O vento soprou devagar, como se estivesse com remorso de fazê-lo sentir tão gelado daquele modo. Mesmo assim, decidiu dançar mais algumas vezes ao redor de seu casaco surrado, porque, afinal de contas, ele era a porra do vento e era seu trabalho. Não havia encontrado nenhum cadáver vestindo um casaco que valesse a pena, então teria de se virar com aquele mesmo, por mais algum tempo. O forro térmico estava bastante desgastado, permitindo que aquele vento abusado desse algumas voltas geladas por sua barriga, que também estava gelada por estar vazia, mais vazia que suas intenções para aquele inverno. Puxou o ar para dentro dos pulmões devagar, não estava com pressa alguma. Não tinha porra de lugar algum para ir aquela manhã. Talvez seguisse o vento. Levantou a cabeça mais um pouco, agora que o filho da puta dera um tempo. Seus olhos contemplaram a imagem a sua frente, mostrando suas opções. Se andasse até o final do dia, alcançaria aquele vilarejo, e talvez conseguisse algum contrato interessante para colocar algum crédito em sua conta, mas não gostava daquele lugar. O vento passou por suas costas rapidamente e se acreditasse, diria que estava o mandando seguir naquela direção, mas era somente o vento, ainda mais burro do que ele considerava a si mesmo. Então, olhou para o norte. A fumaça marrom subia alto. Seguindo cinco ou seis dias naquela direção, encontraria a cidade que produzia aquilo tudo. Não se importava com a caminhada de seis dias. O problema é que gostava demais daquele lugar. Esperou para ver se o vento iria ter alguma coisa a dizer. Ele teve. Passou exatamente pelo mesmo lugar que havia passado anteriormente. Seu filho de uma puta. Agora, ele mesmo produziu algum vento pelas ventas e voltou para o acampamento. Apanhou seu aquecedor, fechou as pernas do aparelho e o desligou. Ainda tinha mais três ou quatro horas de calor sem precisar recarregá-lo. Soquetes de energia eram quase tão disponíveis para ele quanto casacos térmicos novos. Apanhou seu colchão e com um toque o fez se enrolar e encolher. Meteu tudo na mochila, de onde a panela nem sequer saiu aquela noite, e fechou-a rapidamente.
_ Cadê você, velho feio? – olhou ao redor e Wayne estava parado próximo a uma pedra, onde gostava de dormir em noites frias. Era esperto aquele lagarto. Aquelas pedras ficavam quentes a noite e ajudavam a mantê-lo aquecido. Seria uma excelente opção para ele também, mas Wayne era imune a picadas de aranhas de pedra, ele não.
_ Venha. Vamos embora – viu os olhos de Wayne se abrindo devagar. A cor dourada deles brilhou. O lagarto acordava mal humorado todos os dias. Esticou as pernas traseiras para trás devagar. Esticou as unhas uma por uma.
_ Wayne – eles se olharam – eu não tenho a manhã toda – o lagarto soltou o ar dos pulmões o encarando. Ambos sabiam que tinham, sim, a manhã toda. Até mesmo o resto do dia, da semana. Não tinham porra nenhuma para fazer, como não tinha merda nenhuma para comer, desde a dois dias quando entregaram o último foragido que conseguiram botar as mãos. Wayne esticou as patas da frente, como se nada mais houvesse para se fazer aquela manhã e ficou em pé. Seu corpo avermelhado, com manchas marrons que ajudavam fazê-lo mais ameaçador, se alongou. Sua cauda se esticou, fazendo pequenos estalos a medida que os ossos voltavam para o lugar. Caminhou devagar até o homem parado, a sua frente. Mas fez isso bem devagar. Não queria que parecesse que estava seguindo ordens. Lagartos de montaria não seguiam ordens, aceitavam opiniões, quando muito.
_ Obrigado, majestade! – ele ignorou o homem dentro do casado preto fedido. Já estavam juntos a tempo o bastante para saberem quando um deveria ou não ignorar o outro. O homem puxou um disco metálico da cintura de sua calça escura, que já devia ter tido uma cor qualquer, mas que agora era basicamente um tingimento de terra vermelha escuro com manchas em todos os lugares até sumirem nas botas que quase chegavam ao joelho. Colocou o disco no meio da costa do lagarto de cinco metros de comprimento por dois de altura e a cela se abriu automaticamente ao entrar em contato com o corpo de Wayne. O lagarto bufou quando ela se prendeu a sua barriga gelada e olhou para o homem.
_ Não começe a reclamar novamente. Eu sei que gostava mais da antiga, mas ela se foi e temos de viver com isso, juntos. Certo? – o homem passou a mão pela pele marrom da cara de Wayne e os olhos se fecharam por um instante.
_ Vamos? – prendeu o pé na cela e montou o lagarto. Respirou fundo e se apoiou em sua cabeça.
_ Que tal você escolher para onde vamos, desta vez? – os olhos dourados subiram para encarar o homem.
_ Eu acho que deveríamos tentar a cidade ao norte, mas são seis dias de caminhada até lá e você fica cada vez mais mal-humorado quando está com fome. E não sei o que é pior. Aquela cidade ou você com fome – Wayne soltou o ar dos pulmões. Os olhos do lagarto subiram para o céu. O sol logo estaria sobre suas cabeças e mais calor ajudaria Wayne a andar mais rápido, mas tantos dias de caminhada sem garantia nenhuma de uma refeição não parecia promissor.
_ O que nos leva aquele vilarejo poeirento, mais uma vez – ele prendeu a guia na cabeça do lagarto de montaria e mostrou que queria seguir em frente. O animal soltou seu grito padrão e começou a descer a beirada da montanha de areia em que estavam, rumo a planície onde havia mais areia. Aquela areia vermelha que ocupava quase todos os lugares que conhecia. Ela só parecia preservar algumas planícies, como a que estavam indo em direção. Para a beira do mar deserto e vermelho, onde haviam construído uma cidade da qual não gostava. Havia alguma coisa de ruim naquele lugar, pelo menos para ele. Sempre tinha a impressão de que nunca mais voltaria de lá, e talvez isso realmente acontece um dia destes.
A cidade sempre o fazia ficar empolgado. Nunca assumiria, claro, mas gostava de fazer aquela viagem até a cidade. A carroça já estava acelerada, mas os potentes lagartos domésticos foram obrigados a acelerar um pouco mais quando uma segunda carroça, puxada por dois lagartos fortes, passou pela esquerda levantando mais poeira vermelha. As mulheres dentro dela tinham aquele ar arrogante, tão típico daquele lugar, e mal o viram parado com sua carroça cheia de mercadorias. A carroça do fazendeiro seguia, ficando vários metros para trás da outra que desapareceu pelos portões que eles também alcançaram apenas minutos depois. Pensou como aquele lugar havia crescido, desde que se mudara para aquele canto do planeta, em busca de fortuna. Foram tantos anos ajudando seus amigos colonizadores a levantar aqueles edifícios com o pouco que tinham. Os anos se passaram, e hoje chegava a um lugar que quase não reconhecia, e o pior, também não sabia quem ele era a maior parte do tempo. Como se nada do que havia feito por aquele lugar, pelas pessoas, fizesse qualquer diferença. Sempre um prédio novo em cada esquina, brilhante, moderno e horrível, no lugar daquele que haviam erguido com tanto sacrifício. Ainda se lembrava de cada um deles. De cada vez que a última parede era erguida e alguém servia um banquete para comemorar. Naqueles tempos, quando todo mundo se conhecia. Naquele tempo que um estranho seria notado no primeiro passo que desse além dos muros. Os muros também haviam sido limpos ou trocados. Ao que parecia, este novo prefeito vindo do Anel Lunar estava fazendo um bom trabalho. Se você gostava de prédios chamativos brotando do chão toda semana. De qualquer forma, tudo parecia muito prospero por aquelas bandas. Seus lagartos domésticos pararam a entrada. Eram animais espertos o bastante para saber que não se entrava em uma cidade com toda aquela pompa, a não ser que fosse muito rico, ou muito tolo.
_ Senhor – seu ajudante surgiu do fundo da carroça lotada de produtos que pretendia vender e meteu a cara sobre seu ombro esquerdo.
_ O que foi rapaz? – já era um homem, mas gostava de chamá-lo de rapaz assim mesmo.
_ Quando terminarmos de fazer suas coisas, poderia me dispensar por uma ou duas horas? – os homens olharam um para o outro.
_ Claro – o mais jovem tomou o lugar que estava livre ao lado do mais velho.
_ Muito obrigado, senhor – tirou o chapéu que lhe esquentava a cabeça e segurou entre as mãos.
_ Não vai fazer nada de que vá se arrepender. Está bem? – o empregado balançou a cabeça devagar, sorrindo.
_ Sim, senhor – ele olhou para o patrão – Não vou não, senhor.
_ Senhor... Eu não vou procurar...
_ Rapaz. Um homem tem de fazer o que tem de fazer, quando sente que tem de fazer.
_ Sim senhor. É que estou pensando em... – ele olhou para o homem e tentou não parecer envergonhado demais.
_ O que está pensando, rapaz? – eles se olharam por um instante.
_ Estava pensando em registrar posse daquele pedacinho de terra que ficam depois da fazenda – o homem franziu a cabeça devagar. O Rapaz recomeçou a falar devagar e cheio de cuidados. O mais velho parecia deglutir o que ouvia com muito cuidado. O que deixava o clima meio insalubre para o mais jovem sentado naquele banco duro da carroça.
_ Claro que, por isso, estou lhe contando isso. Já que disse que qualquer um poderia reclamar a posse daquelas terras depois da fazenda. Eu...
_ Pois faça isso, meu rapaz. Já está com idade para ter sua terra – o mais moço abriu um largo sorriso.
_ Estou sim, senhor. E agora que já tenho alguém para me ajudar nessa terra, pensei que talvez fosse a hora certa de ir lá, e reclamar para mim aquele pedaço de chão depois da fazenda, não importa se ninguém o quer... – o rapaz não conseguia conter o sorriso que tentava lhe rasgar o rosto.
_ Claro que não vale nada, com aquele sumidouro no fundo e tão perto do deserto de areia, mas... Se ninguém mais quiser, posso reclamar a terra e depois pensar no que dá para fazer com ela. Estou com algumas ideias, aqui na minha cabeça. Claro que não fazer nada durante meu horário de trabalho. Senhor pode confiar – ele pigarreou.
_ Vamos fazer o seguinte – o mais velho colocou a mão sobre os ombros do mais novo que se calou instantaneamente.
_ Assim que terminarmos nossos negócios, vou com você até o escritório de terras e dizer para eles que você já está lá a pelo menos 2 anos, já tem sua casa, seu marido, e já pode muito bem reclamar aquela terra para você. Como foi prometido a todos os colonos, desde quando eu cheguei aqui – ele olhou determinado para o rapaz, que sorriu um pouco sem jeito.
_ Você precisa ter isso tudo para poder reclamar uma terra sem dono, por estas bandas, rapaz. Não pode simplesmente chegar lá e dizer que são suas. Não é assim que funciona mais, infelizmente – ele sorriu com certo pesar nos olhos.
_ Primeiro você diz que está estabelecido nela. Se não tiver nenhuma disputa da posse nos próximos meses, quando chegarmos com a colheita, a terra vai ser lavrada no seu nome – o rapaz abriu um largo sorriso. O fazendeiro mais velho pensou por um segundo.
_ Podemos colocar alguns animais lá – ele meneou a cabeça – mas você vai ter de colocar uma cerca muito boa lá, na beira do sumidouro. Não quero que mais nenhum dos meus animais caia naquele lugar. E se vou emprestar-lhe alguns animais para você começar seu negócio, é melhor cuidar bem deles, para poder me pagar – o rapaz levantou as sobrancelhas impressionado.
_ O Senhor faria isso por mim? – o rapaz quase ficou em pé na carroça metálica que os lagartos puxavam.
_ Não só faria como é isso que vamos fazer assim que terminarmos nossos negócios – sorriu para o rapaz que parecia muito satisfeito.
_ Não tenho como pagar por tudo isso, senhor – o homem fechou a cara.
_ Claro que tem homem – ele decidiu que já era hora de parar de chamá-lo de rapaz. Já era um homem, logo teria suas próprias terras.
_ Tenho? – ele levantou as sobrancelhas e parou para pensar por um instante, mas nada lhe veio à mente. O mais velho esperou até que ele terminasse de ruminar.
_ Sim, senhor. Basta você construir essa casa que vou dizer que você tem, assim que chegarmos de volta, homem. Não quero que as pessoas pensem que eu não tenho palavra – o rapaz o encarou preocupado.
_ Eu não ia querer isso para o senhor, de jeito nenhum. Mas... Não tenho o bastante para levantar mais do que 2 cômodos. Fibra Lunar está muito cara. Acha que assim...
