_ Onde estão nossos lagartos? – O mais velho esperou que as portas terminassem de abrir para entrar no lugar vazio. As únicas coisas que estavam ali eram a carroça velha da fazenda e algumas celas que não eram as de seus animais. O fazendeiro encarou o rapaz.
_ Fomos roubados – olhou ao redor um pouco confuso, mas então seus olhos cerraram-se devagar.
_ Aquele desgraçado deve ter feito isso, enquanto estávamos naquele lugar desclassificado – o velho deu um soco no ar devagar. O mais jovem olhava ao redor tentando colocar as ideias no lugar para saber o que faria a partir daquele ponto.
_ Eu vou até lá recuperar meus animais – o fazendeiro virou nos pés e desembestou rumo ao bar mais uma vez. O rapaz precisou de alguns segundos para se dar conta de que precisava fazer alguma coisa antes que fosse tarde demais. Foi alcançar o mais velho já no meio da rua.
_ Temos que ir até a polícia, senhor. Não vai adiantar nada ir naquele lugar – o velho estacou e o encarou furioso.
_ Mas com todos os androides. Claro que vai. Vou entrar lá, e exigir que aquele desgraçado me devolva os lagartos nesse instante – quando percebeu, o rapaz já estava acompanhando o patrão que seguia tenso de uma maneira completamente diferente da forma que sempre seguia olhando para frente, cheio de fúria nos olhos. Chegaram ao pé da mesma escada que haviam descido e o homem estava parado lá. Era evidente que os estava esperando. Pelo menos foi o que o fazendeiro orgulhoso conjecturou do alto da escada encarando o mais jovem que levantou as sobrancelhas em surpresa, ou fazendo uma imitação dela não muito convincente.
_ Quando o convidei para voltar – o grandalhão desceu um degrau devagar – não achei que aceitaria o convite tão rápido – riu e olhou para os dois capangas – acho que ainda tenho aquele velho charme, rapazes - quase irreconhecíveis por baixo de todas aquelas capas, trajes de deserto e chapéus. O grandalhão encarou o mais velho dos pés a cabeça.
_ O que vamos fazer com o bode velho, enquanto praticamos um pouco do esporte preferido dos homens? – o fazendeiro deu um pulo na direção do grande, que o segurou pelos ombros sem fazer muito esforço. O rapaz se atirou para separá-los enquanto ambos os capangas genéricos e irreconhecíveis, e até então irrelevantes, surgiram como aparições, com as mãos armadas no primeiro degrau da escada. As laterais de seus casacos se abriram e mostravam rifles de assalto muito antigos, mas ainda mais potentes que aqueles elegantes e modernos que o grandalhão empunhava em seu pulso largo. O fazendeiro moveu as sobrancelhas devagar para aquelas peças de museu letais que eles carregavam, mas não se intimidou e focou no homem que parecia mais ameaçador naquele momento.
_ Um momento lá, meu bom homem. É contato físico demais para mim – jogou o mais velho de volta cambaleando, passando pelas mãos do mais jovem, o fazendeiro mais velho ainda era ágil o bastante para ficar em pé sem que ninguém o ajudasse. Todos aqueles anos na fazenda havia feito dele um homem forte e robusto, apesar de não muito grande. Ele moveu as mãos rapidamente para que seu pulso ficasse armado. Com o gesto rápido sua pistola presa a seu pulso e o dedo indicador se armou. Como usava um modelo muito antigo de arma, um pequeno zumbido soou enquanto ela se preparava para atirar.
Antes que um dos fazendeiros pudesse fazer qualquer coisa, havia muitas armas apontadas para seus corpos. Duas daquelas eram aqueles rifles muito velhos, um em cada um dos homens, que agora os cercavam com apenas dois ou três movimentos muito ágeis. A arma presa a mão do homem de olhos negros zumbia quase infalivelmente, pronta para lhe acertar. O velho não olhou ao redor, porque não precisava fazer isso para saber que estavam cercados.
_ Onde estão os meus lagartos? – saliva espirrava por todos os lados a medida que sua boca espumava de raiva incontida.
_ De que lagartos, está falando, meu velho? – o rapaz segurou os braços do patrão que continuava a apontar para o grandalhão.
