V se levantou imediatamente, Orenmir já pronta para a luta, Gabriel se levantava lentamente por conta do impacto, Garren caminhava calmamente ao redor do tecelão, alheio a presença do outro rapaz.
—Gabriel?—Chamou, o outro apenas o encarou ainda de joelhos.—Não interfira.
Avançou. Sua lâmina se violentamente chocando com as lâminas de braço do outro cruzadas à frente do peito, nem ao menos tremendo, surpresa lhe tomou a face, aquele mesmo golpe havia quebrado aquelas lâminas como se fossem porcelana.
—Sabia que as lâminas louva-deus crescem mais resistentes e afiadas depois de serem destruídas? Quebrei as minhas várias vezes durante meu treinamento.—Um sorriso ladino cresceu em seus lábios.—Deixei que as quebrasse uma vez, um erro que não cometerei de novo!
Jogou os braços para o lado em um movimento brusco, fazendo a guarda do outro se abrir, levantou sua lâmina e avançou, a retraiu no último segundo e girou sobre a perna, acertando um chute na ferida, V caiu ao chão sentindo a dor se espalhar pelo seu corpo.
—Está mais lento, não diga que uma dorzinha é o suficiente pra te derrubar?
Caminhou brevemente em sua direção até ouvir uma voz vinda de trás:
—Não é.
Orenmir cortara o louva-deus ao meio.
Mas não era Garren, era água.
Uma lâmina pressionou contra seu pescoço.
—Não sou o mesmo homem que você enfrentou antes, incrível como algumas semanas de treino são o suficiente pra me igualar a você.
O semblante surpreso de vê se suavizou por um momento.
—É porque não são.
Agarrou o braço dele, usando o peso do próprio corpo para lançar o outro de costas no chão, dessa vez era o verdadeiro.
V gemeu com a dor, pressionando o ferimento enquanto caminhava para longe de um Garren que se levantava com dificuldades, se aproximou de Orenmir cravado na terra e puxou sua arma, a seda na lâmina havia rasgado um pouco, dando visão do metal.
Garren foi quem avançou dessa vez, calmo. As lâminas voltaram a se chocar, iniciando um duelo de espadas de igual para igual, um ritmo acelerado e frenético onde nenhum dos lado cederia tão cedo, Garren desviava de um golpe e Orenmir cortava o tronco de uma árvore, colocando-a abaixo com facilidade, em resposta tentava uma sequência rápida com suas lâminas, sendo defendidas pela espada soberana dos tecelões.
Após vários golpes trocados, Garren tentava empalar V diretamente, o mesmo desviando e prendendo seu braço o enganchando com o seu, desferiu um soco em seu rosto com a mão livre e quando ia para o próximo, teve sua mão segurada pela de Garren.
Os dentes cerraram, usavam toda a força que seus corpos esguios lhes permitiam, raiva estava presente em ambos, não ódio, apenas a raiva que vinha da rivalidade que construíram, Garren cedeu, o punho do outro avançou, o mesmo se esquivou vendo-o acertar a árvore atrás de si, agarrou o pescoço do outro, apertava enquanto um rosnado furioso escapava de seus lábios, viu o outro fazer o mesmo, ambos tentando enforcar um ao outro.
Exausto, V atravessou a mão de Garren, desferindo uma cabeçada em seu rosto, a máscara de madeira quebrando seu nariz, V o soltou e mesmo caiu de joelhos.
Gabriel caminhou por eles calmamente, já vestindo seu traje.
—Já terminaram?
Garren aceitou a mão que V o estendia e se levantou, ajeitando seu nariz quebrado com um estalo de ossos, um gemido de dor escapando de seus lábios.
—Podia ter pegado leve na cabeçada.
—Esperava que seu teste fosse leve?
—Falando nisso, como eu fui?—V e Gabriel trocaram um rápido olhar.
—Você passou, seu treino foi curto mas já foi o suficiente pra se igualar a nós.—Estendeu-lhe um anel dourado.—Bem vindo aos Wraiths, não nos decepcione.
—"Apunhalar pelas costas."—Gabriel se pronunciou.
—"E expor o corpo na luz."—Garren completou.
—Ótimo, fez seu dever de casa.—Respondeu Gabriel, irônico.
—Ele estará mesmo lá?—V perguntou.
—Não tenho dúvidas, agora podemos ir, por favor?—Gabriel levantava o capuz e a máscara, enquanto Garren se cobria com o capuz do manto.
Os três saltam para longe, correndo pelos telhados, atravessando a cidade como espectros a noite.
—E aquele garoto?—Garren perguntava a V enquanto corriam.