_ Tem mais do que o bastante no depósito para construir pelo menos uma casa com dois salões bons, uma cozinha e uma bela varanda para você se sentar no final da tarde – o rapaz sorriu largamente. Ele torceu os chapéus nas mãos, estava claramente emocionado com a bondade do homem mais velho sentado ao seu lado, mas ambos eram homens duros demais para demonstrar qualquer afeto um pelo outro. Aquilo que estavam fazendo era o mais longe que dois homens como eles poderiam ir. Qualquer coisa, além disso, não seria apropriada. Afinal, aquele homem era seu patrão, apesar de considerá-lo muito mais do que alguém que lhe pagava um salário.
_ Eu vou devolver cada pedaço dela, senhor. Eu prometo – o mais velho sorriu.
_ Eu sei disso – a carroça seguiu pela rua devagar rumo ao depósito onde fariam seus negócios naquela manhã fria de inverno.
Mais uma daquelas cidadezinhas. Esta, especialmente, era aquele tipo de cidade onde todo mundo acreditava estar fazendo alguma coisa de grande importância. Um grupo de pessoas que realmente acreditava estar seguindo para algo melhor. O problema não era o fato de acreditarem nisso. O problema era que nenhuma delas se dava conta de que estavam totalmente errados. Puxou as rédeas de Wayne para o lado. O lagarto imponente parou alguns metros antes da passagem que dava entrada para a cidade.
_ Não gosto deste lugar... – Encarou o lagarto por um instante.
_ Tem alguma coisa nesse lugar que me faz pensar em virar nos pés e ir-me embora, mas simplesmente não podemos fazer isso. Podemos?
Wayne permanecia olhando em frente. Não pareceu entender uma única palavra do que o outro havia dito, ou entender perfeitamente e não se importar. Aquele maldito bicho tinha uma personalidade forte e um total desprezo pelos seres humanos. O animal avermelhado puxou ar para os pulmões devagar e começou a caminhar novamente como se soubesse que se metia em uma encrenca e estava coberto de razões, mas nenhum deles sabia disso ainda.
_ Escute o que estou lhe dizendo, seu bicho gelado. Vamos nos demorar o mínimo possível nessa cidade.
Wayne seguiu em frente. O rabo levantado para trás. A cabeça gigantesca empinada para a frente apontava para a rua coberta de cascalho grosso vermelho. Uma carruagem elegante, com duas mulheres usando chapéus que não combinavam em nada com aquele lugar inóspito passou apressada. Ambas deram uma boa olhada no homem estranho e seu lagarto. Pareciam estar impressionadas. Difícil era saber por qual dos animais que viam. Ao redor deles havia prédios de dois e seis andares construídos com fibra Lunar, natural e artificial. Os mais antigos eram apoiados em estruturas metálicas claramente pré-moldadas, provavelmente dos tempos da colonização. Considerando-se o tempo passado, não era muito impressionante. Já deveria ter o dobro do tamanho. A cidade aumentava muito mais em pretensão do que em tamanho.
_ Está vendo toda esta gente olhando para gente? – Wayne seguia devagar. Sua cauda balançava a cada vez que movia as pernas traseiras grossas que terminavam em patas com cinco dedos protegidos por unhas pretas sujas.
_ Não vamos ganhar um único crédito nesse lugar. Este ugar nunca oferece boas recompensas para ninguém, porque nem um bom ladrão ou assassino descente este lugar tem a capacidade de produzir – Wayne soltou o ar dos pulmões devagar. O homem que o montava levantou os braços devagar.
_ Eu paro de falar. Vamos até o salão, quero tomar um banho.
O homem e seu lagarto pararam em frente a um edifício de dois andares. Uma mulher estava saindo pela porta dupla com as mãos na cintura e ficou o encarando. Seus cabelos presos no alto da cabeça mostravam um rosto firme, que já havia visto beleza antes de toda aquela dureza, e a boca começando a secar nos cantos e ao redor dos olhos muito vivos a deixava com um ar severo. Ela nada disse enquanto o homem desmontava de seu lagarto. Prendeu as rédeas de Wayne bem ao lado das outras duas que já estavam ali. A cabeça marrom e vermelha dele subia vários centímetros acima da cabeça do maior lagarto parado na frente daquele prédio.
_ Eu achei mesmo que o vento hoje cheirava mais estranho do que o normal – a voz da mulher era surpreendentemente mais amistosa que seus olhos. O homem na capa térmica balançou a cabeça devagar.
_ Senhora – ela olhou para ele devagar, fingindo não estar surpresa. O homem dentro da capa pareceu estar sendo scaneado por um raio que lhe chegava aos ossos. Os scanners mudaram para o lagarto impassível.
_ Este lagarto parece cada vez mais velho e cansado – o homem balançou a cabeça devagar.
_ É a quilometragem - ele observou sua montaria por um instante.
_ Exatamente – ela olhou para ele por mais um instante e virou para entrar novamente no prédio devagar. O homem esperou que ela entrasse e seguiu edifício adentro. O interior era consideravelmente mais escuro que o lado externo. As luzes no teto eram azuis, o que descansava os olhos do eterno vermelhão sujo ao redor. Havia um balcão largo na lateral, e várias mesas espalhadas pelo salão. Metade delas estava tomada por pessoas falando e bebendo, poucas comiam. Para isso havia dois restaurantes onde a cozinha era infinitamente mais limpa do que a que existia nos fundos daquele lugar, entre outras coisas que havia por lá. Não houve aquele silêncio quando o forasteiro entrou. Não era aquele tipo de cidade. Na verdade, ninguém sequer notou que alguém havia entrado pela porta. Ele passou pela primeira mesa onde uma mulher conversava alegremente com outra. Ambas riam alto e pareciam entretidas demais em seu assunto para notar qualquer coisa ao redor.
A mulher já estava do outro lado do que deveria ser o bar, mas havia uma quantidade tão absurda de coisas, com objetivos e propósitos tão variados para venda e consumo, que não sabia como ela conseguia atender alguém ali. Ele parou a frente do balcão e levantou as sobrancelhas devagar.
_ Alguma coisa mudou neste lugar, desde a última vez? – a mulher parou de lavar um copo e o encarou. Respirou fundo e continuou.
_ Nada mudou por aqui – ela colocou o copo sobre a pia interna do balcão.
_ Era o que eu temia - os scanners voltaram a funcionar sobre ele enquanto o homem na capa térmica olhava ao redor. Ele levantou as sobrancelhas devagar um pouco surpreso.
_ Pelo menos seus chuveiros continuam os mesmos... - pareceu falar consigo mesmo sob o olhar da mulher além do balcão. Ele a encarou.
_ São os mesmos, sim, Senhor - ela balançou a cabeça devagar e não sorriu.
_ E os banhos custam o mesmo? - Ela ficou esperando-o se decidir.
_ Completo – sorriu devagar – faz tempo que não vemos um desses por aqui – A mulher o encarou por um instante.
_ Se quiser um traje de deserto novo, posso lhe arrumar também. A capa que está usando já viu invernos demais para servir para alguma coisa, e se quer saber não cheira bem – ele deu de ombros.
_ E quanto isso iria me custar? – a mulher atirou um cartão prateado e o homem o apanhou no ar em poucos segundos, sem sequer tirar os olhos dos dela. Ele meneou a cabeça devagar sabendo que acabava de ter seus reflexos testados, e seguiu por um pequeno corredor a frente. Dentro dele, quatro portas de cada lado estavam fechadas. O estranho olhou para o símbolo que havia em seu cartão que correspondia a última porta. Quando entrou, viu um cômodo pequeno. Mas, para quem estava por aí naquela poeira vermelha e seca a muito mais tempo do que podia se lembrar exatamente, era quase um palácio, daqueles que só existem no espaço. Ele começou a desmontar suas roupas olhando para o chuveiro que parecia tão convidativo. Aquele traje de deserto não ajudava em nada quando era necessário desmonta-lo.
O último jato de água reciclada terminou seu trabalho em sua cabeça, retirando o xampu muito mais caro do que a qualidade esperada, e desapareceu subitamente. Ele continuou esperando por um último jato que terminaria o serviço, mas ele nunca veio. Quando percebeu que era tudo o que tinha, olhou para cima.
_ Que tal um pouco mais de água. Já que vai divulgar meu banho, poderia pelo menos, deixar essa porcaria aberta por mais um ou dois minutos, não acha? – continuou olhando para cima. Depois de alguns segundos, fez um gesto irritado com as mãos. A água voltou a sair pelos ejetores.
_ Você é pior do que a sua mãe – sorriu devagar e terminou seu banho. A água desligou imediatamente quando ele saiu do cubículo cercado por ejetores muito menores do que os padrões em qualquer casa descente, mas ali estava longe, realmente muito longe, de qualquer casa descente.
_ Porcaria de banho – o jato de ar secava seu corpo. O vento morno passava pelas suas costas, secando as cicatrizes em forma de cruz que iam de um ombro ao outro. Passaram pelas outras duas no lado esquerdo de sua barriga, em formato de meia lua. Quando terminou, estava seco. Olhou para o traje de deserto e a capa esfarrapada e mau cheirosa sobre o banquinho. Levantou as sobrancelhas. Estendeu a mão para apanhá-las.
_ Não toque nelas. Vou mandar incinerá-las – a voz feminina vinda de todos os lugares soou como um ser divino.
_ E suponho que vai providenciar novas, também.
_ Isso pode ser arranjado – respondeu a voz feminina. Ele soltou o ar dos pulmões devagar.
_ Quanto? – esperou o silêncio. Nenhuma resposta por algum tempo.
_ Está ficando frio por aqui - fez um gesto rápido de irritação e a voz soou novamente.
_ Estou vendo – ele levou a mão ao pinto que se encolhia rapidamente agora que a agua morna havia sumido.
_ Então...?
_ Trinta créditos – ele arregalou os olhos.
_ Por um traje de deserto roubado de alguém morto e uma capa esquecida no quarto? – não houve resposta.
_ Você pode divulgar minhas imagens no banho, sem que eu atire em alguém, e ficamos combinados assim – esperou uns instantes e estendeu a mão para apanhar suas velhas roupas. Um brilho rápido fez com que elas desaparecessem completamente deixando apenas um cheiro de alguma coisa muito suja e queimada. Uma gaveta apareceu na parede com algumas roupas. Ele as apanhou e deu uma boa olhada.
_ Por estas roupas vai ter de incluir um bom prato de comida e alguma ração para meu lagarto, se quiser fechar um negócio hoje – olhou para cima entrando nas roupas.
_ Já estava esperando por isso – ele ouviu a voz e deu de ombros devagar.
_ Bem, meu rapaz. Acho que terminamos por aqui – o homem encarou o mais jovem ainda com a testa suada.
_ Terminamos sim, senhor. Este foi o último – ele jogou o fardo sobre os outros ainda em pé sobre a carroça. Deu uma olhada ao redor. O prédio onde descarregavam ficava na parte mais velha, mais suja e menos segura da cidade. Era uma construção colonial antiga, meio fora de esquadro, cercada por outros ainda mais sujos e ainda mais antigos, alguns deles o fazendeiro havia ajudado a levantar, apesar de não gostar das pessoas que trabalhariam nele, na época, havia se comprometido a ajudar a todos os outros colonizadores, não importava quem fossem. O prédio pendia para o lado esquerdo alguns centímetros, provavelmente por estar apoiado em algum terreno que perdia a luta contra a gravidade. Logo, tudo aquilo deveria ser desmontado e daria lugar a mais um novo edifício. O homem com quem faziam negócios nos últimos verões surgiu com aquele seu sorriso aracnídeo. Talvez fosse seu nariz, talvez fosse aquela boca que parecia um ricto. Mas, todos sabiam, a impressão de estar-se contemplando uma aranha atarracada vinha mesmo de sua personalidade. Alguma coisa naqueles olhos pernósticos, que pareciam ser muito mais do que apenas dois.
_ Não tivemos uma remessa muito interessante este ano, tivemos? – o fazendeiro bateu as mãos ao lado do corpo devagar.
_ É uma remessa como todas as outras. Ora, androides, se foi – encarou o homem mais atentamente.
_ Temos cinco fardos com trinta por cento menos peso, este ano – ele olhou para o pequeno aparelho retangular com uma tela iluminada em suas mãos. O fazendeiro encarou o ajudante e toda a raiva que sentiam aflorou e foi contida.
_ Lá vamos nós – ele deu um passo na direção do homem e apanhou o aparelho.
_ Deixa-me dar uma olhada nisso aqui – o ajudante, que já estava esperando alguma coisa deste tipo mais uma vez, apanhou seu próprio aparelho, exatamente igual, para contagem de cargas e mostrou ao aracnídeo.
_ De acordo com o meu, que está perfeitamente correto, temos vinte por cento a mais em doze fardos, este ano, senhor – falou rápido.
