Kiranara violou o selo da carta e a abriu. Dentro havia um papel com instruções de sua próxima missão. Desta vez, ela teria que visitar um mago conhecido por ser insuportável, embora fosse poderoso.
O Conselho, claro, não se importou com a questão dele ser um homem desprezível. O que interessava ao Conselho era por que ele não havia contribuído com itens mágicos há mais de dois meses.
Nomedark, o mago desprezível, não falhava com sua contribuição mensal. E ele, orgulhoso como era, sempre enviará os melhores ítens mágicos para o Conselho. Não era só a beleza que atraí os olhos dos membros. O Conselho gostava da eficiência em forma de itens mágicos.
Agora cabia a Kiranara, a arauto do Conselho, visitar e resolver a situação. Ou, como se espera de uma pessoa responsável por negociações, um parecer sobre a situação.
Kiranara, claro, não se importava com o que o Conselho deixava ou não de ganhar. Mas caso ela não contribuísse, seria ela que teria muito a perder. E ela se esforçou demais para ter acesso aos livros da biblioteca do Conselho. Sua dívida para com tamanha dádiva era servir de arauto de forma eficaz.
A mulher, era óbvio, não recusaria tal oferta. Para ela, em seu íntimo, o conhecimento acumulado naquela câmara de difícil acesso vale mais que qualquer quantia de ouro.
Ela era uma negociante formidável. Igualmente formidável era a sua sede pelo conhecimento proibido acumulado em forma de pergaminhos e livros dentro dos arquivos secretos da Seita.
A mulher guardou sua carta na bolsa de viagem. Terminou os preparativos, foi até o estábulo e pegou sua montaria.
— Olá, Reveren. — cumprimentou o zelador.
O garoto logo ficou animado:
— Bom dia, Senhora Kiranara. O seu cavalo está pronto para a sua próxima viagem conforme combinamos na noite anterior. Como sempre, deixei a sela organizada com provisões e alguns itens solicitado por sua Senhoria. Ah, a lanterna foi substituída por uma de cristal mágico.
— Excelente, Reveren.
Ela pegou uma moeda de ouro de sua bolsinha e a entregou:
— Continue sempre assim. Sua eficiência pode lhe render cargo melhor futuramente. Pense nisso.
— Agradeço pelo elogio, Senhora. Conforme me foi instruído, estou me organizando e estudando para que um dia eu possa ser um arauto tão eficaz quanto a Senhora. Se me permitir dizer, sua performance serve de inspiração.
Kiranara sorriu. Montou em seu cavalo e se despediu de um rapaz com o rosto vermelho de vergonha.
— O segredo, Reveren, está em quão dedicado e disciplinado você está para com o comprometimento de suas realizações. A bem da verdade, como experiência própria, direi que só depende de você.
— Assim será, Senhora. Tenha uma excelente viagem. Quando retornar e caso precise se algo basta entrar em contato.
— O farei caso seja necessário. Devo ir. Não gaste seu dinheiro indevidamente.
— Seguirei o seu conselho e não o farei.
Sem mais palavras ela se foi com seu cavalo. Sua missão não era tão simples quanto parecia e o Conselho gosta de receber respostas o mais rápido possível.
Os portões da cidade abriram-se majestosamente. Enquanto ela incitava o seu cavalo a percorrer a ponte, muitos dos guardas lhe deseja boa sorte.
*****
Nomedark ergueu-se de sua poltrona acolchoada. O livro que estava ao alcance de sua mão foi deixado de lado como que uma repentina falta de interesse. Na verdade, ele olhou através da janela e viu um visitante se aproximar do seu portão.
Há muito o velho mago não recebia visitas, exceto dos coletores do Conselho. Nomedark era inteligente o suficiente para saber que não se tratava de um mero coletor de impostos. A roupa que a mulher trajava lhe indicava que era alguém muito importante. Alguém que a Seita havia enviado para saber por que ele havia cessado com suas contribuições.
