O dia fora tão gostoso que Milles se esquecera completamente do que havia acontecido de manhã. Enquanto voltava para casa, o rapaz lia as anotações que pegara emprestado de Theodore sobre o primeiro time que jogariam contra nas regionais.
Ainda se surpreendia com a riqueza de detalhes do ômega loiro, e parecia que a gravidez acentuara sua percepção. Milles ficara completamente abobado por notar que o jogador da qual marcaria era bom. E aparentemente alto.
Passando o portão de casa, o alfa virava a página ainda lendo as anotações com genuíno interesse. Mal notara, quando passara a porta, os pares de olhos que se erguiam em sua direção como se aguardassem a sua chegada.
— Finalmente chegou, o outro garoto problema.
A voz intensa de alfa fizera Milles parar de caminhar e virar-se para a sala onde seus pais o olhavam de braços cruzados. Lembrara-se, então, de que eles deveriam ter retornado da reunião de pais da escola. Um arrepio passara por sua espinha ao perceber que seu pai usava a presença de alfa para fazê-lo obedecer.
— Eu? O que eu fiz?
— O que você fez? Causou problemas na escola, é claro.
Confuso, Milles fora até a sala olhando seus pais percebendo Sadie sentada de costas para si. Teria ela mentido e dito que fora quem invadira a sala da diretora? Não seria possível... Se a diretora tinha as imagens da câmera de segurança, não existia chance alguma de Sadie mentir.
— Eu não fiz merda nenhuma.
— Modere o seu linguajar, Milles. — Dissera o pai, movendo os olhos para o estofado em sinal para que se sentasse. Milles o fizera ficando ao lado de sua irmã. — Nunca me senti tão envergonhado em toda a minha vida. Vocês dois tem noção do que fizeram hoje? Isso poderia sujar a reputação de nossa família, que construímos com tanto zelo. E por causa do quê? Um ômega? Um garoto ômega?
Milles erguera os olhos para o pai, tão sérios e felinos quanto jamais fora capaz de fazê-lo.
— Por que eu deveria escutar isso? Não fui eu quem invadiu a sala da diretora e nem armei esse furdunço todo.
— Deveria ter ficado calado então. — Milles revirava os olhos soltando um riso nasalado. — Tira a camisa.
— O quê?
— Tire a camisa, Milles. — Dissera pausadamente o pai.
— Pra quê?
— Porque eu estou mandando.
Ele sabia.
Ele sabia que Milles fora mordido.
Quem teria contado? Sadie? A diretora? Ou ouvira dos alunos?
A presença ameaçadora de um alfa fora sentida, direcionada para o filho mais velho que até então não movera um dedo. A sensação era similar ao da gravidade agindo de acordo com sua vontade, mantendo sua cabeça baixa como um moleque obediente. Tirando a mochila dos ombros e a blusa, o alfa tirou a camisa mostrando aos pais a única marca presente em seu corpo. Avermelhada e cicatrizada, bem sinalizada em seu ombro direito.
A mordida que Nicolas dera em si.
Seus pais arregalavam os olhos estupefatos, sua mãe até cobria a boca de espanto. A vermelhidão da fúria subia pelo pescoço de seu pai tomando toda a sua face.
— Mordido! O meu filho, foi mordido por um maltrapilho. — Choramingava a mãe em prantos.
— É isso o que você queria? Deixei você zonear com suas meninas pra no fim acabar sendo mordido? E ainda por um moleque desavergonhado?
— Não fale assim dele. — Rosnava Milles entre dentes.
— Por acaso você também está mordida, Sadie?
— Não, papai. — Dissera a garota, mantendo a cabeça baixa sem conseguir encarar a figura paterna.
Virando-se para o primogênito, o pai tornava a encarar aquela mordida zangado. Suspirava, acariciava a testa tentando pensar melhor, mas nada parecia ser o suficiente. Palavras faltavam.
Milles sabia muito bem que agora conseguira irritar o seu pai. Desde o momento em que entrara no ensino médio ele e seu pai se desentendiam facilmente. Tudo porque o alfa não queria seguir os seus planos. Queria viver livre.
Um sorriso surgia no rosto do alfa loiro, deixando seu pai perplexo ao percebê-lo.
— O que foi? Não quer olhar mais de perto? Precisa ficar com vergonha não.
— Está orgulhoso disso? Não me diga que deixou esse tipo de coisa acontecer só pra me enfrentar, Milles.
Vestindo sua camisa novamente, Milles sentia a mordida formigar. Provavelmente ele estaria sentindo a sua raiva e lhe mandando algum tipo de lembrete para manter a calma. O que seria bastante irônico se viesse de Nicolas, já que ele era o primeiro a arregaçar as mangas e brigar com alguém.