O homem tentou apanhar o pequeno aparelho retangular e fino da mão do ajudante, mas não foi rápido o bastante. O rapaz bateu na lateral do aparelho do homem e os dados de ambos foram configurados em um único relatório. O homem aracnídeo abriu os dentes mais uma vez e ficou ainda mais repulsivo.
_ Acho que vamos ter de contar cada um deles novamente – sua voz também parecia aracnídea.
_ Não será necessário – disse o fazendeiro apontando o scanner para o código de barras do primeiro dos trinta e cinco sacos no chão – o relatório mostra exatamente em quais fardos você... Errou na contagem - soltou o ar devagar encarando o homenzinho que se esticou para olhar a tela do aparelho um pouco surpreso.
_ Mas que aparelhinho novo interessante este seu – o aracnídeo falou cheio de desprezo e o fazendeiro sorriu.
_ Bastante útil, não acha? – o mais velho sorriu satisfeito com o feito.
_ Vamos lá – falou o ajudante colocando, novamente, o fardo sobre a balança que mostrou exatamente o mesmo peso que havia mostrado anteriormente, mas não no aparelho antigo do comprador aracnídeo.
_ Estes códigos estão calibrados corretamente? – O aracnídeo falou devagar. O fazendeiro pegou mais um fardo, desta vez um dos que pertenciam ao homenzinho avarento, apontou o leitor de scanner e mostrou para ele que os pesos e informações batiam. O menor deu de ombros devagar. Reiniciaram a tarefa mais uma vez. O trabalho se repetia todas as vezes naquele lugar. Era sempre a mesma coisa. Eles pesavam cada fardo e um problema, que sempre beneficiava o comprador, surgia em alguns deles. Se ali não fosse o único lugar daquela cidade em que se podia fazer negócios com aquela carga, que na verdade nem era seu produto principal em sua fazenda de criação de lagartos, certamente nunca mais colocaria suas botas no prédio capenga.
Enquanto os três estavam ocupados demais em seus negócios para notar, uma figura se colocou a porta devagar, criando uma sombra sobre todos. Era uma figura bastante larga usando uma parte de traje de deserto e parecia mau arrumado. A máscara que impediria a areia vermelha do deserto de cega-lo estava solta sob seu maxilar largo e forte. A capa sobre tudo dançou ao seu redor dele quando o vento decidiu se juntar a eles mais uma vez. Suas botas feitas com pele de lagarto, o mesmo que se usava como montaria por aqueles que podiam pagar por tais animais tão caros, fez barulho quando ele esfregou a sola grossa sobre a sujeira de grãos de areia vermelha no chão. O homem com cara de aranha se curvou arrepiado e contorceu para encarar a figura estampada no vão da porta.
_ Senhores – disse uma voz seca, sem vida nenhuma, antes que qualquer um deles pudesse pronunciar qualquer coisa. Seus olhos se prenderam no fazendeiro por um instante e depois migraram, como tiros, para o comerciante mais ao fundo. A primeira coisa que o fazendeiro orgulhoso notou, foi que aqueles olhos eram completamente negros. Não havia mais nada neles que pudesse ser visto. Era duas bolas pretas, totalmente isentas de quaisquer expressões, ou alguma humanidade. Ele não sorriu.
_ Boa Tarde, Senhor – falou a aranha mesquinha, cheio de uma voz reverente. O fazendeiro nunca ouvira aquele timbre subserviente naquela criatura orgulhosa antes. Ficou surpreso.
Ela abriu os olhos e encarou o teto de sua casa por alguns segundos. Puxou ar para dentro dos pulmões devagar e repetiu para si mesma a velha cantilena que lhe haviam ensinado na infância. Não acreditava muito que fosse lhe servir de alguma coisa repetir para si mesma uma série de frases que, aparentemente, pouco tinham em comum umas com as outras, mas como estava tentando tudo o que lhe diziam, aquilo era somente mais um ato desesperado de manter seu padrão de vida. Se aquele emprego não funcionasse. Seria despejada em poucas semanas. Depois, teria seu cartão pessoal bloqueado. Seria obrigada a subir em um daqueles voos noturnos de perdedores e sua vida estaria terminada. Não queria isso nem para aquela mulherzinha horrível que havia ficado com seu emprego. Talvez desejasse isso para ela, só um pouquinho. Sentou-se na cama devagar. Seu cubículo era discretamente elegante. A cama que trouxera da casa de seus pais era o único artefato fora dos padrões que tinha. Havia pagado uma fortuna para poder mudar com ela para aquele nível, mas havia valido a pena. Especialmente em tempos como aquele. Quando tudo era incerteza. Passou a mão pelos cabelos e levantou-se. Deu os curtos passos que a separavam da porta do banheiro, e entrou. Imediatamente jogou a camisola no cesto de lixo. Já era a terceira noite que dormia com ela. Era economia o bastante. O desintegrador sugou-a e fez com que sua amiga de noites insones desaparecesse para sempre. Apenas resíduos dela seriam atirados no espaço, junto com tantos outros, diariamente. Poeira espacial. Entrou em seu reservado e ligou seu chuveiro. Uma centena de micro jatos de água sintética limparam seus poros e pele. Jogou uma pílula de hidratante no filtro e a água da segunda borrifada também serviu para manter sua pele viva, brilhante e sedosa, mas elas também estavam acabando, e com o que ainda havia na sua conta, teria de passar sem elas. Meteu a cabeça no pequeno lavador de cabelos que comprara com seu último salário. Sentiu a máquina fazendo seu trabalho enquanto pensava como podia ter ido parar em uma situação como aquela. Quando aprenderia a ficar de boca fechada. Sua mãe sempre lhe dissera que o dia que aprendesse a manter a língua entre os dentes mais fechados que as pernas, seria uma mulher feliz. Sua mãe era muito boa em lhe dizer coisas, em sua maioria desanimadoras. O curto bipe anunciou que seus cabelos estavam lavados. Pegou o controle remoto e escolheu uma escova lisa. Era sempre mais elegante usar cabelos lisos para pedir emprego. Esperou mais dois minutos antes do sonsinho impertinente avisar que os cabelos estavam prontos. Retirou a cabeleira vermelha, agora lisa, da máquina e saiu perfumada e seca do chuveiro. Estacou na parede que lhe refletia. Deu uma olhada no próprio corpo. Era uma mulher bonita, sem nunca ter mudado um detalhe desde que nascera. Afinal, seus pais haviam investido tudo o que poderiam quando a conceberam. O que não fora muito, ela tinha que admitir. Os seios eram redondos e empinados exatamente como os de sua mãe. Isso ela fizera questão de lhe passar, e ela era grata por isso. Tinha um padrão de vida que, para ser mantido, exigia alguns sacrifícios e isso terminava tendo um efeito colateral bem-vindo. Se comia pouco, praticamente apenas tomava café da manhã e jantava refeições rápidas para economizar, permanecia magra. Não tinha quase nenhuma barriga. Mesmo porque, refeições calóricas eram um luxo e muito caras. Vivam em tempos que só tinha barriga quem assim o desejava e podia pagar. Os cabelos daquela cor eram um espetáculo que gostava de admirar. Era a cor natural deles. Apesar de muitos homens nunca terem acreditado. Seu pai achava que uma garotinha de cabelos ruivos era uma graça e esta foi a única explicação que ela recebeu para aquilo. Fez sucesso na escola, até a sexta série. Mas não sabia que uma ruiva, natural especialmente, nem sempre era bem-vista nos ambientes de trabalho. Por outro lado, os pelos púbicos avermelhados mostraram ser uma deliciosa arma de sedução na cama quando a idade de descobrir estas coisas chegou para ela. Alguns homens adoravam ver aquele emaranhado de pelos avermelhados cobrindo sua vagina delicada e bochechuda tal uma bonequinha. Sua bonequinha, como gostava de chamá-la. Fazia um mês que não brincava com ela. Deu uma última olhada no corpo e depois foi até o armário coligado. Tocou na porta e esta desapareceu dentro da parede branca de fibra lunar. Deu uma olhada em todos os seus costumes de trabalho. Escolheu o mais novo deles. Meteu-se dentro do verde escuro que estava na moda novamente vagarosamente. Voltou para o espelho e apanhou seu velho maquiador. Selecionou o que desejava. A coisa velha gemeu devagar enquanto colocou o rosto dentro dele. Mais um zumbido e um gritinho eletrônico e estava pronta. Ao se encarar, tinha os olhos verdes realçados por uma maquiagem discreta, as sardas disfarçadas pela base clara e os lábios abrilhantados pela camada fina de gloss. Saiu para o quarto e o atravessou sem arrumar a cama. Entrou na pequena área que separava a sala da cozinha e foi para a segunda. A cafeteira já estava terminando de fazer suas duas xícaras de café, as torradas saltaram e quando colocou a bunda no banco a geladeira lhe mostrou tudo o que estava faltando da sua lista básica de alimentos. O painel piscara daquela forma na última semana. Precisava mudar os parâmetros de sua lista de compras. Retirar alguns itens pelos quais não poderia mais pagar. Olhou para o aparelho imóvel e sorriu.
_ Como seu eu não soubesse, querida. Como se eu não soubesse que você está ficando mais vazia do que o habitual dessa casa – respondeu para o eletrodoméstico que não tinha capacidade para interagir e apanhou as torradas e a xícara de café que ficavam ao alcance das mãos, pois a cozinha era padrão anelar. Como tudo em sua vida deveria ser. Padrão. Tudo tinha de ser confortável e minúsculo para que centenas pudessem usufruir do mesmo espaço raro, limitado e vendido a preços mais altos que a órbita daquele lugar. Procurou o controle e o encontrou. Sempre quisera ter dinheiro para comprar uma inteligência artificial para seu apartamento, mas inteligências artificiais custavam muito caro, mesmo para gente como ela, que supostamente seria capaz de pagar por uma coisa assim. Se todas aquelas empresas de inteligências artificiais soubessem o que ela fazia para morar naquele nível, não gastaria um só segundo para lhe enviar malas diretas. O sonho de consumo moderno dos últimos dois anos naquele nível do Anel lunar em que morava. Cinco anos, para os muito ricos que moravam no último nível com vista para a Terra. Era mais um dos muitos paradoxos da civilização. Porque as pessoas queriam morar em um lugar, onde teriam vista para a merda de um planeta que todos desprezavam. Talvez porque a vista ficava linda em uma noite romântica de terra cheia, sentados a beira de uma piscina cheia de água, ainda mais impressionante se fosse água natural e cercada por plantas de verdade. A máxima da ostentação e riqueza no universo conhecido. Achou o controle e apertou o botão da televisão. A tela mudou do transparente para uma imagem do mosaico de canais disponíveis. Era um hábito que tinha desde que mudara para aquele emprego. Ao invés de programar os canais femininos ou de beleza e saúde, como a maioria das mulheres de sua idade e nível social, recebia todos os boletins financeiros na tela e o lado direito era dominado pelas suas três redes sociais. Havia três mensagens. Seu coração disparou ao ver que uma delas vinha de uma das empresas que haviam recebido seu currículo. O abriu e leu o conteúdo que explicava que naquele momento todas as vagas estavam preenchidas, mas que eles agradeciam o envio de seus dados e que ficariam nos arquivos do departamento de seleção por três meses para uma eventual necessidade. Ela o deletou e viu que os outros eram ofertas de cursos de reciclagem online para desempregados endinheirados e o segundo de uma garota da empresa onde deveria estar trabalhando. Depois o leria. Pouco lhe importava que aquele lugar estivesse em chamas. Mordeu a torrada devagar e selecionou o canal de beleza. Amenidades se mostraram menos estressantes. Uma mulher, com a cara nova demais para quem já tinha quarenta e cinco anos apenas de televisão, falava sobre os benefícios do rejuvenescedor de sua marca. Mudou para o canal de fofocas. Viu que aquela artista de novela, a que vivia se metendo em confusões com ex-maridos, havia sido escalada para uma refilmagem de um clássico da literatura que seria gravado no Planeta Terra, realmente no local. Suzana fez uma cara de nojo e surpresa.
_ O que vão fazer naquele lugar? – apanhou seu aparelho e fez uma ligação.
_ Droga – falou sozinha ao notar que estava sendo encaminhada para a secretária da empresa – eu gostaria de falar com o comandante P. R. Johnson – agradeceu a uma máquina. Elas costumavam ser vingativas. Esperou por quase dois minutos até que a voz retornou com aquela entonação impessoal e discretamente sensual – Qual o vôo dele? – ouviu e repetiu.
_ 2, 4, 7. Será que poderia me passar para o vôo dele? – ouviu a música que substituía a voz metálica feminina – ele está no espaço porto.