_ Aqueles que você perguntou o preço, e como eu não vendi, simplesmente os pegou. Como deve ser comum para o seu tipo de gente – o maior rasgou um curto sorriso nos dentes perfeitos e muito brancos que mais pareciam presas do que dentes de um ser humano, apesar de serem dentes como outros quaisquer. O pistoleiro deu um passo curto na direção do fazendeiro que não mudou de posição, enquanto o rapaz titubeou.
_ O meu tipo de gente, não chama outro homem de ladrão, a não ser que tenha um bom motivo para isso.
_ E que outro motivo eu preciso, a não ser você parado aqui na minha frente? – os homens se encaravam. Os olhos cheios de fúria de um encontravam os que pareciam completamente desprovidos de vida do outro. Pretos como olhos de tubarão. Escuros como sua alma parecia ser.
_ Senhor – o rapaz cruzou o caminho dos olhares com o corpo largo que tinha, impedindo que quaisquer disparos pudessem ser feitos sem que fosse atingido como escudo. Estava contando com o interesse do homem nele para manter seu patrão vivo por mais um tempo, naquela rua onde pessoas passavam e imediatamente desviavam, fingindo não perceber que um impasse potencialmente perigoso começava a se formar, e aceleravam rumo a qualquer outro lugar longe dali como se nada estivesse acontecendo. Em instantes a rua ficou deserta. Não havia uma única alma ao redor deles. Era como se a grande metrópole houvesse se tornado uma cidade fantasma, em poucos segundos. As únicas almas perdidas naquele lugar eram o grupo a beira da escada e os olhares velados das cortinas das janelas, como fantasmas que na verdade não estariam lá se lhes fosse perguntado.
_ O homem tem razão – o choque trouxe o velho de volta ao rosto do empregado.
_ Do que, androides, está falando? – ele encarou o jovem que tentou engolir o novelo de lã que se formava em sua boca. Firmou a voz rapidamente e continuou.
_ Vamos até a polícia. Não podemos sair por aí acusando pessoas...
_ Principalmente, pessoas que não deveria – o grandalhão completou.
_ Você não é nada. Seu vagabundo do deserto, sem moral, mais vazio que... – o som do disparo foi curto. Os olhos do velho primeiro focalizaram o rosto do seu funcionário mais jovem. Estavam cheios de uma surpresa assustada. Ficaram se encarando por o que poderia ser uma eternidade, antes de ficarem nublados sem anda ver, antes de se fecharem. O corpo tombou para traz rapidamente. O mais jovem precisou de tempo para processar tudo que aconteceu, e este foi o tempo que o destino tomou para alterar sua vida, para todo o sempre. Quando voltou a dominar seus sentidos, viu que a arma, presa ao seu pulso como qualquer revólver pessoal deve ficar, era a arma que havia disparado. O que não era possível. Armas eram ligadas a seus portadores, e ele tinha certeza de que não havia disparado em ninguém. Mas, ela estava firmemente mantida pelo forasteiro de maneira que mal se moveu no momento do disparo a queima roupa sobre o fazendeiro, seu patrão, seu mentor e seu melhor amigo. A proximidade foi tanta que, provavelmente, fez com que os órgãos dentro do corpo do fazendeiro orgulhoso se partissem completamente. Dentro daquele corpo caído havia nada mais do que uma massa disforme e meio liquefeita de órgãos humanos. Quando ia se virar para encarar o assassino, o homem grande soltou sua mão que provavelmente estava com o pulso aberto, pela dor que pulsava subindo seu braço, e segurou-o pelo ombro com uma das mãos tempo o bastante para que um de seus capangas segurasse o rapaz antes que ele desmontasse. Aqueles rifles antigos haviam desaparecido dentro dos casacos novamente.
_ Como fez isso? - Ele tentou se virar, mas o homem o empurrou para frente num gesto muito rápido. O jovem cambaleou e caiu sobre o patrão metendo o nariz em seu peito que parecia mole, com todas as costelas quebradas. As pessoas começaram a surgir novamente na rua. Uma mulher olhava para a cena pela janela no andar superior no bar e não era mais um fantasma. Agora, a cara redonda dela estava surgindo entre a cortina que se abriu. O rapaz olhou para o próprio revólver, ainda terminando de fazer seus ossos vibrar com o disparo a queima roupa.
_ Eu não disparei minha arma. Como disparou minha arma? - ele se virou quando conseguiu, mas a esta altura o grandalhão havia dado vários passos para trás e apontava para o rapaz. A porta do bar se abriu numa explosão e a dona do local olhou para o corpo caído na areia vermelha como o sangue que começava a surgir de todos os poros e empapar a camisa do fazendeiro. Mais gente se materializava ao redor. Aquilo se transformava em uma multidão muito rapidamente.