Embora fosse um velho solitário, jamais havia sido mau educado. E embora coletores lhe ameaçava, Nomedark os ignorava justamente por não haver neles nada de intelectual. Eram animais simples, de mentes pequenas, movidos como peões em um tabuleiro de estratégia. Serviam para seguir ordens, serviam mais aos outros que a si mesmo. Uma falha no propósito. Nomedark detesta tudo o que não contém propósito. Ao que parece, outro animal da mesma laia havia chegado para perturbar sua paz.
O velho de barba branca com olhos azuis, desceu a escada espiral. Assim que chegou ao portão, observou atentamente a mulher do outro lado.
Ela tinha cabelo longo preso por uma prisilha. Tinha olhos com íris roxas e não era nem muito corpulenta nem muito magra.
Nomedark falou com acidez na voz:
— Parece que temos aqui mais um dos animais do Conselho. Como você deve ter percebido, não estou falando da sua montaria, é claro.
Ela não respondeu de imediato. Ela simplesmente o encarou por um instante e só então respondeu:
— Tenha um pouco de paciência. Demorei um pouco para chegar até aqui. Pelo o que me contaram de sua pessoa não é do seu interesse ser mau educado com uma mulher.
— De fato não é. Eu a trataria como se fosse minha convidada de honra se as circunstâncias não me dissesse que está aqui pelo Conselho.
Ela desceu do cavalo:
— Estou aqui representando o Conselho. No entanto, não sou do próprio Conselho. O que significa que não pode me tratar como um deles. Preciso trabalhar. Todos precisam. Tive todo o trabalho de vir aqui para conversar, para saber mais sobre o seu motivo de ter parado de enviar do que obter respostas satisfatórias para o Conselho.
— Você é mais simples do que muitos que me visitaram. Tem alguma formação acadêmica?
— Sim. Claro que o tenho.
— É uma maga? Um arauto apenas?
— No momento basta saber que sou um arauto. Para obter respostas de minha pessoa deve-se, conforme se espera, responder algumas de minhas questões. Preciso que responda: Qual foi o motivo de ter cessado os envios de ítens mágicos?
O mago deu de ombros. Por um momento fez menção de sair da presença da mulher e retornar aos seus aposentos. Até que os seus olhos caíram sobre o tomo que ela levava consigo presa ao cinto.
— Vejam só. Não é que você me parece alguém que gosta de estudar... Conte-me.
— Eu gosto de muitas coisas, mas somente as que possuem propósitos.
O mago de aparência desprezível mudou sua carranca como que se tivesse acabado de vislumbrar algo que necessitava ser estudado.
— O meu maior defeito, arauto, está na minha curiosidade. Como sabia que eu prezo pela dedicação a propósitos?
Ela sorriu:
— Eu não sabia até você ter me revelado.
Ele sorriu de volta:
— Sinto muito pela minha falta de modos. Entre. Há muito o que conversar se a sua Senhoria não estiver com pressa de partir.
De repente, Nomedark tornou-se energético e ao olhar da visitante ele poderia até ser um mago velho, mas havia nele muita energia a qual sua idade conseguia disfarçar bem. Engraçado como era ela quem estava com dificuldade de alcançar aquele senhor.
— Vamos! Vamos! Não se deixe vencer por uns lances de escadas!
— Não se preocupe. Pisarei sobre eles com o dobro de minha determinação.
O mago soltou uma gargalhada que parecia há muito não fazer. Kiranara, contagiada pela risada, o acompanhou.
Logo que eles passaram pelo portão principal, um hall os recebeu com um calor confortável de uma fogueira que estalava e lançava no ar um cheiro de carvalhor. Mesmo ali na entrada, havia uma poltrona e uma estante ao lado repleta de livros. Estava organizado por títulos e cores das capas.
Kiranara não pode deixar de comentar:
— Ler próximo ao fogo é um dos lugares que mais aprecio.
— Gosto da paz que me trás, mas de forma alguma é mais precioso para mim que minha biblioteca.
— Nunca a vi embora não deixaria a oportunidade passar se um dia me fosse permitido visitá-la.
— Não sou de realizar caprichos. Exceto quando se faz necessário. Acompanhe-me mais alguns lances de escadas.
Kiranara o acompanhou embora seus olhos estivessem observando os quadros, as armaduras limpas e polidas, o tapete vermelho...