_ Pode fazer a conexão? – ela ouviu – eu aguardo – só esperava que aquilo não lhe custasse todos os seus créditos. O som da ligação sendo conectada com Marte soou e ela ouviu se completando e uma voz rouca, muito masculina, soou do outro lado.
_ Oi querido – falou sorrindo para a tela, mas não havia imagem para se ver com o terminal dele desconectado. O que era estranho. Por que haveria de desconectar seu terminal?
_ Como foi seu vôo. Como estava Marte? – ela ouviu um pouco.
_ Está cansado. Acabou de chegar. Desculpe. Na verdade, achei que ainda estaria em plena viajem – ela sorriu – de qualquer modo, vou deixá-lo dormir – um súbito som que não deveria estar no meio da conversa soou e fê-la se calar.
_ O que foi isso? – ouviu – não, não foi a camareira – sorriu como se precisasse disfarçar a decepção que sentia naquele momento.
_ J... Tem alguém com você? – a voz cheia de sarcasmo dela tentava disfarçar a frustração – desculpe. Não queria atrapalhar sua aventurazinha em Marte – ela riu sem qualquer humor.
_ Não – riu sem jeito – está tudo bem. Tenho que desligar – ouviu – claro. Me ligue, quando estiver no Anel novamente. Quem sabe eu, você, e sua amiguinha, possamos sair para jantar e trocar posições sexuais divertidas – ela sorriu olhando para a parede.
_ Posso perguntar se ela também já se acostumou com o tamanho ridículo do seu pinto – a ruiva vermelha encarou o aparelho.
_ Parece que perdi a conexão – colocou o aparelho fixo de conexão, pequeno e transparente sobre o móvel.
O monitor de batimentos cardíacos de seu pulso saltou com sua tela vermelha mostrando que seu nível de estresse estava alto demais e que seu batimento cardíaco estava irregular. Sugeriu uma série de coisas que ela poderia fazer para melhorar seus níveis. Ela olhou para micro tela flutuando sobre seu pulso e levanto suas sobrancelhas.
_ Não preciso de conselhos sobre saúde. Preciso de um homem que não seja um bosta. Tem o endereço de algum?
O homem sob a capa marrom, um pouco empoeirada, pareceu gostar de encará-los. Não disse nada por um tempo que pareceu imenso. Os instantes constrangedores para responder à pergunta que o aracnídeo havia lhe feito fez o clima do lugar alguns graus mais frio. Ou era sua presença, que parecia causar aquele efeito. Finalmente, ele encarou o homenzinho mais uma vez. O fazendeiro começava a perder o interesse nele, apesar daquela figura ser bastante intrigante e, se ele fosse o seu tipo de homem, bastante atraente. O que mais se notava naquele homem era sua aparência intimidadora, sem que ele nada fizesse.
_ Alguém vendendo lagartos rápidos nessa cidade? - o comerciante se adiantou a frente do homem de voz seca, rasgando um de seus sorrisos horríveis.
_ Posso providenciar para você – o aracnídeo teve quase um orgasmo imaginando o quanto poderia faturar. Não permitiu que o fazendeiro, e criador de lagartos, lhe tirasse a oportunidade.
_ De quantos animais estamos falando, meu amigo? – o maior deles encarou o pequeno inseto e sua voz soava ainda pior entredentes.
_ Não sou seu amigo – o vendedor se contorceu, como inseto frente ao veneno, e ignorou o comentário.
_ Vou precisar de pelo menos quatro animais rápidos e domados, e que possam ser montaria também.
_ Você pode tentar o curral no lado Oeste da cidade – o vendedor arregalou os olhos pela primeira vez ao ouvir o fazendeiro se intrometendo em sua venda. O aracnídeo quase solto um grito curto.
_ Os preços deles são um roubo. Não vai querer nada com aquela gente arrogante – o homem dentro das botas de lagarto o encarou. Ambos pareciam saber de algo que os outros dois não sabiam.
_ Estaria interessado em me vender suas montarias? – O velho fazendeiro puxou ar para os pulmões devagar ao notar que o grandalhão se referia a ele.
_ Esses bichos estão comigo já faz alguns anos. Não acho que vão lhe prestar para alguma coisa. São mais temperamentais do que parecem. Mas posso lhe oferecer bons animais na fazenda amanhã de manhã – o homem da capa abriu um sorriso e estranhamente aqueles dentes perfeitamente brancos lhe deixaram seus sorriso ainda mais ameaçador.
_ Isso é uma coisa que não posso fazer. Mas, podemos ver agora mesmo, não acha? – ele deu alguns passos saindo do prédio seguidos muito devagar pelo fazendeiro e depois pelos outros dois homens e se aproximou dos animais presos a frente. Levantou a mão devagar para que os lagartos pudessem vê-lo claramente. Os animais o encararam por alguns instantes para então baixarem a cabeça em sinal de aceitação, como era natural para aquela raça de lagartos domésticos. Era sinal de que aceitariam aquele homem. O fazendeiro olhou para seu ajudante com um olhar perplexo.
_ Pelos androides. Nunca vi estes bichos desgraçados aceitarem ninguém assim tão rápido.
_ Acho que gostaram de mim. Quanto quer pelos quatro? – os dentes daquele homem, que debaixo de toda aquela poeira parecia ser muito bonito não fosse pela sensação de ameaça que parecia cercá-lo por onde quer que estivesse, se mostraram claramente mais uma vez. Isso não diminuiu a tensão que se formou no minuto que adentrou ao comercio. Aquela aura de perigo parecia rodeá-lo como o oxigênio e a poeira.
_ Eu pago um bom preço por cada um deles – o fazendeiro meneou a cabeça imediatamente sem nem pestanejar.
_ Eu agradeço muito a oferta, mas eu não posso voltar para a fazenda sem eles. Tenho certeza de que o senhor vai encontrar bons animais aqui no curral da cidade – o fazendeiro abriu seu sorriso característico. Os olhos do homem ficaram mais finos e continuavam completamente negros. Não cinza ou verdes ou violeta como a maioria das pessoas costumava ter. Eram negros, perfeitamente negros e só havia neles algum brilho que vinha do reflexo da luz em suas superfícies que eles pareciam absorver. Não havia nenhuma luz que vinha de seus interiores do poço de piche.
_ Não tão bons quanto estes – a tensão apareceu crescer um pouco inexplicavelmente. Não sabiam dizer por que, mas não haviam gostado um do outro imediatamente.
_ Certamente que não, mas posso lhe ajudar com isso - o comerciante inseto mais uma vez tomou a frente da conversa parado a porta do seu estabelecimento.
_ Eu posso providenciar belos animais para você em algumas horas – os olhos negros pularam do rosto do fazendeiro para a cara de aranha.
_ Tenho certeza disso – ele não sorriu. Aqueles dentes, perfeitos como todos os dentes de todas as pessoas que existiam no planeta desde a muitos séculos, pareciam ser parte da ameaça que aquela figura produzia sobre todos em que tocava.
_ Quando conseguir – rugiu devagar sem encarar o aracnídeo que orbitava entre eles - vou estar na hospedaria hoje durante o resto do dia e noite – ele jogou a capa para o lado se preparando para sair, mas estacou no meio do processo.
_ Tenham uma boa tarde – disse olhando para o fazendeiro. Então parou a frente do ajudante. Nada disse por um momento ou dois, apenas o encarou profundamente nos olhos.
_ Quando terminar aqui, vou esperar você no salão, para tomarmos alguma coisa – seus dentes perfeitos surgiram mais uma vez. O rapaz, que tinha quase a mesma altura do homem, e mesmo sendo bastante robusto, menos dez quilos de musculatura, balançou a cabeça devagar tentando reter um sorriso.
_ Eu agradeço, mas...
_ Nenhum homem vai embora dessa cidade sem tomar uma cerveja. Nenhum homem – o rapaz pareceu ficar sem jeito. Os olhos negros se desligaram dos cinza do ajudante e pularam para o rosto um pouco surpreso do fazendeiro.
_ Tenho certeza de que pode liberá-lo, não pode meu bom homem. Acho que é o mínimo que pode fazer, já que não vai me vender seus lagartos. Não acha? – aquele sorriso causava uma estranha sensação de prazer e ameaça naqueles que se deixavam seduzir. Não era o caso do fazendeiro.
_ Eu não tenho problema nenhum em fazer isso, não senhor – encarou o ajudante – só não acho uma boa ideia um homem comprometido ficar de conversa fiada em um bar, seja com quem for -os olhos do ajudante se desgrudaram da figura a sua frente e caíram sobre o fazendeiro que o encarava.
_ Eu tenho de fazer algumas coisas na cidade... – ainda parecia se desculpar com o grandalhão.
_ Na maioria das vezes, as piores ideias são as melhores - ele meneou a cabeça devagar encarando um homem de cada vez para então tomar seu rumo pela rua vermelha empoeirada. Precisaram que alguns segundos para que a aranha voltasse a falar mais uma vez.
_ Vão ficar parados aí ou vão terminar aqueles fardos errados. Tenho lagartos para providenciar para um cliente importante. Se não perceberam – o fazendeiro encarou o inseto com um rosto irritado.
_Parece que o senhor encontrou novamente sua autoestima. Não é verdade? – o inseto encarou o fazendeiro que deu de ombros devagar e recomeçou a mover os fardos que trouxera.
_ Vamos acabar logo com isso que já vi o bastante por hoje... – olhou para o ajudante.
_ Não é mesmo rapaz? – bateu no ombro do mais jovem que pareceu cair do telhado.
_ É sim, senhor. Com certeza temos mais o que fazer – o comerciante os encarou alternadamente.
_ Vão fazer mais negócios hoje? – o fazendeiro o encarou, agora perdendo a paciência de uma vez.
_ Você é um bocado curioso, sabia?
_ Tenho que de ser por aqui – levantou os olhos e recebeu a iluminação que reproduzia com perfeita exatidão a luz do sol. No Anel Lunar tudo era controlado perfeitamente. Nada podia ser deixado ao acaso em uma sociedade altamente controlada como um formigueiro em uma garrafa. Se estas coisas ainda existissem, os humanos seriam como cupins infestando uma estrutura com a metade da massa da Lua, flutuando no espaço entre o planeta Terra e seu satélite natural, exatamente como as pessoas a viam com um certo rancor, quando tinham de desviar seu caminho para que ela continuasse estacada no meio da calçada. Olhava os números nas fachadas dos edifícios de quinze andares que na verdade nada mais eram que uma imitação de ar livre dentro de um corredor flutuando no espaço. Somente um, das várias centenas de andares que aquela estrutura anelar possuía.
_ Mais dois – constatou ao ver os números dos edifícios comerciais daquele nível. Ali ficavam aglomerados, ordenadamente como em um arquivo, todas as empresas burocráticas e financeiras não relativas a comércios varejista diretamente. Nada era produzido ali que não fosse burocracia. Era o bloco empresarial mais caro de todo o Anel Lunar e era ali que ficavam todas as matrizes que controlavam a vida financeira da civilização moderna. Alguém, uma certa vez em um jantar a que frequentara, se referira aquele bloco, o famoso bloco 101, a nova Wall Street. Ela não entendeu completamente a conotação, só sorriu e meneou a cabeça em afirmação. Entendeu que havia sido uma citação arrogante e intelectualizada, mas não julgou a garota que estava falando, era uma estagiária querendo impressionar os outros. Seus tempos de escola primária haviam ido a muito e história nunca fora sua matéria de maior frequência. Novamente, tomou o seu lugar na fila que caminhava do lado interno da calçada e seguiu a direção do grupo apressado que andava praticamente na mesma velocidade. Seus cabelos vermelhos brilhavam sob aquele sol sobre suas cabeças. Segundo o controle ambiental ainda teriam mais duas semanas daquele calor infernal de trinta graus que muitas pessoas gostavam tanto. Não podia entender como podiam gostar daquilo. Usar roupas leves, transpirar nas axilas. Era o mais perto do inferno que alguém poderia querer chegar. O murmuro de vozes e resmungos a fez despertar. Levantou os olhos e viu que alguma coisa acontecera na fila que seguia em direção contrataria a que seguia. Olhou para frente e deparou-se com olhos um pouco esbugalhados, nada elegantes, lhe encarando a três ou quatro passos. Estacou e deu um passo para o centro das filas que seguiam evitando aumentar aquele tumulto que se formara. O par de olhos pertencia a um homenzinho atarracado que segurava uma pasta e vestia um terno muito caro verde claro, como estava na moda aquele verão. Ela sentiu-se corar, sorriu devagar sem saber como reagir aquilo. Talvez fosse alguém que ela conhecesse. Talvez fosse um executivo que poderia lhe arrumar um emprego. Poderia ser um tarado depravado também. O que mais a impressionou foi o fato que alguém ainda querer fazer um filho com aquela aparência. Como um homem daquele existia. Deveria ser um homem praticamente natural, não conseguiria imaginar alguém pagando para receber aquilo ao conceber um filho. Será que, realmente, algum casal achou que aquele ser poderia ser o melhor que fariam por um filho? O sorriso sumiu. Se deu conta do quanto eles poderiam ter em comum. Seus pais também não eram exatamente ricos quando a fizeram, um dos motivos daqueles cabelos vermelhos existirem, apesar do que seu pai lhe dizia sobre acha-los lindos.