_ Mas o que é que você fez rapaz? - o mais jovem olhou ao redor e a primeira coisa que viu foi a dona do lugar, com seus olhos de scaner projetados primeiramente sobre o cadáver caído, depois sobre seu rosto que ainda vibrava com aquilo tudo. Ele olhou para ela incrédula em sua inocência, ou determinada a lhe culpar. Ele nunca viveria tempo o bastante para saber a diferença.
_ Vamos - o maior fez sinal para que os outros segurassem o jovem. Ele se aproximou do rapaz.
_ Você tem 15 segundos para decidir como será a sua vida a partir de agora – o rapaz o encarou. Vozes gritavam que o delegado se aproximava. Observou o corpo, depois aqueles olhos que já deviam ter sido muito bonitos quando havia vida dentro deles. Podia sentir o hálito do homem sobre seu rosto, e mesmo entre toda aquela confusão, ainda sentia a atração que ele lhe causava.
_ Execução, ou o deserto comigo? – o rapaz não respondeu. O maior fez sinal e os outros capangas praticamente o carregaram, empurrando as pessoas que haviam começado a cerca-los, não para segurá-los, porque isso não era importante. O que importava era ver o cadáver estendido na terra vermelha. A poça se alastrava sobre a areia quase tão vermelha quanto o líquido que a transformava em barro meio orgânico. O rapaz seguiu com eles ainda observando o corpo do homem que o havia ajudado a reclamar seu primeiro pedaço de terra, inerte. O sangue começava a escorrer por sua boca e a poça se formava no chão descendo pelo fundo de suas calças que ficavam vermelhas com os órgãos quase liquefeitos lhe escorrendo pelos fundos. Todos seguiram para os estábulos, juntamente com um rapaz que acabava de perder a vida, que por um dia havia dado como perfeita.
Suzana esticou as pernas sobre a cama. Seus olhos caíram sobre o aparelho mais uma vez. Não sabia exatamente por que, mas esperava que Collins ligasse. Sabia que era cedo demais. Haviam estado juntos a poucas horas, tomando um café caríssimo. Haviam falado um pouco de suas vidas. O pensamento de que um homem daqueles podia se apaixonar por ela lhe deu um curto arrepio. Não se considerava uma mulher feia. Seus pais haviam feito o que puderam com o orçamento que tinham quando decidiram tê-la. Mas isso não justificava certas escolhas, principalmente de sua mãe. Afinal, que mulher deixava ao acaso que número de sapatos uma filha usaria quando fosse adulta. Claro que, quando ela havia sido gerada, estava na moda deixar o máximo ao acaso, devia agradecer a seus pais por pertencerem àquela onda de naturebas caosistas. Mas, conhecendo sua mãe, isso deve ter-lhe vindo muito a calhar, principalmente se seu poder aquisitivo não lhe permitia muitas exigências, no momento da concepção. Talvez isso explicasse aqueles pés gigantescos iguais aos dela. Ou talvez aquela mulher houvesse feito de propósito, só para que ela também soubesse como era ter pés do tamanho de um transporte espacial. No restante, era uma mulher atraente de cabelos ruivos naturais. Escolha de seu pai, quando o médico disse que ela teria grandes chances de ser ruiva. Segundo sua mãe ele achou encantador ter uma filha de cabelos vermelhos naturais. Chamava a atenção, isso era inegável. Parou para respirar e pensar e se arrependeu de deixar a opção de ligar para Collins. Queria poder falar com ele. Queria poder ouvir aquela voz macia mais uma vez antes de dormir. Se é que conseguiria dormir outra vez. Olhou para a toalha descartável do banheiro da cafeteria que havia enfiado na calcinha antes de sair do banheiro. Precisava de provas que estivera lá. A logomarca estava muito visível na marca d'água. Sorriu. Seu telefone começou a tocar e seu coração pulou no peito. Esticou-se na cama de casal e segurou o aparelho. Estava com os cabelos desarrumados. Não queria que ele a visse. Não ligou o monitor. Quando viu o nome de sua mãe piscando, fungou. Titubeou antes de aceitar a ligação por alguns instantes.
_ Devia ter imaginado – apertou o botão para receber.