— Que seja. Eu não tenho nada a ver com o que aconteceu hoje. Então vou pro meu quarto.
— Senta já!
A voz grossa de alfa fizeram os ouvidos de Milles zumbirem ao ponto de sua cabeça latejar. Precisando se sentar, o rapaz encarava o pai com raiva, cobrindo a orelha como se fosse capaz de impedir aquele som ensurdecedor de voltar.
Maldito fosse usando o instinto alfa pra manter o poder sobre seu filho.
— O que você quer de mim?
— Você vai terminar essa relação inescrupulosa e vai fazer faculdade nos Estados Unidos. Longe o suficiente dessa aberração.
Rindo em escárnio, Milles tornava a se levantar do sofá. Dessa vez mantendo a cabeça erguida em confronto a figura paterna.
— Não vai conseguir. Porque eu também o mordi.
O tapa que fora dado em sua face não fora capaz de silenciar o grito sufocado das duas mulheres ali presentes. A ardência em seu rosto parecia ser mais real do que a ideia do tapa levado. Seria a primeira vez que recebia um tapa de seu pai, e o suficiente para Milles enfurecer-se mais.
— Como ousa? É assim que retribui toda a dedicação que essa família deu a você? Comida, uma cama pra dormir, bons estudos para se tornar alguém na vida... Tudo jogado fora por causa de um prostituto?
Os olhos caramelados se arregalavam quando seu pai segurara a gola de sua camisa. A mãe intervira tentando separar, mas a força daquele alfa não era tão pequena para ser separada. Milles cerrava os punhos furiosamente, apesar de não haver qualquer coragem em direcioná-los para aquela pessoa.
— Ele não é isso.
— Não aprendeu nada com o que aconteceu com o teu primo? Essa classe é nojenta, uma humilhação para as ômegas.
— Limpe sua boca antes de falar dele! — Esbravejava Milles, empurrando o pai com força o suficiente para liberá-lo do aperto. Agora era ele quem ficava vermelho de raiva.
— O que esse menino fez com você, meu filho? — Chorava a mãe, ajudando seu esposo a se recompor. — Isso que está sentindo não te pertence, é coisa da mordida. Você não gosta dele tanto quanto gostaria...
— O que uma mulher que nem foi mordida pelo seu marido pode dizer? — Ria Milles olhando a mãe. — Quando essa merda aconteceu vocês não estavam lá. Nunca estiveram lá pra ajudar. Só lembra que tem filhos quando precisa.
— Meça suas palavras!
— Meça as suas atitudes! — Rosnava o alfa. — Ninguém irá tirar o meu ômega de mim. Ninguém!
— Então faça a sua escolha. Ou ele ou a nossa família. — Dizia a mãe de supetão, esperando emocionada que o filho escolhesse a família.
— Não é necessário fazer uma escolha. Você vai pros Estados Unidos fazer a faculdade e começar a expandir nosso trabalho por lá.
Estava sendo encurralado. Milles passava os dedos pelos cabelos os jogando para trás, respirando fundo. Seria óbvio que escolheria a família, foram eles quem lhe trouxeram ao mundo e lhe deram uma excelente vida.
Mas isso significaria deixar para trás tudo o que amava. Viver como uma marionete que só sabe seguir os comandos do seu dono. Alguém manipulável que será o motivo de risos quando alguém enxergar os seus fios. Seus pais realmente acreditavam que Milles faria uma faculdade que ajudasse a se tornar um adulto respeitável. Que quando terminasse a escola, se transformasse em uma pessoa digna de herdar os negócios da família.
Só que não era isso o que Milles desejava. Até mesmo sua irmã o ajudava tentando se livrar dessas amarras, pois ela gostaria de herdar enquanto ele só queria jogar vôlei.
Permanecer naquela casa era como entrar em um ciclo vicioso e doentio. Milles estava cansado. E frustrado, já que notava que esconder sua relação com Nicolas era apenas empurrar com a barriga aquela situação. Agora que ela explodira de vez, não deveria por um ponto final?
— E se eu me recusar? — Seu pai dera alguns passos em sua direção, sendo parado pela esposa que choramingava.
— Seguirá o mesmo caminho que aquela pessoa. Essa família não tem espaço para gente que se deixa dominar por ômegas.
— Então a resposta é bem óbvia.
Pegando sua mochila e a blusa, o alfa deixara a sala para marchar até o segundo andar onde ficava o seu quarto. A primeira coisa que fizera fora pegar uma bolsa esportiva grande e enfiar algumas peças de roupas nela. As primeiras que via, as mais necessárias.
Estaria fazendo aquilo mesmo?
Escolhendo sair da família ao invés de ficar nela?