_ Posso ajudá-lo? – disse em um daqueles tons passivo-agressivos que usava quando queria ser ouvida, ou se fazer entender sem rodeios.
_ Mil perdões - o homem de olhos profundamente azuis piscou, sorriu rapidamente e começou a andar, metendo-se na fila que seguia em direção oposta. A ruiva o observou seguindo meio de cabeça baixa e nada disse. Soltou o ar dos pulmões e entrou na fila novamente. O edifício que procurava ficava logo a frente. Saiu da fila e entrou quando as portas se abriram. O ambiente interno era mais fresco e o chão revestido com uma, provável, imitação de mármore negra. O que deixava o lugar em total contraste com o ambiente externo. Muito claro e barulhento com gente andando e falando o tempo todo. Um balcão de recepção ficava a frente. Uma atendente loura a encarou e sorriu. Ela parecia muito com a apresentadora do programa feminino a que estivera assistindo a pouco. Talvez fosse uma de suas clientes. Talvez tivesse cinquenta anos, ao invés dos vinte e cinco que aparentava. Quem poderia saber? Eram tempos de muita liberdade cronológica.
_ Bom dia – elas repetiram uma para a outra – tenho uma entrevista marcada com o Senhor Laforca, por favor.
_ Seu nome? – disse a sorridente além do balcão.
_ Suzana.
_ Um minuto – a funcionária consultou seu painel.
_ O Senhor Laforca está atrasado. Gostaria de esperar? – Suzana pensou se lhe restava alguma alternativa.
_ Claro.
_ Pode esperar em nosso lobby – ela apontou para uma porta que se abriu devagar – vou chama-la assim que ele estiver disponível.
_ Obrigada – Suzana se dirigiu ao ambiente mais claro e mais aconchegante que estivera guardado além da porta e olhou ao redor quando as portas se fecharam as suas costas. O chão acarpetado, em um tom charmoso de vermelho, combinava com os móveis de madeira artificial clássicos. Além deles, uma imagem virtual de um jardim e depois dele um horizonte azul lhe trouxeram alguma calma. Talvez fosse aquela música que induzia as pessoas a pensar que as longas horas de espera ali não eram assim tão longas. Talvez porque chegara a conclusão de que aquela era sua última tentativa e parecia começar a se conformar com seu destino. Não lhe restaria muito mais tempo, ou créditos, antes de receber a visita de um controlador de habitação. Se não saísse daquele lugar empregada. As chances eram de que estava tudo acabado. Ficou lá, sentada, pelo que pareceu uma ou duas décadas, apesar da música e do ambiente tão calmante. Haviam sido quase três horas de espera até que a imagem holográfica da recepcionista se formou a frente dela com aquele tom pálido que aquelas imagens tinham. A voz sem corpo chamou seu nome e disse que Suzana deveria seguir até a recepção. Sentada em um dos sofás muito elegantes que provavelmente imitavam o estilo do final do século vinte, ela respirou fundo procurando um pouco de determinação que aquelas horas haviam minado e voltou à recepção acelerada.
_ Senhorita Suzana. O senhor Laforca não poderá recebê-la – a moça do outro lado do balcão fez uma cara de quem compreendia como aquilo poderia ser inoportuno para a ruiva elegante e sensual a sua frente.
_ Isso poderá ser um problema – a atendente dentro do uniforme sorriu.
_ Ele estará disponível para recebê-la na próxima segunda as dez da manhã. Gostaria de deixar sua reunião marcada?
_ Seria possível eu falar com outra pessoa? – a recepcionista olhou para sua tela.
_ Não. Tenho ordens de marcar esta reunião com ele – ela falou como se isso fosse de grande importância.
_ Se quer meu conselho – elas se olharam cúmplices – acho que deveria marcar a reunião. Ele não recebe muitas pessoas, pessoalmente.
_ Claro – Suzana sorriu – claro. Vou deixar marcado – a atendente sorriu.
_ Obrigada – o sorriso desapareceu completamente de seu rosto. A garota atendeu uma chamada e não deu mais atenção a Suzana, que se virou perdida em seus pensamentos. Recebera a notificação de que seus créditos estavam abaixo do padrão para o nível em que morava a dois dias. Teria mais quinze dias para registrar uma entrada de créditos em sua conta pessoal, ou projeção bastante convincente. Até a próxima semana teria perdido quatro dias, o que a deixaria com mais seis dias para registrar isso em seu cartão pessoal. Era um prazo curto, mas era com isso que teria de lidar.
Seu corpo foi arremessado para o chão como um peso morto. O choque de sua bunda contra o piso brilhante criou uma pontada de dor lancinante. Quando seus olhos conseguiram focalizar alguma coisa, viu um anjo.
_ Tenho muito orgulho do que fiz por este lugar, sabe? – o fazendeiro encarou o ajudante que prestava atenção em cada uma de suas palavras. Sempre fora assim. O rapaz absorvia cada palavra que o mais velho lhe dizia desde o primeiro dia que se conheceram.
_ O senhor ajudou a levantar o prédio da prefeitura. Não é verdade? – o homem bateu com a mão na própria coxa esquerda. Gostava de contar suas histórias e ainda mais de quem parava para ouvi-las.
_ Ora se ajudei. E quase toda a cidade, também – ele apontou para o prédio novo, que a alguns anos havia substituído o que fora construído com sua ajuda.
_ E desde o dia que aquele prefeito decidiu que os prédios que nós construímos não eram bons o bastante para ele. Sinceramente, este lugar começou a ficar ruim. Com toda esta modernidade, vieram todas estas pessoas sem rumo. Ficou muto pior. Ora se ficou – falou franzindo a testa e encarando o rapaz.
_ Eu sempre achei que o senhor gostava de vir para a cidade – o mais velho encarou o rapaz com um misto de confusão e irritação. Era clara a surpresa em seus olhos.
_ Quem, androides, lhe disse isso, rapaz? – o mais novo deu de ombros.
_ Não. Não. Ninguém me disse nada, não senhor. Foi só uma coisa que eu pensei aqui comigo mesmo.
_ E por que acha isso? – o rapaz o encarou o velhote confuso, por que sabia que esperava ansioso por toda vez que tinha de vir para a cidade.
_ Não acho nada, não senhor – o rosto do mais velho ficou mais leve.
_ Ainda bem, porque não faz mais diferença nenhuma para mim. Eu não gosto de vir a um lugar onde as pessoas não sabem mais qual o verdadeiro valor das coisas, e seus lugares – o mais velho fungou devagar.
_ Percebeu como aquele sujeito esquisito falou comigo? – fungou rapidamente. O mais jovem se curvou para frente para poder encarar o mais velho.
_ E de onde o senhor acha que aquele sujeito veio? – o fazendeiro o encarou.
_ Ora. Só pode ser da cidade ao norte, ou de ser um daqueles perdidos do deserto. De onde mais um sujeito como aquele poderia vir com um traje de deserto. Desta cidade que ele não é, com certeza. Eu nunca vi aquele homem por aqui antes – o rapaz ficou corado. Deu de ombros devagar antes de falar.
_ Achava que cidades sempre eram o lugar destes tipos – o velho parou no meio da rua.
_ Pois fique sabendo que gente que nem aquele oferecido não chegava nessa cidade e, quando chegava, tratava de avisar porque havia vindo. E não se demorava muito – ele fungou.
_ Onde já se viu oferecer para comprar meus lagartos, que não estavam a venda. E se isso não bastasse, ainda ficar falando com você daquele jeito. Como se você já não tivesse um bom homem na sua casa. Onde já se viu tal coisa. Não tem mais respeito por ninguém hoje em dia – ele encarou o rapaz.
_ Este lugar está perdido, se quer saber a minha opinião – o mais velho levantou a mão quando o mais jovem abriu a boca para falar alguma coisa que ele não permitiu.
_ Eu sei que um homem tem de fazer o que um homem quer fazer, mas... – eles chegaram ao prédio novo da prefeitura. O homem olhou para o edifício pré-fabricado e soltou o ar dos pulmões desanimado.
_ Trocar nosso prédio por essa porcaria. Não é à toa que sujeitos como aquele se sentem a vontade para tomar liberdade para propor comprar lagartos que nem estão a venda – quando parou de resmungar consigo mesmo notou que o ajudante havia parado alguns passos antes.
_ O que, androides, está fazendo parado aí? - o ajudante encarou o patrão. Seus olhos estavam cheios de apreensão.
_ O senhor tem certeza de que devo mesmo fazer isso? – o mais velho soltou o ar dos pulmões devagar. Levantou as sobrancelhas e deu dois passos de volta em direção ao mais jovem, estacado segurando a mão direita calejada com a esquerda nada menos sofrida.
_ Por que não haveria de querer fazer isso?
_ Eu sei lá. Acho que eles podem descobrir que... – o homem levantou a mão devagar e o rapaz parou de falar imediatamente.
_ Qual é o problema. Porque, não tem jeito nenhum de ninguém saber porcaria nenhuma sobre aquelas terras além do que eu vou contar para eles, rapaz. O único jeito de alguém chegar até ali é passando pela fazenda, e você sabe muito bem que não tem chegado nem vento por aquelas bandas desde o último inverno. Então, deixa de bobagem e me diga que androides estão lhe roendo aí dentro? – ele ficou encarando o rapaz por algum tempo.
_ Quer saber. Não tem androide nenhum me roendo, não senhor. Vamos lá que já passou da hora de eu dar para o Luc um lugar para morar, que não seja em cima do celeiro – ele encarou o patrão.
_ É assim que se fala, homem. Já está na hora de vocês terem a sua casa como toda família deve ter. Vamos logo que aqueles preguiçosos da prefeitura vão fazer um bocado de perguntas,, e se não andarmos logo, vamos ter de ficar aqui até amanhã cedo só para você reclamar o que já lhe pertence – o rapaz olhou para o patrão se enchendo de determinação.
_ Vamos lá – ela apanhou a mão que lhe foi estendida. Focalizou o rosto a sua frente mais uma vez. Aqueles eram, ou não eram, os olhos mais lindos que já vira em toda sua vida? Tinham uma tonalidade de azul que parecia impossível. Eram redondos, perfeitos, mas ainda tão masculinos acentuados pelas sobrancelhas negras e retas que estavam franzidas em um misto de preocupação e diversão.
_ Acho que sim – Suzana firmou os pés dentro dos sapatos elegantes, os últimos que comprara antes de ser demitida.
_ Obrigada – um segurança uniformizado a encarava preocupado, bem ao lado daqueles olhos.
_ Fique onde está, senhorita. Vamos chamar o androide de resgate – ela fez sinal para ele.
_ Não há necessidade – seus olhos caíram sobre os azuis mais uma vez e eles vinham acompanhados por um homem, com alguma coisa ao redor dos seus metro e noventa, embalado em um terno bem cortado e muito elegante que lhe sorria com uma boca carnuda perfeita. Olhou ao redor e viu a recepcionista estendida sobre o balcão observando atentamente com um olhar preocupado. O anjo falou, e sua voz parecia uma canção de amor. Era discretamente rouca, muito grave, mas com um tempero jovem que o deixava balançando entre o maduro e o aventureiro.
_ Será que vai me perdoar? – ela olhou para ele.
_ Está perdoado – ele riu devagar ao notar que ela nem sabia do que ele estava falando.
_ Perdoar pelo que? - Suzana tentou arrumar os cabelos novamente. Esperava que não tinha lhe estragado a escova.
_ Eu entrei correndo...
_ Foi você? – ele sorriu para ela, antes de bater a cabeça devagar.
_ Infelizmente. Eu costumo ser assim. Sempre com pressa.
_ Eu estava distraída.
_ Não. A culpa foi toda minha – o segurança falou com aquela voz forçadamente firme que costumam envergar.
_ A senhorita está bem? – ela sorriu.
_ Claro, meu querido, estou perfeita – olhou para as próprias roupas – nada quebrado – o segurança lhe estendeu seu aparelho muito fino que se iluminou ao se aproximar dela.
_ Queira, por favor, pressionar seu polegar aqui, sim? – ela olhou para o documento que isentava o edifício de qualquer culpa pelo ocorrido. Ao ver aquilo, Suzana percebeu que poderia estar perdendo uma ótima oportunidade de receber alguma espécie de indenização, mas aquele homem lhe estava toldando os pensamentos. Colocou o dedo sobre o local que piscava na pequena tela transparente e o segurança a estendeu ao homem, que leu e fez o mesmo.