— Minha cara, não me respondeu.
— O que? Eu estava distraída...
O mago virou-se por completo:
— Eu quis saber de você o seguinte: você conhece A Anselarsi?
— A teoria da junção das Manas?
— A própria.
Ela demorou um pouco para responder. Aquela pergunta era importante, notou. Kiranara não poderia falhar.
— Li sobre quando estava estudando Qjakan, O Estudante. Tal teoria veio de uma ideia que ele teve sobre os aspectos da magia e seus efeitos duradouros. Ele próprio criou essa teoria baseada em outra de sua própria autonomia. Sim, Nomedark, sei sobre Anselarsi. É através dela que sabemos sobre a sinergia das magias baseada nos estudos arcanos e místicos.d
O mago sorriu de forma satisfatória para ela:
— Você não é uma arauta embora trabalhe como uma. Eu diria que você o faz como última opção já que todos nós temos que trabalhar.
Agora foi a vez dela sorrir:
— É fácil deduzir quando se obtém a resposta de forma plausível. Aproveitou de minha distração para me perguntar algo tão importante.
— E no entanto não me respondeu, já que o que eu deduzi e o que você realmente é são duas coisas totalmente diferentes.
— Nesse caso temos uma meia verdade. Ou uma meia mentira.
Nomedark sorriu outra vez. Ergueu a mão e fez um aceno paras a porta dupla enorme da entrada de sua biblioteca:
— Contemple todas as coisas que ocupam do meu precioso tempo. Maravilhe-se com tais títulos!
A porta estava aberta de tal forma que ela notou como um convite. Como um ente querido de braços abertos aguardando o tão esperado retorno. Era uma câmara de pisos escavados e adaptados. Havia sessões de diversos tipos, classificados por côr ou ordem alfabética. Prateleiras tão altas que havia a necessidade de uma escada para alcançar o topo, mesmo as mesmas prateleiras tendo bases no piso fundo. Corredores que parecia um labirinto. Um labirinto de prateleiras.
De cima, ao menos foi a ideia que passou em sua mente, pode contemplar um santuário. Na verdade, estava confusa se aquilo era uma biblioteca, uma Academia ou ambos.
Ainda admirada com a visão, Nomedark falou:
— Eu fiz toda a adaptação. Levou tempo é claro e ainda tenho que acrescentar sessões novas, porém é esse o meu trabalho. Um mago dentro de uma biblioteca é um mago de verdade. O meu lar é o meu trabalho. Meu trabalho é minha essência.
— Que Lugar fantástico! Um prato cheio para mentes famintas.
— Muitos me convenceram disso e nenhum deles ficou vivo tempo o suficiente para saber o resultado de suas realizações.
— Seus discípulos?
— Sim.
— O que houve com o último?
O mago afastou-se dela e foi até o pedestal. Sobre ele havia um grimório com capa grossa, com um volume de folhas que, segundo os cálculos de Kiranara, superava facilmente seiscentas páginas. Depois de folhear por um tempo, Nomedark parou e percorreu as páginas com o indicador.
— Muito bem! Aqui está. Seu nome era Fobawld. — Ele pingarreou e continuou. — foi um jovem muito promissor. Tinha dezessete anos e chegou até mim com muita fome de conhecimento. Havia trazido consigo mochilas e bolsas repletas de livros e de pergaminhos. Um rapaz que tinha em sua essência a vontade de adquirir poder e conhecimento. No entanto, em um dos seus experimentos, não respeitou os próprios limites e causou a si mesmo uma morte tão brutal que não sobrou sequer os restos mortais. Baseado em suas últimas anotações ele quis criar um feitiço de destruição poderoso. Fobawld morreu, levando consigo um terço da biblioteca.
Fechou o livro com tamanha habilidade que ele fez um som suave.
— Anotei coisas sobre ele, como anoto coisas sobre tudo o que me chama a atenção. Fiz um breve resumo para que ele fizesse partes de minha segunda mente. Ou seja, meu Memorium.
— Então ele sequer conseguiu preparar o feitiço de forma correta?