—Ele vai estar lá, se concentre em chegarmos a tempo.—V balançava pela teia junto aos outros dois.
Quem estava fora naquela noite, juraria pelo resto da vida ter visto três vultos correndo pelos telhados e desaparecerem na noite.
...
Na mansão dos Valentine, Héctor lia um livro sobre a lareira sentado confortavelmente em sua poltrona, as páginas descrevendo uma lenda antiga, na China, havia uma imperatriz conhecida por seu pulso firme, sua sagacidade, e sua beleza sem igual, tinha um dos exércitos mais poderosos do mundo, sendo nomeado de "Legião de Jade".
Extremamente leais e devotos a sua imperatriz, eram invictos em anos de intermináveis de batalha, porém a poderosa governante do império de jade queria mais que guerreiros, dentre os soldados e até mesmo fora do exército, haviam alguns que se destacavam entre as tropas, esses eram chamados de espectros.
Durante o dia, agiam como pessoas comuns, mas quando a noite caía se tornavam os maiores predadores do reino, assassinos de elite chamados de Espectros, sob o comando da imperatriz, eles tramaram, iludiram e mataram até alcançarem a maior feito da história do reino: Assassinaram os sete reis que conspiraram para destronar sua soberana e tomar o poder para si.
Após a vitória, o pequeno grupo de assassinos perceberam a tirania de sua imperatriz, e como um último ato como Espectros, assassinaram a imperatriz que sorriu ao perceber que possivelmente havia criado o maior grupo de assassinos da história. Seu corpo foi encontrado com um sorriso sereno, exposto à luz do sol, uma última e bela visão de uma linda e mortal soberana.
—Quem te vê tão calmo assim nem conseguiria imaginar que está tramando contra um império inteiro, qual livro está lendo agora?—Rose caminhava afrouxando a gravata sobre a camisa, seu marido, sorrindo cheio de malícia, mostrou-lhe a capa do livro, que apresentava a imagem da bela imperatriz em sua túnica dourada, nomeando os Espectros com uma espada.—Seu favorito, hein? Você e ela são parecidos, sabia?
A enorme mulher se inclinou sobre ele, usando os braços da poltrona como apoio, tomando seus lábios avidamente, os olhos bem abertos em um olhar felino, selvagem. Tomou controle dos próprios desejos, recuando antes que perdesse a compostura, a vontade era grande, mas ter outro filho agora seria uma má ideia.
Héctor sorriu travesso, lambeu os lábios ainda sentindo o gosto dos de sua esposa, mordeu levemente o lábio inferior, alguns botões da camisa propositalmente abertos, deixando a linha do pescoço exposta assim como um pequeno vislumbre de seu peitoral, sem seu exoesqueleto. Rose reconsiderou seu alto-controle naquela hora. Maldito! Aquele homem a enlouquecia!
Suas mãos se moveram quase por si mesmas, erguendo o homem pelo colarinho da camisa e o jogando no sofá de couro ali próximo, a expressão ladina não vacilando nem ao menos um segundo, ele a conhecia tão bem, depois de algumas semanas sem ter relações com sua esposa, Héctor decidiu tomar medidas drásticas.
Esperou o dia em que Rose teria que ficar até tarde em uma das reuniões em que ela tanto se estressava, no caso hoje, passou o dia todo cuidando de tudo, mandou moverem o sofá para mais perto da poltrona, ouvira sua esposa "brincar" se não controlasse a língua ela "o foderia naquele sofá até que aprendesse boas maneiras." E viu a oportunidade, até mandou deixarem uma garrafa de vinho no carro dela, por isso sentiu o gosto do álcool nos próprios lábios, mandou os empregados para casa mais cedo, não porque era generoso, mas porque queria poupá-los dos gritos e gemidos que iriam ecoar por toda a casa.
"Coincidentemente", Julie havia saído com as amigas e só voltava tarde, e por "algum motivo", havia esquecido de abotoar a camisa e vestir seu exoesqueleto, como o rei era descuidado!
Sentiu as mãos firmes da esposa o cercarem de cada lado, o olhar faminto dela passando cada canto do seu corpo com um brilho intenso de desejo, continuou ali pelo o que pareceu uma eternidade, olhando com aqueles olhos sedentos, por onde começar? Qual parte dele ela atacaria primeiro? Tantas possibilidades.
A pele do pescoço, tão frágil e tão vulnerável e tão... Convidativa... Poderia beijar e marcar aquela área desprotegida a vontade, e assim o faria, se não fosse alguém tocando a maldita campainha no andar de baixo.