_ Obrigado. Tenham um bom dia – ele desapareceu imediatamente. Suzana encarou o homem que, em uma segunda olhada, parecia flutuar em algum lugar dos trinta anos. O que não significava nada, afinal, toda a humanidade tinha alguma coisa ao redor dos trinta anos nos últimos cem anos.
_ Será que um café começaria fazê-la me perdoar? – ela sorriu devagar.
_ Não precisa se desculpar. Está tudo bem – por outro lado, pensou consigo, ter um homem daqueles lhe devendo favores não lhe parecia nada mau.
_ Mas... Um café seria ótimo – ela lhe estendeu o braço. Ele a guiou para fora do edifício. Quando saíram, Suzana estacou.
_ Está tudo bem? – ela se divertiu com o susto dele.
_ Não. Não está – viu os olhos azuis se encherem de suspeita.
_ Não me disse seu nome – ela sorriu sob o sol artificial do Anel Lunar naquele final de tarde que deveria estar caindo sobre eles, mas que, na verdade, nada mais era que uma projeção luminosa sobre suas cabeças naquele que, também, nada mais era do que um gigantesco corredor flutuando no espaço, mas que parecia infinitamente mais real a todos aqueles milhões que ali residiam, trabalhavam e flutuavam no espaço como se não houvesse um único pedaço de terra firme no universo.
_ Collins.
_ Suzana – se cumprimentaram com os olhos presos. Ele sorriu largamente.
_ Agora, aceitaria tomar um café comigo? – ela riu devagar. Surpreendentemente não pensou duas vezes antes de responder ao convite de um estranho total.
_ Claro – recomeçaram a andar em direções contrárias. Suzana seguia para o bloco onde ficavam as dezenas de cafeterias e restaurantes que serviam milhares de pessoas que trabalhavam ao redor. Ele seguia, aparentemente, para o que ela chamava de zona proibida. Onde tudo tinha um preço absurdamente elevado para seu padrão de vida.
_ Está tudo bem? – ela soltou uma gargalhada falsa e começou a segui-lo.
_ Claro. Acho que ainda estou meio tonta – mentiu descaradamente e tentou não entrar em pânico.
_ Não quer esperar por um socorro? – Suzana acelerou.
_ Com certeza não – a última coisa que queria era perder um homem daquele por estar presa a uma máquina diagnóstica que levaria meia hora para dizer que ela estaria com a bunda roxa na manhã seguinte. Tomaram a fila que seguia embrenhando-se ainda mais naquele bloco a que todos queriam pertencer. O dos muito ricos. Com mais alguns passos estariam dentro da zona proibida para as secretárias e demais mortais como ela. Ali ficavam os restaurantes, apertados entre cinco números de edifícios de alto padrão, mas que representavam o sonho de consumo gastronômico de pessoas sem conta. Faziam parte de uma cadeia de lojas de luxo que vendiam sapatos de couro legítimo marciano, sobremesas feitas de leite verdadeiro, refeições sintetizadas de alto padrão e mescladas, onde havia ingredientes hidropônicos, e duas cafeterias que serviam café, de verdade. A mais cara delas se orgulhava de vender o melhor café da Federação de Planetas. Eram grãos cultivados em terra tratada, torrados em fornos de ferro e coados em água natural, nada sintetizada ou sequer próxima de uma fonte reciclada ou sintética. Era água pura de minas mais secretas do que os planos anelares. Ele sorriu para ela enquanto caminhavam cada vez mais próximos do paraíso culinário que ela sempre sonhara em conhecer, mas que poderiam lhe custar metade do salário em uma única xícara de porcelana verdadeira mais velha do que seus ancestrais.
_ Não está sentindo dores? – ele falou e sua voz parecia curar tudo. Até mesmo aquela dor terrível que sentia no lado direito da bunda.
_ Não. Estou ótima – chegaram à frente de um edifício, decorado de forma romântica e clássica. As portas se abriram e ele a puxou para dentro. Suzana quase estacou, com medo de estar sonhando e acordar. Afinal, entrar naquela cafeteria de braço dado com um homem daquele era, provavelmente, mais um daqueles sonhos que andava tendo por causa da ansiedade de estar desempregada. Mas as cores estavam corretas. As pessoas não pareciam uma pintura de Dali. Portanto, devia ser real. Provavelmente estava mesmo entrando naquele lugar onde dez mesas estavam tomadas por gente ricamente vestida. O perfume de café fresco imperava por todo o lugar e, unido aquele cenário cuidadosamente projetado para parecer despojado, criava uma sensação de filme. Ela quase procurou pelas câmeras. Era um programa de televisão. Estavam gravando uma novela e esqueceram de lhe avisar. Parecia um daqueles romances clássicos de época. Uma vida em uma época de romance e glamour, uma vida mais fácil e mais simples deixada para trás a tempo demais quando as pessoas viviam no Planeta Terra e gostavam disso. Collins a guiou até uma das mesas do fundo desocupadas. O garçom puxou a cadeira e colocou Suzana em seu lugar. O homem de cabelos castanho-claros deu a volta e sentou-se a frente dela ainda sorrindo. Eles se olharam por alguns segundos. Principalmente porque ela não poderia olhar para mais nada que não fosse ele ou a parede as suas costas.
_ Está confortável?
_ Perfeitamente – o garçom se aproximou deles e estendeu a sua frente os cardápios. Como mandava aquela nova onda de nostalgia que dominava o mundo desde a revitalização do planeta Terra, seu cardápio, quase tão fino quanto uma folha de cartão, se acendeu ao toque e mostrava todos os produtos e serviços, mas sem os preços. Não era elegante uma mulher acompanhada saber o quanto lhe custaria o que comeriam e beberiam. E isso lhe deixava bastante nervosa, no infortúnio dele não se prontificar a pagar a conta total.
_ Aceitaria tomar um café da tarde? – ele olhou para o homem de meia idade que os servia – ainda estão servindo o café da tarde?
_ Estamos, sim, Senhor. Servimos até as dezessete e trinta.
_ Perfeito. O que me diz? – ela deu uma olhada rápida e sorriu para ele.
_ Claro – ele estendeu seu cardápio para o garçom.
_ Dois cafés da tarde, por favor – o garçom meneou a cabeça, recebeu o cardápio das mãos da ruiva e saiu depois de uma mesura discreta.
_ Então – ela o encarou sorrindo – o que estava fazendo naquele prédio?
_ Estava indo visitar um amigo – ele levantou as sobrancelhas.
_ Que interessante. Que tipo de amigo? – riu devagar. Ela curvou a cabeça.
_ Do tipo que a gente vai visitar no trabalho para não ter de visitar em casa – o moreno sensual riu.
_ Este tipo de amigo?
_ Este tipo de amigo.
_ Que bom – ela o encarou.
_ Como? – Collins ficou corado.
_ Odiaria saber que atrapalhei uma entrevista de emprego, seu dia... Ou simplesmente o seu encontro – ela tentou não explodir em gargalhadas.
_ Não. Nada disso – não havia reunião de negócios em sua vida. Não conseguira uma entrevista de emprego. Não tinha como sua vida ser mais atrapalhada do que já estava. E encontros. O que eram encontros?
_ Você seria incapaz de estragar o dia de alguém – ele riu.
_ Isso é o que você pensa – levantou as sobrancelhas grossas e sorriu.
_ Por quê. Costuma estragar o dia de outras pessoas com frequência?
_ Com mais frequência do que eu gostaria.
_ Me parece tão... Simpático. Educado...- ela quase acrescentou que era bonito como somente o diabo em pessoa poderia ser, mas achou que já havia conseguido e, afinal de contas, só não era bonito naquele Anel Lunar, quem havia tido a infelicidade de nascer pobre demais ou com pais com um péssimo gosto para projetar filhos, como aquele homenzinho estranho que ainda perambulava por sua mente sem que ela soubesse por quê.
_ Obrigado, mas onde trabalho, costumo trazer más notícias. E boas notícias, também. Mas, normalmente, notícias ruins – ela o encarou curiosa.
_ Médico? – seria perfeito demais. Lindo, inteligente, sensual, cavalheiro, e médico. O que a levava ao terreno dos absurdamente ricos, também. Quantas pessoas tinham poder aquisitivo para recorrer a um médico, humano, naquele Anel Lunar? Quantos médicos existiam naquele lugar que não ficavam presos a uma parede, uma capsula diagnóstica ou uma cama?
_ Não. Não seria capaz de clinicar – ela já imaginava. Mas devia fazer alguma coisa que lhe rendia muito mais do que ela ganhava, a julgar por seus sapatos e terno. E hábitos de alimentação em cafeterias como aquela.
_ O que faz, então. Como pode dar boas e más notícias ao mesmo tempo?
_ Vai rir de mim – ela sorriu.
_ Pouco provável. Ainda não perguntou sobre a minha profissão.
_ O que faz? – ele pareceu pular sobre a oportunidade.
_ Perguntei primeiro.
_ Verdade – ele pigarreou – sou responsável pela contratação de pessoal para uma grande empresa com vários tipos de negócios ao redor dos planetas.
Um alarme soou dentro da cabeça de Suzana. Bem a sua frente estava a solução para todos os seus problemas trabalhistas. Sem exceção. Poderia sair daquela cafeteria elegante com um novo emprego, e um novo namorado. Bastava que fizesse as coisas certas. Dissesse as coisas certas. O problema era que, como diria sua mãe, nenhuma delas era o seu forte. A manipulação genética ainda não contemplava os neurônios do modo que algumas mães achariam muito mais útil do que a estética.
_ Deve ser fascinante. Trabalhar com muita gente. Deve conhecer muito sobre as pessoas – ela cruzou os braços.
_ Você acha? - ele a encarou sorrindo
_ Deve saber tudo sobre expressão corporal ou pior – seus olhos se prenderam.
_ Um pouco. Mas, não precisa se preocupar. Não a estou analisando – Suzana riu nervosa. Será que ele seria capaz de perceber como estava nervosa, e agora desesperada para tudo aquilo?
_ Claro. Como se isso fosse possível – eles riram.
_ É verdade – Collins riu alto – não é realmente possível.
_ Sei disso – ela apertou ainda mais os braços. Riram mais um pouco.
_ Tem tanto a esconder? – a ruiva apoiou as mãos aos lados da mesa.
_ Se quer saber... Me pergunte – ela tomou a defensiva-agressiva.
_ Quero – aqueles olhos azuis impossíveis mergulharam nos dela - Quero saber cada coisa. Tudo que queira me contar. Quero saber qual seu sabor favorito de sorvete, que veículo particular compraria se pudesse, que músicas escuta em sua casa. Quero saber como gosta de dormir – ela olhou para ele com mais interesse.
_ Quero saber onde esteve todos estes anos – eles ficaram se admirando e o garçom se aproximou para servi-los.
_ Com todos os androides – o homem encarou o rapaz por alguns instantes.
_ Se não foi o pedaço de terra que mais me deu trabalho para reclamar na vida – o jovem fez uma cara de preocupado. O patrão percebeu e imediatamente mudou a cara.
_ Bom... Acho que agora não vai ter desculpas para não fazer aquele casamento – ambos se olharam. O mais velho encarou o rapaz por alguns instantes, então lhe estendeu a mão em cumprimento rapidamente. O ajudante titubeou por um minuto antes de pular sobre a mão do homem que o havia ajudado a dar seu primeiro passo na direção de uma vida muito melhor. Ambos chacoalharam as mãos um do outro por algum tempo antes do mais velho puxar o mais novo em um forte abraço. Depois de pouco mais do que meio segundo se afastaram percebendo que fora um pouco demais todo aquele contato físico.
_ Você me arrumou um baita de um problema, rapaz – o ajudante balançou a cabeça devagar.
_ Foi é? – ele parecia completamente confuso.
_ Onde, androides, vou arrumar outro ajudante agora? – o mais jovem olhou ao redor.
_ Tem o Rosso, senhor – o mais velho moveu a cabeça devagar. O rapaz continuou rápido - eu vou continuar trabalhando com o senhor o resto da vida. Ora se vou...
_ E quando vai construir a sua casa. Cuidar dos animais que vou lhe arrendar. Vai precisar de tempo para fazer isso tudo. Acho que vamos precisar de alguém para ajudar na fazenda.
_ Mas o Senhor tem o Matte – o homem encarou o rapaz. Seus olhos deixavam claro que aquilo era um problema, mas era um outro problema.
_ Acho que o senhor vai precisar mesmo – eles ficaram se olhando, e finalmente, sorriram um para o outro por um instante até que o homem mais velho deu um tapa na perna.
_ Bom, acho que merecemos dois tragos para comemorar essas terras, vamos? – o ajudante deu um grito curto.
_ Com todos os androides se não vamos. O senhor me acompanha até o bar? – o homem fez um gancho com o braço. O mais velho deu um curto pulo, bateu os calcanhares e enganchou o seu no dele.