— Em suas anotações havia detalhes importantes sobre o processo. Mas, ainda sim, não explica com exatidão onde a falha tomou forma.
— Mas de certa forma deixou explícito o que também não deu certo.
— De fato. E isso é informação valiosa.
O velho percorreu uma a distância entre ele e uma prateleira. Selecionou um dos livros e o trouxe até Kiranara. Com um gesto o segurou a sua frente como que um expondo um vinho raro. A mulher não demorou para se aperceber de que aquele livro era raro.
— Um livro de coleção antiga. De eras remotas.
— Sim. — o mago concordou. — um dos poucos ao quais ainda resta índices dos primeiros rituais criados.
— Um grimório de Ritualistas?
— Sim. Talvez isso lhe interesse muito mais que a mim.
Quando a mulher fez menção de pegá-lo, ele o retirou e voltou a falar:
— No entanto não poderia lhe entregar algo tão valioso se não fosse digna de tal dádiva. Lhe proponho um teste.
Kiranara tirou seus olhos da capa negra com entalhes violetas e voltou sua atenção para o velho:
— Um teste? O que preciso provar exatamente?
— Uma mente ambiciosa não necessariamente é uma mente inteligente. Vejo ambição em você, vejo inteligência, mas responda-me: há propósito em sua vida?
A mulher ficou em silêncio. O mago sabia que ela escolheria as palavras com cuidado. Talvez ela tenha percebido que o teste já havia começado.
— Como poderia eu lhe dizer meus objetivos se o que mais prezo é sigilo? Cedo ou tarde, inevitavelmente, terei que expô-los. Para não deixar a resposta em branco gostaria de dizer que há sim.
O mago a avaliou. Ele saberia se estivesse mentindo mesmo se não conhecesse o suficiente. Sua vasta experiência em procurar discípulos o ensinou a enchergar muito além da aparência e das palavras.
— Você não mente. Se o fez soube esconder muito bem. Tenho ensinamentos que preciso passar a diante. Afinal não sou eterno e se não for passado a diante qualo propósito de ter obtido em primeiro lugar?
— Não duvido que tenha conhecimentos maravilhosos. O próprio lugar deixa bem claro. Passei no teste?
O mago recolheu o livro e o deixou descansando em uma mão dentro da túnica. A observou novamente e perguntou:
— Kiranara, qual é o valor do seu propósito?
— Tudo. Preciso de poder e de pessoas ao meu lado. Tenho a necessidade de tomar o poder.
— De quem exatamente? — Nomedark a perguntou antes de continuar. — Meu?
— Não. O seu não. Somente um louco enfrentaria um mago tão poderoso.
Ele sorriu. Ela não era tola, afinal.
— Sua inteligência lhe levou ao próximo patamar de nossa conversa. Mas creio já ter tomado demais do seu tempo. Informe ao Conselho que enviarei itens valiosos como forma de desculpas e também como prova de minha lealdade.
Ela entendeu que ele havia encerrado aquela conversa. O mago entregou a ela uns colares mágicos. Explicou o que cada um faziam e se preparou para acompanhar sua visita até o portão.
— Há apenas mais uma pergunta que gostaria de lhe fazer, Nomedark.
— E qual seria?
— Se o Sol e a Lua possuem formatos circulares isso significa que o nosso mundo também o é? Será que não somos uma pirâmide, um retângulo ou um quadrado?
O mago sorriu novamente:
— Uma questão deverás interessante! Agora vá criança, preciso descobrir uma resposta válida a sua pergunta. Vá e me deixe trabalhar.
Ambos sorriram e aquela não seria a primeira vez que se veriam.
Satisfeita por ter obtido sucesso, Kiranara partiu de volta.
No caminho se volta ela repassou as informações obtidas naquele encontro. Apesar de ter lido sobre ele a sua experiência pessoalmente foi uma coisa totalmente diferente. Logo notou que havia muito a aprender e o seu plano de se livrar do Conclave ganhou mais um acréscimo.
Ela sorriu para si mesma enquanto seu corpo se movia de volta para a estrada de Lavnic, sua mente divagava sobre o quanto de conhecimento havia na biblioteca de Nomedark.