Seria bem melhor se eles apenas aceitassem aquela relação. Que o ômega seria o seu parceiro para o resto da vida. Tudo seria mantido em paz, todos felizes seguindo suas vidas. Mas não, eles insistiam em mutilar cada pedaço de felicidade que Milles tinha.
Queriam tirar o vôlei.
Seu futuro.
E agora Nicolas.
Não permitiria isso.
— Milles, por favor....
— Vá embora.
— Eu sei que está bravo comigo...
— Bravo? — Ria Milles virando-se para a irmã parada na porta. — Sabe o que é mais irônico? Você fez coisas piores, e eles pouco se importaram. Foi você quem fez essa bagunça toda, mas no final sou eu quem se ferra.
Tornando a pegar suas coisas para colocar na bolsa, Milles percebia Sadie se aproximar o olhando toda tristonha. Como sempre fazia. Dessa vez ele não se deixaria abalar por aquela chantagem emocional.
— Eu já recebi o meu castigo, apenas obedeci a eles. Se você fizesse o mesmo não estaria nesse tipo de situação.
— Estou nessa situação por culpa sua. — Rosnava ele fechando a bolsa. — Eu disse pra ficar na tua. Pra desencanar do Gabriel, pra seguir tua vida na boa. Mas não, quis criar confusão. Parabéns Sadie, graças ao seu egoísmo estou saindo da família.
— Eu só fiz isso pelo bem das pessoas, por que ninguém entende isso?
— Porque você também não entende as pessoas. — Murmurava Milles fitando a bolsa. — Desce do seu maldito trono e olhe para as pessoas como iguais, e então você vai perceber que o planeta não gira em torno do seu umbigo.
As lágrimas rolavam pelo rosto da garota quando ela abraçara o braço do irmão mais velho.
— Por favor, você também não, Milles. E-Eu posso dar um jeito. É só admitir que aquele maldito te seduziu...
Milles cobrira a boca da irmã, com os olhos vidrados sobre os dela e sua presença alfa tão ameaçadora quanto antes.
— Aquele maldito se chama Nicolas, e ele é o meu ômega. Minha alma gêmea. Ele não me seduziu, fui eu quem correu atrás dele até que admitisse gostar de mim. Nunca mais fale dele, entendido?
Dando as costas para a garota, o alfa fora até sua escrivaninha pegar seus documentos e enfiá-los no bolso da calça. A garota piscava aturdida, permanecendo no encalço do mais velho.
— Como poderia você gostar dele? Não faz o menor sentido, Milles!
— Enquanto você fica pensando no seu mundinho, a vida tá acontecendo, Sadie. Meu cheiro fedia quando eu ficava puto por você falar mal do cara que to afim na minha frente?
Parando de chorar a garota arregalava os olhos assemelhando as informações. Lembrara-se de todas as vezes que entrava no quarto do seu irmão e sentia o cheiro forte de alfa, e os olhares furiosos que ele lançara para ela quando falava mal de Nicolas.
Principalmente do primeiro dia das eliminatórias quando fora procurar Gabriel para almoçarem juntos. Milles estava sentado observando o ômega dormir. Gritara consigo dizendo que era ele quem cuidava do seu capitão e não o assistente.
Balançando a cabeça sem desejar acreditar naquilo, Sadie continuava a chorar.
— Foi por causa da mordida. Você se sente assim por causa da mordida. Naquela vez, no ginásio, em que almoçamos juntos... Você estava sob influência da mordida, não é?
Abrindo um sorriso largo, Milles virou-se para a irmã e negou com a cabeça.
— Ele ainda não tinha me mordido.
Passando por ela para sair do quarto, Sadie virou-se agarrando a cintura do irmão desesperadamente. Voltara a chorar, presa ao seu último fio de esperança.
— Por favor, Milles! Não vá, você é meu irmão...
— Me solta, Sadie.
— Não! Eu não quero que você vá embora também... Por favor, Milles...
Olhando-a por cima do ombro, Milles tivera de ter força para obrigar Sadie a soltá-lo e assim poder sair do quarto, ouvindo ao longo do corredor a garota chorar aos prantos. Doía, e muito, ver a garotinha com quem crescera chorar daquela maneira. Entretanto, havia outra pessoa em sua vida que também pedia pela sua proteção e carinho. Diferente da garota, aquela outra pessoa só podia contar consigo.
Passando pela sala Milles apressou os passos sem olhar para trás, no entanto seu pai tentara usar a presença alfa mais uma vez.
— Não terá oportunidades por aqui. Se você passar por aquela porta, terá de lidar com as consequências. É sua última chance, Milles.