_ Mas é claro que vamos, meu bom homem – seguiram pela rua onde o vento fazia a poeira dançar rumo ao único bar da cidade.
O café a frente dela fumegava. O odor que subia até as suas narinas era inebriante. A fumaça quente e úmida parecia dançar como em um desenho animado. Ela não podia deixar de ficar impressionada com toda aquela elegância. Em como aquilo tudo parecia surreal. Suzana levantou os olhos para ver os dele a encarando e poderia jurar eu via um apaixonado interesse.
_ Quanto tempo faz que não faz isso? – ela fechou o rosto em um falso gesto de ofensa.
_ Prometeu que não estava me analisando.
_ E não estou. Mas, estou impressionado com seu jeito. Parece uma garotinha que saiu a primeira vez...
_ Eu não fiz esta cara quando saí a primeira vez.
_ Pode ser, mas deve ter sido tão fascinante para sua mãe quanto está sendo para mim – Suzana sentiu-se corar.
_ Não estava com a minha mãe – eles se olharam e Suzana percebeu que agora ele a estava lendo, com muito cuidado.
_ Este café parece ser alguma coisa de outro mundo – ela mudou de assunto imediatamente.
_ E é mesmo. Os grãos são cultivados em Marte. Dizem que estão desenvolvendo um novo tipo, para ser cultivado no planeta Terra, mas...
_ Nada será como isto. Não é verdade?
_ Não. Nunca mais será o mesmo – ele riu.
_ Toda vez que tomar uma xícara de café, me lembrarei deste olhar...
_ Me referia ao café. Cultivado naquele lugar.
_ E eu a você – sorriram um para o outro. Collins falou devagar sem tirar os olhos dos dela.
_ Acredita em destino? - Suzana levantou os olhos da xícara.
_ Não – ele fez um muxoxo sensual.
Na verdade, tudo a respeito dele parecia se resumir a sexo. Pelo menos do ponto de vista dela. Aquele homem era tão diferente de todos os outros homens, perfeitamente lindos como ele, que perambulavam por todos os lugares no Anel Lunar. Havia alguma coisa nele que o fazia se destacar na multidão. Como aquele pino vermelho no meio de outros exatamente iguais, pintados de azul. Ou talvez fosse assim que funcionava, quando você se apaixonava pela primeira vez. Era isso que estava acontecendo ali? Fácil assim? Definitivamente não seria nada difícil se apaixonar por aquele homem tão estranhamente diferente.
_ Eu comecei a acreditar esta tarde – ela riu. O homem abriu novamente aquele sorriso que parecia iluminar a tudo.
_ Verdade? – ela tomou um curto gole do líquido absurdamente caro, enquanto deglutia a ideia de que havia se apaixonado à primeira vista. Isso era possível. Estas coisas realmente existiam? Não. Era apenas atração sexual.
_ Só pode ser destino. Eu estava apressado, tentando resolver alguns detalhes antes de ir embora e, então... – ela sorriu, mas uma curta parte da frase dele a fez perder o interesse pela parte que deveria tê-la envolvido por completo.
_ Ir embora? – ele olhou para Suzana como se voltasse a vê-la com roupas novamente.
_ Sim. Estou indo para a Terra – ela fez uma careta flutuando entre a decepção e a surpresa.
_ O que vai fazer naquele lugar? – Collins piscou.
_ Trabalhar. Vou assumir o escritório na Terra na próxima semana.
_ E quando volta? – tentou sorrir. Collins fez isso por ela.
_ No próximo ano. Se tudo der certo – finalmente era o despertador. Aquele tinha sido o sonho mais real que já tivera em toda a sua vida.
A porta se abriu para que a dupla entrasse. O mais velho caminhava na frente. Não entrava naquele lugar a muito tempo. Nem se lembrava mais da última vez que havia sentado para beber com amigos. Não se lembrava mais de ter tido amigos a alguns anos. O tempo passou e a cada volta a cidade para vender suas colheitas tinha menos tempo para amigos, bebidas e farras. A cada ano mais tinha pressa de voltar para casa. O mais velho apontou para uma mesa discreta em um canto bastante convidativo. O fazendeiro indicou para que ele tomasse a dianteira e ambos se acomodaram a mesa. Em poucos minutos uma garçonete usando um vestidinho bastante apertado se aproximou deles sorrindo.
_ O que vão querer meninos? – o mais velho deu uma rizada larga.
_ Não me lembro da última vez que alguém me chamou assim.
_ Pois tem frequentado os lugares errados, mocinho – ela passou a mão pelos cabelos meio compridos do homem que soltou uma risada nervosa enquanto ficava mais vermelho que lagarto selvagem.
_ O que vão beber hoje? – a moça mudou de assunto apertando os seios fartos dentro do decote enquanto pegava seu palmtop para anotar os pedidos.
_ Vamos querer o seu melhor veneno hoje! – ela se aproximou do fazendeiro devagar.
_ O melhor veneno desse lugar sou eu. Mas... Não estou no cardápio até o final do meu turno – piscou para o fazendeiro devagar. Ele riu solto.
_ Então vamos querer qualquer coisa que seja o segundo melhor veneno desse bar – ela deu um curto gritinho.
_ Saindo! – se afastou da mesa rapidamente. O novo dono das terras ao fundo da segunda maior fazenda daquele lado do deserto olhava para algum lugar as costas do fazendeiro. O mais velho entendeu do que se tratava imediatamente.
_ Não vamos querer nos meter com aquele sujeito hoje, vamos? – o mais jovem deu de ombros.
_ Não senhor. Não vamos, não. De jeito nenhum.
_ Você tem alguém em casa que vale mais do que qualquer lagarto pestilento que possa te mostrar os dentes nessa cidade. Foi isso que eu pensei o primeiro dia que vim vender aqui neste lugar anos antes, é a mesma coisa que você vai pensar hoje e todos os outro que voltar aqui sozinho, rapaz – ele falava muito sério olhando profundamente nos olhos do mais jovem.
_ Se quer saber. Você é como um filho e não vou deixar você se meter com um sujeito daqueles – os olhos do mais jovem pulavam do que quer que ele via sobre os ombros do patrão para seu rosto grave.
_ Eu sei. Sim, senhor – o homem mais velho franziu as sobrancelhas grisalhas.
_ Pois não é o que está me parecendo. Não, senhor – o mais jovem lambeu os lábios inferiores.
_ O senhor pode ficar sabendo que não pretendo chegar perto daquele aliciador de lagartos. Nem hoje, nem em nenhum outro dia que venha para essa cidade – o rapaz recostou-se na cadeira devagar com um olhar firme que não convencia ninguém.
_ Eu acho muito bom, mesmo. Porque se ficar sabendo que sequer subiu um degrau daquela escada com ele, venho te pegar pelo pescoço e vou lhe chutando a bunda daqui até sua casa com os dois pés – ele bateu a cabeça em afirmação. A garçonete chegou com as bebidas sobre uma bandeja que flutuava a sua frente.
_ Sentiram minha falta, meninos? – ela pegou o caneco do que parecia ser uma cerveja espumada azulada e colocou na frente do mais velho. Depois surgiu com um copo longo onde havia uma bebida que mudava de cor a cada segundo. Ia do vermelho ao verde, passando pelo azul e o amarelo. O rapaz olhou para ela surpreso.
_ O que é isso, mulher? - Ela arrumou a bebida a frente do freguês e levantou a sobrancelha esquerda muito alto.
_ Tem um sujeito ali que disse que gostaria que você levasse esse copo até a mesa deles – ela mostrou a mesa do outro lado do bar. O homem mais velho não precisou se virar para saber quem estava sentado a mesa oposta a que eles estavam. Quando se voltou muito devagar, viu mais dois sujeitos, com caras tão enigmáticas quanto a dele ao redor. O maior deles levantou uma bebida igual e sorriu largamente, fazendo um cumprimento curto com a cabeça. O mais jovem estendeu a mão para segurar o copo colorido, mas o mais velho a segurou firme.
_ Não vai beber um só gole dessa porcaria – ele encarou a moça de seios grandes.
_ Você pode levar esta porcaria de volta de onde veio, agora mesmo – o mais velho colocou o copo sobre a bandeja flutuante - e traga uma... – ele olhou para o que estava a sua frente.
_ O que androides é isso que me trouxe, minha filha? – ela levantou as sobrancelhas um pouco desgostosa.
_ A melhor cerveja anelar que temos – o fazendeiro mais velho levantou as sobrancelhas rapidamente.
_ Cerveja anelar? – seu rosto ficou vermelho.
_ Pois, você me traga alguma coisa que tenha sido fabricada neste planeta, senão eu vou sair por aquela porta agora mesmo – ele apontou para a bebida, indignado. Depois encarou o mais jovem. Olhos de scaner subiram sobre o balcão rapidamente. O homem olhou para a dona do lugar por um tempo um pouco longo demais, se encararam, mas nada disseram. Ela não se moveu e o mais velho soltou o ar dos pulmões devagar.
_ O que tem de errado com esta gente, querendo me fazer beber essas porcarias que não são comidas e bebidas de verdade? – encarou o mais jovem que começou a se preparar para levantar.
_ Acho que é melhor irmos embora – o mais velho olhou para o empregado e preparou para levantar-se.
_ Pois eu acho que você tem razão nisso – o homem tentou levantar, mas mãos fortes seguraram seus ombros rapidamente. O Fazendeiro caiu sentado sobre a cadeira mais uma vez. Estava tão surpreso quanto furioso.
_ Mas, androides me mordam – ele olhou para cima para ver aqueles dentes muito brancos mais uma vez.
_ Senhores – o grandalhão sorria muito largamente. Orbitou ao redor deles como um abutre e curvou-se sobre a mesa devagar.
_ Qual a razão de tanto alarde. Por acaso não gostaram do lugar? – mostrou o lugar com as mãos - somos todos amigos aqui. Tenho certeza de que podemos resolver qualquer problema que possam ter.
Ao fundo, logo depois do balcão do bar, a mulher que os observou com olhos duros e firmes continuou inerte. O forasteiro, que ao que parecia era estranho apenas para os dois homens novos naquele lugar, fez sinal para ela com uma das mãos.
_ Veja – ele puxou uma cadeira e sentou-se. A garçonete havia desaparecido sem que nenhum deles se desse conta. Garotas como ela aprendiam muito rápido a aparecer quando lhes era conveniente e a desaparecer quando era saudável, ou não duravam muito tempo naquele negócio.
_ Podemos conversar, estão vendo? - aqueles dentes pareciam ter luz própria em oposto aos olhos negros e sem vida que pareciam absorver toda a luz ao redor. O fazendeiro soltou o ar dos pulmões muito devagar. Encarou o outro duramente.
_ O que estou vendo é que não se tem mais respeito nesta cidade – o velho aprofundou nos olhos do grandalhão – e muito menos respeito pelos bons costumes e o que é certo - parou de falar e observou a cadeira onde o outro estava e continuou - como esperar que alguém o convide para sentar a mesa – o grandalhão continuou o encarando imutável.
_ Ou tomar liberdade com um homem com uma família esperando por ele – o homem de dentes brancos deu uma longa gargalhada. O maior parou e pregou seus olhos de tubarão no rosto do mais velho, sem nada dizer por algum tempo e este não desviou o olhar por um segundo sequer.
_ Você estava aqui quando isto tudo começou. Estou certo? – o mais velho aprumou a postura.
_ Pode ter certeza de que está falando com um dos homens que ajudou a levantar as paredes da prefeitura e de metade dessa cidade. Mas, não está porcaria de ferro anelar que este prefeito resolveu colocar no lugar do prédio que nós construímos com nossas próprias mãos - ele mostrou as mãos grandes e calejadas ao mais jovem.
_ O velho Bruce, que foi o primeiro humano a pisar nestes lados, morreu logo depois de segurar o mastro da bandeira – falou ficando com os olhos um pouco tristes.
_ Tenho certeza de que ele morreu cheio de orgulho pelo trabalho de vocês - o mais jovem se levantou devagar e estendeu os braços. Era um homem grande e coberto com aquelas roupas parecia uma figura a quem se deve ouvir em um bar poeirento numa cidade como aquela. As vozes foram se calando ao redor enquanto ele deu duas voltas em si mesmo teatralmente.
_ Olhem - apontou para o mais velho - Vejam, meus amigos. Temos uma celebridade aqui.
_ Sentado bem a minha frente, bem naquela cadeira ali - apontou e algumas pessoas olharam para o velho, outras simplesmente não podiam tirar os olhos daquela figura tão assustadora quanto atraente perambulando devagar.
_ Sabem quem este homem é? - continuou apontando para o fazendeiro que tentava entender do que aquele show se tratava.