_ Mamãe... – sua voz não negava o quanto estava decepcionada. Ela ouviu o aparelho por um instante.
_ Não. Estou cansada. Tenho trabalhado muito – ouviu por um instante. Seus olhos se arregalaram e ficaram frios. Ela ligou a imagem de seu aparelho e o rosto de sua mãe surgiu grave na tela e agora podiam se ver e ouvir sem aparelhos manuais. Sua mãe era sempre uma figura imponente, mesmo apenas na tela. Mesmo estando em outro planeta. Como qualquer mulher em sua idade, não parentava ter mais do que oitenta anos, quase sem rugas, e com os olhos muito vivos de uma mulher da meia idade. Ainda tinha aquela arrogância inata das classes superiores do Anel Lunar, mesmo depois de tê-lo deixado para trás a alguns anos em busca de um lugar mais calmo para morar nas colônias Lunares. E a mesma pouca tolerância daqueles que se consideravam, e em muitos aspectos eram, superiores àqueles que moravam nos andares inferiores do Anel Lunar.
_ Você fez novamente? – Suzana sentou-se na cama. Pela cara da mulher do outro lado, ela já sabia que havia perdido o emprego. Aqueles olhos completamente verdes a cortavam como navalhas, todas as vezes. Como ela fazia isso sempre fora um mistério para Suzana.
_ Eu lhe disse para nunca ligar em meu trabalho e...
_ Pode-me dizer como conseguiu ser demitida novamente. O que fez desta vez? – Suzana piscou tentando fazer uma cara digna. As mulheres eram quase clones, em idades muito pouco diferentes. Ambas tinham os cabelos ruivos levemente encaracolados, e sua mãe tinha os fundos necessários para manter a idade que desejava, a alguns anos já.
_ Eu não fiz nada – seu rosto ficou vermelho e cheio de fúria enquanto o da mãe parecia aquela estátua sem rugas e apenas desprezo por tudo que considerava inferior. Suzana sempre teve a impressão que este desprezo incluía a ela
_ Não precisa se preocupar. Tenho tudo sob controle.
_ Claro que você tem. Você sabe quantas vezes me disse isso? – Suzana soltou o ar dos pulmões.
_ Na próxima segunda iniciarei uma nova fase em minha vida – Suzana imaginou que fase seria essa.
_ E que fase seria essa, Suzana? - ela iria subir em um voo barato para a Lua, para morar com aquela criatura na tela, enquanto o primeiro homem realmente interessante e disponível que aparecera em sua vida seguiria para trabalhar na Terra por um ano inteiro, onde, provavelmente, conheceria uma mulher interessante e se casaria. Havia mulheres interessantes naquele planeta, ou eram todas mutantes? Se fossem todas mutantes, talvez ela tivesse uma chance. Só precisava estar lá. A voz da mulher na tela a trouxe de volta.
_ E o que seria este plano maravilhoso? – a ruiva piscou encarando a tela fazendo um muxoxo.
_ Recebi uma proposta irrecusável e... – a segunda linha começou a tocar. Suzana olhou para o aparelho e viu um número não reconhecido. Não recebia muitas ligações, e não tinha amigas de verdade, então só poderia ser uma pessoa.
_ Você sabe que não pode ser deportada do Anel lunar de modo algum, não sabe? – sua mãe, pela primeira vez em décadas, parecia autenticamente aflita do outro lado. Ela aproximou o rosto da tela, ficando parecendo um personagem ainda mais caricato do que realmente era.
_ Mamãe. Por que acha que eu não sei disso?
_ Você não sabe. Se soubesse teria muito mais cuidado em seus empregos – a mulher pareceu engolir uma frase, decidir repetir, e começou a falar - não pode ser deportada, de modo algum. Está me entendendo, Suzana? – ela soltou o ar dos pulmões. Ficou em silêncio por um instante.
_ Não vou fazê-la passar por esta humilhação, mamãe. Não se preocupe.
_ Suzana, você tem que me escutar. Não se trata de mim. Você não pode ser deportada, de modo algum... - Suzana parou para observá-la por um instante, mas a linha da outra ligação não tocaria para sempre e poderia ser um emprego, ou muito melhor. Collins.
_ Mamãe. Tenho de desligar – nem chegou a ouvir o que a mais velha ainda dizia. Mudou de uma linha para a outra assim como sua voz mudou do esganiçado, a beira de um atque de nervos, para o discretamente rouco e impessoal ao atender.