Respirando fundo, Milles olhava para os muros que cercavam sua casa. Tivera bons momentos ali já que fora onde vivenciara a melhor fase de sua vida até então. Mas o que recheavam suas memórias era a lembrança de um certo ômega serelepe que escalava aquele muro liso sem nenhum problema, e invadia o seu quarto para ficarem juntos.
O mesmo ômega que em meio a uma confusão generalizada, se declarara para ele na frente de todos sem medo algum. E ainda desafiara qualquer um que tivesse coragem de ir contra ele, tendo ninguém o respondendo.
Aquele cara... Como ele tinha coragem.
Lembrava-se de suas costas mais cedo, do quanto ele parecia pequeno demais para tanta coragem.
Abrindo um sorriso largo, o alfa olhara para os pais.
— Boa sorte para tentar me impedir.
Fora de cabeça erguida com o manto da coragem que Milles passara pelos portões da casa dos Mckenzie, deparando-se com Jake encostado no carro de braços cruzados olhando em sua direção com um sorriso nos lábios. Estaria ele o esperando? Provavelmente teria escutado os gritos de seu pai e o choro de Sadie.
Milles respirara fundo ao se aproximar do primo. Recebera um aperto em seu ombro, que parecia transmitir muito mais do que palavras seriam capazes.
— O que estava fazendo aqui? Pensei que estivesse cuidando da cooperativa.
— Meu radar de primo apitou enlouquecidamente. — Dizia Jake depois de entrar no carro e sair daquela rua, dirigindo pela cidade pequena. Quando parara no semáforo, ele afagara os cabelos do loiro. — Eu disse que seria o seu suporte quando precisasse.
Naquele entardecer Jake saíra com Milles para conversarem e espairecer. Até pararam em uma cafeteria onde pudessem esclarecer melhor a situação. Milles então se dava conta de que ninguém melhor que seu primo poderia entendê-lo.
Fora uma boa conversa, mas Milles ainda não tinha caído a ficha sobre o ocorrido. Tudo acontecera tão rápido, que mal sabia como lidar com a situação. Estava pensativo tentando imaginar o que poderia fazer em seguida. Sua cabeça latejava e o ombro formigava irritantemente.
Quando anoitecera, Jake recebera uma ligação do seu amigo que estava na cooperativa. Milles o acalmara dizendo que iria pra casa de Nicolas, recusando o convite da carona. Queria apenas caminhar pela noite e espairecer.
Um sentimento estranho crescia dentro dele. A briga repassava em sua mente incessantemente causando enjoos. O tapa em sua cara se tornara uma lembrança amarga. As palavras espinhosas transformavam a sua decisão em uma certeza.
Ainda assim...
Ainda assim...
Milles fora até um parque se sentar no balanço onde pudesse colocar os pensamentos em ordem.
Estava agindo como um maluco?
Tinha mesmo escolhido ficar com Nicolas e negado a sua família?
Havia feito a mesma escolha que o seu primo, um ano atrás?
Encarando o céu estrelado, Milles sentia a cabeça latejar cada vez mais. Que cansaço. Existia alguma chance de tudo aquilo ser um sonho? Fantasias criadas por sua cabeça, com medo de perder suas felicidades?
Quem diria.
Após uma hora sentado no parque só pensando, Milles levantara finalmente seguindo o caminho que decorara nos últimos meses. Olhando para baixo ainda tentando desvendar aquele sentimento tão estranho, o alfa queria vomitar. Queria que cada pedrinha que chutava na rua fossem seus problemas, para serem jogados para o mais longe de si.
Sentindo o cheiro adocicado, o alfa erguia a cabeça percebendo estar na rua da casa de Nicolas. Teria caminhado até aquele lugar sem ao menos perceber. Nicolas e a mãe estavam parados no portão olhando em sua direção, como se o esperassem há muito tempo.
Mesmo estando distantes um do outro, Milles sentira estar olhando diretamente nos olhos escuros daquele baixinho.
Pela primeira vez via Nicolas correr em sua direção. Correr pela rua e pular em seus braços o abraçando apertado permitindo ser segurado pelo alfa. Milles aspirava aquele cheiro que lhe trouxera calmaria. Sentia aquela mão fina agarrar em seus cabelos e os braços o apertarem no pescoço.
Segurando firmemente o corpo do ômega e se inclinando para descansar a cabeça em seu ombro, Milles ouvira aquela voz sonolenta o saudar.
— Estou com você e nada vai nos separar.
Foram as palavras mais sinceras que escutara naquela noite. Não poderia dizer que eram mais sinceras do dia, pois haviam outras que ganhavam o seu coração. No entanto foram elas que abriram as portas para que lágrimas escorressem no rosto do alfa, finalmente o libertando da angustia que sentia.
Ali mesmo, Milles Mckenzie chorava nos braços do seu ômega.