocou de volta nos céus, fiquei a assistindo se distanciar por muito mais tempo que deveria, e com uma única conclusão assombrando meus pensamentos:

Quando pensei que eu já tinha todas as respostas para a minha vida, Lettie veio e mudou todas as minhas perguntas.