_ Suzana - disse tentando não parecer empolgada demais.
_ É cedo demais para te ligar? – aquela voz era inconfundível. Eram anjos másculos e peludos falando seu nome.
_ Olá. Claro que não – ela riu devagar e propositadamente sexy, depois encarou a tela. Não viu nada além do número piscando e o tempo de conversa decorrendo. Ficou surpresa, mas aliviada, não queria que ele a visse daquele jeito, abriu a boca para questionar a razão da imagem ausenta, mas achou que estaria parecendo curiosa demais, desesperada ou qualquer outra coisa que ele poderia não gostar.
_Te atrapalho? – ele não era uma graça? Sempre tão preocupado com ela. Os homens de sua vida não eram assim. Quase nunca se preocupavam com ela, apenas se ela achava que seus pintos eram grandes e bonitos ou se seus músculos estavam maiores desde a última vez que haviam saído. Alguns perguntavam se a performance havia sido boa, mas a maioria estava tão cheia de si mesmo que não se preocupava em ouvir a resposta, mesmo que ela não mentisse. De qualquer modo, sempre tinham uma pílula ou duas para resolver isso. Quem era ruim de cama atualmente?
_ Estava conversando com minha mãe – ouviu o silêncio dele e resolveu continuar – sobre o trivial. As suas reuniões com o clube de senhoras da Lua – que ela odiava mais do que o próprio envelhecimento – e minhas férias em sua casa no verão – que jamais aconteceriam se Suzana pudesse evitar.
_ Fala muito com sua mãe? – a voz dele era um deleite, mas parecia um pouco distraída. Talvez aquela conversa o estivesse entediando.
– Claro, somos muito ligadas, sabe. Falamo-nos sempre que possível – toda vez que Suzana atendia as ligações semanais dela para ouvir quanto estava errada em alguma coisa. Ou quanto ainda demoraria a se mudar para um nível melhor no Anel Lunar, e estes tipos de conversar motivacionais e estimulantes que sua mãe era tão boa em ter com ela, a décadas.
_ Tem uma família grande? – a voz dele era pausada, centrada e sempre sensual.
_ Não – riu devagar, tentando parecer natural e sensual, não sabia se estava funcionando com aquele homem tão enigmático – somos somente nós duas no universo. Temos de ser unidas, não acha? – ela mudou de posição. Ainda não havia imagem sendo recebida, o que a deixava ainda mais curiosa sobre aquele homem. Talvez ele também estivesse em casa, dentro de pijamas confortáveis, e não queria ser visto. Qual seria o nível que um homem daquele morava? Não havia um número que ela pudesse ver que lhe ajudasse a determinar de qual nível estava ligando. Talvez estivesse ligando do escritório de sua empresa. Grandes corporações tinham autorização para números privados. Ou talvez estivesse observando o planeta de sua sacada no último nível. Vendo a Terra girar enquanto falava com ela, em seu pijama que deixava o peito peludo masculino aparecendo levemente. Era uma imagem sexy.
_ Estaria disponível para almoçarmos juntos amanhã? – ela caiu no chão de cara e ficou feliz com isso.
_ Amanhã? – seu coração disparou, mas fez uma pausa de alguns segundos que lhe pareceu ser de dez anos luz – acho que estou disponível para almoçar – falou depois de um tempo, esperando ter causado o efeito necessário.
_ Queria vê-la antes do almoço, porque não sei se terei tempo no restante do meu dia.
_ Claro. Podemos nos encontrar...
_ Que horas prefere?
_ Gosta de almoçar ao meio-dia? – aquela voz parecia vir de um sonho sensual dela. Era perfeita.
_ Podemos nos encontrar no nível dos restaurantes?
_ Não prefere que eu a encontre em seu nível? – ela quase deu um gritinho. Claro que não queria. Ela não queria nem que a zeladora do andar de seu cubículo a visse chegando ou saindo de casa. Imagina um homem como aquele andando em seu nível do anel. Seria engraçado, se não fosse sua vida.
_ Não precisa se preocupar. Eu tomo o elevador expresso. Não demora nada.
_ Podemos nos encontrar no nível dos restaurantes do centro administrativo, então? – ela quase deu um gritinho.
_ Claro! – não havia mais o que dizer, mas ele não desligou.
_ Está ótimo - a voz dele era um deleite. Não se importava de ouvi-lo lendo bulas de remédios.