_ É um dos homens que levantaram as paredes da prefeitura! - bateu palmas calorosamente – mas não está prefeitura que está ali agora, a primeira prefeitura que fizeram na cidade – ele olhou ao redor. Um idiota no fundo começou a fazer o mesmo até entender que não deveria. As pessoas continuavam olhando para a figura gigantesca no meio do bar. Os olhos negros caíram sobre o mais velho uma vez.
_ Vamos lá pessoal, vocês sabem de quem estou falando. Não sabem? - Sorriu e encarou um homem sentado na mesa ao lado da que eles ocupavam.
_ Você, meu bom homem. Sabe quem é ele, não sabe? - os homens se olharam. O fazendeiro não se lembrava de já tê-lo visto antes.
_ Não? - falou o estranho encarando o mais velho – ele não sabe quem você é. Como pode isso?
_ A quanto tempo mora nesta cidade? - o grandalhão se aproximou do confuso homem envolvido naquela situação. O estranho deu de ombros.
_ Faz uns sete ou oito anos - o grandalhão juntou as mãos em uma palmada estridente.
_ Sete ou oito anos - encarou o mais velho - e você se lembra do velho prédio da prefeitura? – o homem confirmou devagar sem saber se deveria ou não fazer isso.
_ É o mesmo que está lá agora, não é? – o grandalhão olhou para o mais velho.
_ Então não conheceu o prédio velho, e nunca ouviu falar do nosso herói aqui sentado? - o estranho deu de ombros como alguém que pede desculpas ao mais velho.
_ Deveria? - o homem grande de dentes perfeitos curvou-se sobre a mesa onde estava o mais velho.
_ Esta é a pergunta certa, meu amigo. A pergunta certa - ele sorriu devagar depois olhou ao redor devagar e voltou a encarar o homem mais velho. Seus olhos se prenderam por um longo instante.
_ Ninguém se lembrou de lhe agradecer antes de derrubar o prédio que não servia mais para nada. Ele fez um bico com os lábios. Os olhos de tubarão pareciam prontos a devorá-lo por inteiro, se havia alguma emoção neles, era um ódio escuro e quase visceral, mas o fazendeiro já havia enfrentado coisas demais para se acovardar perante um homem, por maior que fosse.
_ E isso é, exatamente, o que há de errado com esta gente como você. Chegam de qualquer lugar depois que a parte difícil está feita, se apropriam do que não lhes pertence e fazem o que não lhes é de direito com o que assumem sem esforço nenhum – os homens ficaram se encarando quando o fazendeiro orgulhoso cuspiu as palavras cheias de ressentimentos.
_ Chama-se progresso ou evolução, se preferir, são parentes muito próximos, sabia? - o mais alto deles rasgou o sorriso branco mais uma vez. O mais velho ficou furioso. O homem grande deu um curto tapa na ponta da mesa. Olhou de um para o outro, mas perdeu um instante a mais no rapaz bastante atraente do outro lado da mesa e tomou todo o tempo que precisava para se fazer notar.
_ Venho para este lugar algumas vezes no ano – puxou ar para os pulmões – e todas as vezes que chego aqui, vejo como existem pessoas nesta cidade que se orgulham de terem estado aqui a muito tempo – parou para pensar por um minuto - como se isso fizesse alguma diferença. Estar em algum lugar a dois dias ou a duzentos anos, não faz a mínima diferença para quem acabou de chegar com a intenção de ficar, por que depois de outros dois dias, ou duzentos anos, vai chegar alguém que também não sabe quem ele é. Está me entendendo?
_ Devemos ter orgulho de onde viemos, de quem somos e do que construímos com nosso suor e nosso trabalho e vocês deveriam nos agradecer pelo que fizemos – o mais velho falou em tom baixo e seco. Seus olhos cheios de ódio.
_ Acha que estas pessoas lhe devem alguma coisa? – ele se dirigiu ao restante do bar que, novamente, parou o que estava fazendo para lhe prestar atenção. Isso não acontecia muito. Não era este tipo de bar, aquele.
_ Vejam, meus amigos. Acho que temos uma dívida para com nosso pioneiro aqui – um grupo grunhiu ao redor desgostoso. Uma daquelas vozes que sempre surgem quando um grupo quer dizer alguma coisa, mas não tem coragem, e disse que ninguém devia nada para ele. O grandalhão deu de ombros, sarcástico.
_ Parece que este pessoal não se importa em honrar uma dívida – ele estalou o dedo e a garçonete surgiu novamente. O homem de casado grande falou sem encarar a moça.
_ Traga uma bebida para o nosso amigo aqui. Tenho uma dívida para honrar – o monstro mergulhou no olhar seco do mais velho – e eu nunca esqueço minhas dívidas – a garçonete se aproximou e olhou para o mais velho um pouco confusa.
_ Não vou beber nenhum copo de água com um sujeito como você.
_ Você, meu bom homem, é um homem orgulhoso – sorriu largamente com aqueles dentes brancos - e está tudo bem Também sou uma pessoa cheia de orgulhoso. Um homem deve ter orgulho, não importa o que ele seja ou quem seja realmente por dentro, desde que seja homem no lado de fora, não é verdade. Não é esta a sua regra?
_ Aí é que você está errado, rapaz. Um homem deve ter orgulho de quem ele é por dentro, não importa como, ou o que, ele seja no lado de fora – o mais velho fungou devagar. Apontou para o rapaz – vamos embora deste lugar. Não aguento mais o cheiro que tem aqui hoje – o mais velho cuspiu no chão. Os olhos de tubarão levantaram as sobrancelhas devagar. O homem se curvou sobre a mesa devagar.
_ Na maior parte do tempo, as gerações futuras cagam no mesmo solo onde se lutou a batalha que lhes permitiu fazer isso – o rapaz deu um murro na mesa e encarou o mais alto. Seus olhos estavam cheios de raiva. Houve um pouco de surpresa para se juntar ao interesse ainda existente no homem maior.
_ Já chega disso – não disse mais nada. Baixou a cabeça e meteu a mão nos bolsos a procura de seus créditos e antes que se desse conta, o cara maior estava com sua arma engatilhada em seu pulso e apontada para ele. O Rapaz parou o que estava fazendo e encarou o grandalhão armado. O zumbido da arma estava próximo o bastante de seu rosto para que pudesse sentir a vibração. Conseguia ver que aquele não era apenas uma manopla presa ao pulso da manzorra dele. Aquele era um rifle de ataque que provavelmente subia até seu cotovelo, aumentando o poder daquilo algumas dezenas de vezes. Se atirasse, estariam limpando a cabeça dele de todas as paredes ao redor.
_ Preciso pegar o dinheiro que está em meu bolso – o armado fez sinal com a ponta do dedo para que continuasse.
_ Não temos pressa aqui – ele não tirava os olhos do mais jovem que se movimentou muito devagar, retirando duas barras de créditos que eram suficientes para pagar muito mais do que aquelas bebidas que nem haviam tomado. Jogou ambas sobre o material da mesa e falou lentamente. A mulher além do balcão começou a dar a volta nele e falou pela primeira vez.
_ Não vai haver nenhum tiroteio aqui, hoje – o grandalhão a ignorou completamente, assim como o mais velho que observava a tudo muito atento.
_ Deixe-os ir embora. Já tivemos muita discussão por um dia – o grandalhão encarou a mulher por um instante.
_ Estamos indo embora. Vamos sair por aquela porta sem causar nenhum problema e bem devagar.
Seus olhos estavam presos nos olhos do outro homem que mantinha uma espécie de sorriso sarcástico no rosto. Não era a primeira vez que estava em uma situação como aquela, com certeza. O rapaz deu a volta na mesa devagar e pegou o braço do mais velho. O dono da fazenda resistiu, ainda olhava para o maior com olhos cheios de ódio. O rapaz tentou fazê-lo mover-se, mas o homem não mudou um pé de lugar.
_ Estamos saindo – ele deu um curto tranco no braço do patrão que finalmente o encarou. Depois moveu os olhos para a mulher que estivera do outro lado do balcão. Ambos se encararam por um tempo, mas novamente, nada disseram um ao outro.
_ Posso contar com uma nova visita sua, quando estivermos novamente na cidade. Talvez com mais tempo, e melhor companhia? – o homem armado não olhava para o mais velho, mas sim para o rapaz que olhou para ele muito rapidamente.
_ Vamos embora, senhor – puxou o mais velho que parecia estar com uma das pernas coladas ao assoalho devido a dificuldade que teve para se mover. Começaram a caminhar pelo salão largo em direção a porta cortando o ar que parecia grudento e pesado ao redor deles. E mesmo enquanto tudo aquilo acontecia, apenas uma pequena parcela dos frequentadores do local parecia ter pedido mais do que dez segundos observando a discussão. Naquele lugar, prestar atenção ao problema dos outros poderia ser um bom começo para arrumar alguns para si mesmo. A dupla seguiu firme rumo a porta e foi seguida pelo homem maior com alguns passos de distância. Quando finalmente respiraram o ar frio e poeirento do lado de fora, parecia que um peso lhes havia sido tirado das costas. Desceram os quatro degraus que mantinham o prédio pré-fabricado acima daquele solo vermelho e arenoso.
_ Tem certeza de que não quer mesmo tomar alguma coisa comigo. O seu patrão pode pegar a carroça sozinho. Não pode, meu velho? – o grandalhão gritou do alto dos degraus. O mais jovem continuou andando devagar. O dono da fazenda fez menção em virar-se, mas o rapaz segurou o seu braço.
_ Estamos em menor número e ele sabe disso. Vamos continuar nosso caminho até a carroça e vamos embora desse lugar.
_ Esse animal tem menos respeito do que um lagarto selvagem – o rapaz puxou o ar para dentro dos pulmões devagar.
_ Eu sei disso, senhor. Vamos embora para casa. Este dia acabou.
_ Acho melhor mesmo, senão um de nós dois não vai voltar esta noite - o velho fungou devagar e eles chegaram a porta do prédio onde os lagartos deveriam estar. O rapaz apertou o botão empoeirado e as portas se abriram. O que encontraram não era o que esperavam ver.
_ Foi um prazer – Collins lhe estendeu a mão larga. Suzana ficou a observando antes de segurá-la devagar. Sentiu a pele áspera dela. Realmente firme e grossa. Pensou se seria muito cedo para convidá-lo a ir até a sua casa. Já não precisava mais se preocupar com os vizinhos. Logo estaria em um vôo para a Lua, onde dividira a casa de sua mãe. Quem se importava se diriam alguma coisa naquele corredor cheio de fofoqueiras e mau amadas? Afinal, era solteira. Tinha direito de levar qualquer um para sua casa. O que quase nunca acontecera e todos os anos que estivera naquele nível.
_ O prazer foi todo meu – principalmente porque ele pagou pelo café que ela jamais voltaria a tomar. Pelo menos, poderia esfregar isso na cara de sua mãe. Ficaram se olhando no canto da calçada já não tão lotada. Iluminados pelas luzes das fachadas dos comércios elegantes que os cercavam. As pessoas passavam com menos pressa. Os edifícios empresariais já fechavam suas portas. A civilização desacelerava um pouco, naquele lugar. Agora o movimento ficava por conta dos níveis onde os comércios noturnos funcionavam.
_ Posso... – ele se calou. Ela o encarou sem que houvessem soltado as mãos.
_ O que? – Suzana sorriu.
_ Será que poderia te ligar antes de ir embora? – ela quase riu para ele.
_ Claro – tentou reter a excitação – será um prazer. Podemos fazer alguma coisa – ela estancou a verborragia – se não prefere passar os dias com sua família – havia se lembrado que não sabia nada sobre ele.
_ Não. Não tenho ninguém. Se não se importar, preferia passar meus últimos dias no Anel com alguém... como você.
_ Claro, será um prazer – pensou que não sairia de perto daquele aparelho nem que o Anel estivesse caindo no planeta.
_ Eu lhe telefono, então – ele piscou. Separaram-se. Ela começou a andar na direção oposta da dele até ouvir seu nome. Virou-se e quase meteu a cara no peito largo dele. Collins a tomou nos braços.
_ Obrigado – disse numa voz rouca. Aqueles olhos azuis mergulharam nos dela mais uma vez. Suzana sentiu-se invadida, como se ele a houvesse penetrado fisicamente. Sentiu sua força, uma energia quase contínua que a dominou completamente. Não sabia se eram aqueles braços, ou aqueles olhos, mas teve certeza de que não poderia fazer nada enquanto estivesse ali, a não ser se deixar levar onde aquele estranho desejasse.
_ Pelo que? – finalmente conseguiu dizer. Pessoas passavam ao redor deles indo em direções opostas sem notar que talvez um daqueles romances antigos estivesse acontecendo bem ali, naquela calçada.
_ Por me permitir esbarrar em você – ela riu.
_ Isso vai mudar tudo – deu um curto beijo nos lábios dela e se virou pronto para desaparecer.