_ Nos vemos amanhã, então? – Suzana riu e acenou para uma tela que não havia ninguém.
_ Combinado – ela teve a impressão de que ele deu um daqueles sorrisos que são quase uma risada de contentamento do outro lado.
_ Tenha uma boa noite, Suzana. Vemos-vos amanhã – ela sorriu para a tela sem imagem mais uma vez.
_ Você também – desligaram. O telefone voltou a tocar com mais uma ligação de sua mãe. Não atendeu. Não queria passar de um estado de graça para o estado de desgraça com toda a negatividade de sua mãe acabando com sua felicidade.
_ Eu não acredito – gritou para si mesma. Ignorou o telefone tocando uma terceira e uma quarta vez até que a mulher da Lua desistiu. Pelo menos por enquanto.
Ela não precisou ser despertada aquela manhã. Quando a luz de alerta acendeu sobre seu rosto, já estava acordada imaginando que vestido seria ideal para um almoço com aquele homem. Talvez aquele verde limão com detalhes em silicone. Não, muito formal, aquele tom de verde nunca ficava como ela gostava, dependendo da luz local, e não tinha decote algum. Queria alguma coisa levemente mais ousada, discretamente insinuante, mas ainda discreto. O vermelho, que era quase um tom de laranja, como estava na moda naquela estação. Seria perfeito. Estava na moda combinar o vestido com a cor dos cabelos. Estava em todos os lugares. Porque não pensara nisso antes. Usaria aquele vermelho-alaranjado, mas faria com que a tonalidade ficasse um pouco mais quente, um pouco mais escura. Isso deixaria o tom claro de seus cabelos em evidência, criando um tom sobre tom perfeito. Era isso que faria. Pulou da cama. As luzes se acenderam, mas aquele nível de luminosidade era para as manhãs de trabalho, quando pretendia que seus dias começassem devagar. Tocou e as elevou ao máximo. Queria luz. Muita luz para um dia que poderia ser o mais feliz de toda a sua vida. Foi ao banheiro e se preparou para gastar toda sua cota de água daquela semana. Do resto de sua vida, se precisasse. De qualquer modo, teria de sair daquele nível, daquele apartamento, daquele Anel Lunar, muito em breve. Seus créditos ainda permitiam que pagasse por um banho por dia. Pelo resto dos dias que ainda passaria naquele lugar. Ela deu de ombros. Alguma coisa lhe dizia que não precisaria se preocupar com isso muito em breve. Talvez seu futuro namorado morasse em um ou dois, talvez três, níveis acima do seu. Basicamente ocupado por profissionais liberais, recém-formados da elite e prestadores de serviços de terceiro grau bem-sucedidos. Ou talvez, morasse na cobertura, vinte níveis acima, e tivesse uma daquelas raríssimas casas grandes com piscinas sob a luz do sol, de verdade. Oitenta metros quadrados de puro luxo. Ela fechou a porta do reservado e programou o banho para o melhor que ainda tinha. Queria cabelos limpos e perfumados, esfoliantes para a pele, pensou um pouco frente ao painel pequeno aceso na parede. Talvez um hidratante especial fosse perfeito. Decidiu pelo perfume mais barato disponível, mas que ainda era elegante, e apertou para que o banho começasse. Fechou os olhos e esperou que os jatos de água lhe banhassem. Quando saiu estava renovada. A pele cheirava discretamente bem, estava brilhante e macia, os cabelos estavam sedosos e perfumados. Agora os arrumaria. Foi até o pequeno painel e tirou o aparelho que lhe custara dois meses de mordomias, mas valera cada crédito. Arrumou os cachos ruivos que lhe caiam sobre os ombros desnudos num coque rápido e os colocou dentro do secador, depois selecionou, perfeitamente encaracolados e soltos. Apertou o botão e esperou os minutos que precisava até que um curto sinal indicasse que já estava pronto. Quando retirou os cabelos do aparelho, estavam arrumados em cachos perfeitos, brilhantes do mais puro e sensual ruivo natural, disso ela se orgulhava. Se tivesse um pouco mais de coragem, teria vendido aqueles cachos perfeitos e ruivos. Isso compraria para ela, pelo menos, mais seis meses naquele nível. Suzana estacou a frente do espelho, poderia aderir aquela moda dos cabelos cortados a garçom. Um arrepio lhe percorreu os braços. Quem era ela sem aqueles cabelos. Não era geneticamente avantajada. Não tinha uma bunda arrebitada, principalmente porque não podia pagar por uma atualmente, e agora estava longe de poder aderir a modas passageiras, então deixou como estava. Tinha seios perfeitos, mas poderiam ser maiores se houvesse aceitado aquela oferta, dois empregos atrás, e tinha pés grandes demais como a sua mãe. Na verdade, era apenas uma garota de quase quarenta anos igual a uma centena de milhares de outras que habitavam aquele anel, mas isso não a impediria de estar esperando pelo homem que poderia facilmente personificar o príncipe encantado. Ela sorriu e deixou o banheiro.
O corredor externo nunca pareceu tão iluminado. O céu artificial sobre sua cabeça nunca brilhou tanto. Era um daqueles momentos, verdadeiros ou não, que ela pensava que tudo daria certo. Todo mundo tem um momento destes, de vez em quando. Alguns aconteciam, porque alguém acordou achando que tudo seria resolvido de modo benéfico, sem nenhuma razão ou propósito. Outras vezes, porque alguma coisa lhe restaurava a crença no destino que acreditava lhe pertencer. Naquele dia, Suzana sentia-se assim enquanto caminhava em direção ao homem dos seus sonhos. A sensação de estar seguindo rumo ao seu destino era tão palpável em seu coração e mente, que cada passo lhe parecia aproximar de algo grande, definitivo. Verdade ou não. Sentia, pelo menos naquele momento, que se dirigia rumo ao sentimento de felicidade que lhe faltava na vida. Sentia que caminhava rumo aquilo que preencheria o vazio de sua existência.
_ Talvez minha sorte tenha mudado – disse a si mesma em voz alta, por que vocalizar aquilo fazia com que fosse ainda mais real. A felicidade poderia ser algo atribuída às expectativas referentes ao homem que a esperava para almoçar, mas o sentimento, a premonição, de que algo mudaria para sempre a partir daquele encontro, era real em sua mente. Parou a frente do elevador. Normalmente não usava aquele transporte, era lotado e demorava demais, mas estava com algum tempo de sobra, e queria chegar discretamente atrasada. Como se não se importasse tanto, ou estivesse muito ocupada. Por mais que lhe incomodava passar esta sensação a Collins, preferia manter-se as suas regras de jogo. Pelo menos por mais algum tempo. Era melhor estar na dianteira enquanto podia. O elevador finalmente chegou. As portas se abriram devagar. O grupo começou a desembarcar. Estava ficando difícil esperar todas aquelas pessoas saírem como se não houvesse mais nada a fazer na vida. A última a deixar o transporte coletivo foi uma garota completamente compenetrada em uma conversa, e como os zumbis que aquela geração era, mal notou o grupo que iniciou o embarque. A fila finalmente começou a andar elevador adentro e a ruiva natural percebeu que estava mais nervosa do que imaginava quando a lentidão do embarque também a perturbou. Foi a décima oitava pessoa a tomar seu lugar no elevador quando ele anunciou lotação máxima e aquilo lhe pareceu uma eternidade. Outras pessoas tomaram um tempo valioso de sua vida, desistindo de embarcar, e permitindo que as portas se fechassem mais uma vez e os escolhidos para aquela viagem iniciassem a movimentação pela estrutura do anel. Como era habitual, o transporte começou seguindo para a direita por talvez dez quadras onde desembarcou cinco pessoas e recebeu outras oito até anunciar lotação, mais uma vez. Depois que chegou à estrutura central começou a subida. Suzana teve de esperar mais três paradas para chegar ao seu destino. Ficou imaginando se não teria compensado mais andar e ter pegado o elevador expresso vertical. Estes elevadores multidirecionais demoravam uma eternidade. Havia se esquecido do quanto odiava ficar presa com toda aquela gente. Quando finalmente pisou na calçada externa com um dos seus sapatos mais elegantes e caros, respirou fundo. Escolheu a fila interna que caminhava na calçada porque seguiam na direção que precisava. Percebeu seu batimento cardíaco alterado quando seu monitor fez um bipe mais alto em seu braço. Olhou para o display e soltou o ar dos pulmões devagar.
_ Era só o que me faltava – quando passou o dedo as imagens surgiram sobre seu pulso. Imediatamente silenciou todos os toques. Decidiu por desligar a coisa de uma vez. Não queria que ele percebesse que estava prestes a ter um ataque cardíaco. Passou a andar um pouco mais devagar, mas a velocidade dos outros transeuntes na calçada era maior, e seu passo lento começava a causar olhares e fungadas daqueles que tinham pressa. Resolveu que era mais fácil relaxar sem aqueles olhares de reprovação cada vez que alguém tinha de mudar para o lado. Voltou a fazer parte do grupo que andava, quase ao mesmo passo, enquanto seguiam na mesma direção. Suzana notou que seguir com os outros daquele modo era, realmente, mais fácil e infinitamente mais relaxante e seus batimentos pareciam responder a isso se calmando. Era aquela sensação de ordem que precisava. Quando chegou a área dos restaurantes de luxo para onde seguia, seu coração voltou a bater forte mais uma vez. Seus passos seguiam firmes, mas sua mente perambulava pelo seu passado. Viu cada vez que sentiu aquela emoção ao se encontrar com alguém. Viu-se parada naquele terminal espacial esperando seu piloto espacial. Sentiu-se idiota por isso. Quantas vezes ele acabava de chegar de uma cama para esticar-se na sua com aquela frase dizendo o quanto a viajem havia sido desgastante e o quanto uma massagem lhe cairia bem. Lembrou-se das vezes que esperou o escritório ficar vazio, apenas para poder ter um jantar de comida pronta sobre a mesa bem ao lado do sofá onde tantas outras provavelmente haviam feito o mesmo, e ido embora achando que ele iria mesmo deixar a esposa por ela. As vezes que se sentiu menos do que uma boneca sexual e quantas vezes realmente foi uma. A ruiva deu um passo para o lado e liberou o caminho da fila interminável. Em sua mente ainda ardia a imagem de sua mãe lhe dizendo que nenhum daqueles homens a obrigou a nada. Que cada uma das vezes que se sentira daquele mesmo modo, como se finalmente houvesse encontrado o grande amor de sua vida, fora enganada por sua livre, espontânea, e decidida vontade.
_ Estou fazendo isso de novo – as palavras saíram como se estivesse vendo sua mãe bem a sua frente. Apontando os olhos firmes, cheios de reprovação. Naquele momento desejou ter uma amiga para lhe dizer o que fazer, mas não tinha nenhuma. Nunca fora muito boa em fazer amigos. Fazer amigas era uma tarefa impossível para ela. Olhou ao redor corando, como se alguém a estivesse a escutando. Procurou pelas câmeras ao seu redor e encontrou dezenas. Todas pareciam estar vendo o que lhe acontecia naquele momento. O quanto estava perto de cometer mais um engano ao se encontrar com um homem que claramente queria um pouco de diversão, antes de deixar o anel. Que não poderia ligar para ela, mesmo que quisesse, porque estva com a noiva perfeita em algum lugar. Que provavelmente nunca mais o veria depois de hoje. Respirou fundo. Olhou para as câmeras ao redor, lá no alto mais uma vez, e puxou o ar para dentro dos pulmões. Aquele gesto impulsivo de arrumar as roupas que não estavam desarrumadas à fez decidir por pegar a fila de volta. Subir naquele elevador e encarar o fato de que sua vida naquele lugar estava acabada. O melhor era ligar para sua mãe e dizer que havia fracassado, mais uma vez, e que estaria no próximo voo para a Lua. Para ficarem juntas pelo resto de suas longas, insípidas e frustradas, vidas.
_ Suzana – seu nome soando no meio da multidão quase fez com que desse um pulo. Estacou no meio das pessoas sem se importar com as caras feias e virou a tempo de ver o rosto de Collins lhe sorrindo tão largamente, que poderia iluminar metade do anel só com a energia que aquilo lhe enviava.
_ Está tudo bem? – os olhos dele eram imãs.
Ela sorriu sem jeito. O sorriso dele desapareceu. O homem grande e lindo moveu-se tão rápido para ficar perto dela, que teve a impressão de que ele tinha rodinhas.
_ Está desistindo de almoçar comigo? – Collins mergulhou nos olhos dela de um modo que Suzana foi incapaz de mentir para ele. Seus olhos pareciam apreensivos e um pouco decepcionados. Era de cortar o coração ver um homem como aquele a olhando como um rapazinho. Ela desenhou o melhor sorriso que pôde, mas ainda assim ficou sem vida alguma nele.
_ Isto é um erro – ele franziu a testa.