Héctor bufou de raiva. Maldição! Quem quer que fosse o empata foda, ele mandaria cortarem-lhe a cabeça por atrapalhar seus planos!
Abriu a porta e foi empurrado brutalmente pelo visitante, cabelos brancos como a neve se estendendo até a lombar e a pele escura como a casca de um carvalho jovem, os olhos dourados deslumbrantes, seu exoesqueleto branco e tinha quatro braços assim como ele, enormes asas de mariposa marrons revestidas com pelos brancos e macios em sua base, fechadas sobre seu corpo como uma túnica, um uniforme preto bastante elegante com botões dourados e uma rosa de enfeite, calças negras também.
Marquês, conselheiro do rei Sulivan, dos Silludin, e parte do Conselho Conspirador. Um alvo.
—Onde ele está?—A raiva era nítida em seu rosto.
—Do que está falando?
—O desgraçado do seu filho! Eu sei que você sabe onde ele está!
—Eu achei que já soubesse que ele está morto, Wallace se certificou disso.
O rosto dele queimou, um tapa certeiro atravessado em seu rosto, estava surpreso com tamanha ousadia daquele mero conselheiro ousar colocar as mãos em um rei, mas não perdeu a compostura, não poderia, ou toda a missão seria arruinada. Continuou com o semblante neutro até mesmo quando Marquês o puxou pelas golas da camisa para ficar cara-a-cara com ele.
—Não seja cínico Tece-Runas de merda! O meu filho sumiu, encontraram os guardas mortos, teia pra todo lado!—Em seu ataque de raiva o Sulludino empurrou Héctor de volta ao chão, aquela humilhação estava sendo demais, Marquês seria incinerado se não controlasse a língua.—Você vai falar ou eu terei que te torturar pra ele aparecer?
Um brilho intenso tomou conta das de Marquês, a famosa magia solar, o único motivo pelos Silludin serem tão temidos, mas Héctor sabia que aquele show de luzes seria inútil quando V colocasse suas mãos nele.
Em uma ironia do destino, seu celular tocou, vendo o nome do filho na tela, sua expressão se suavizou.
—Filho? Que susto você deu no papai, onde você está.
Mas a voz do outro lado não era de Matteo.
—Seu filho não pode falar agora, eu tomaria cuidado com o que fala a partir de agora, ou ele não vai falar nunca mais.
—Seu desgraçado, eu disse que deveríamos ter te matado no mesmo dia em que nasceu, mas ninguém me escuta!
—E eu que sou o monstro? Quantas crianças você matou pra se manter no poder?
—Deixa eu adivinhar, isso é a sua vingança contra mim? Se você matar ele eu vou até o inferno pra acabar com você!
—Matar? Não. Sou muito mais criativo que isso. Eu tenho muitos meios de fazer alguém desaparecer, e posso te garantir que você viveria com a culpa de ter salvado ele, que um dia ele vai esquecer que sequer teve um pai e você vai se corroer por dentro sabendo que ele ainda estará vivo, sofrendo em algum lugar bem longe de você.
—Você me chama de monstro mas tem coragem de me dizer algo assim?
—"Ele é o filho do inimigo, sua própria existência é uma afronta a nós." Foi o que você falou quando votou a favor de tirar minha vida.
—O único jeito de matar um monstro é se tornando um.
—Concordo plenamente. Mas odiaria ter que condenar uma pessoa inocente, então vamos resolver isso, só eu e você.
Um riso de escárnio escapa dos lábios do Silludino.
—Ou...—Ele se vira para Héctor.—Eu poderia matar o seu querido pai, sua mãe também está aqui, talvez eu até vá atrás da sua irmã, bonita como ela é, seria um ótimo brinquedinho, ainda mais quando eu contar pra ela que eu acabei com a família que tanto ama, elas ficam muito melhores com lágrimas rolando pelo rosto.
Uma risada anasalada veio antes da resposta.
—Tenta a sorte, seu doente. Todo mundo sabe que a magia solar é a única coisa especial sobre vocês Silludinos, e mesmo que o meu pai não tenha a magia Tecelã ele ainda é da minha espécie, e se eu me lembro bem, nem mesmo todos os insecter juntos foram o bastante pra nos conter, nós já nascemos sendo máquinas de matar, além do mais, minha mãe é uma ex-campeã invicta de UFC, você quer transformar a minha irmã em um brinquedo? Pois saiba que no momento que levantar a mão contra minha família, é a minha mãe quem vai te usar de saco de pancada.
O Silludino se calou, ele sabia que cada palavra de V era verdade, ele estava encurralado, mas não cairia, seu orgulho não o permitiria, ele teria a cabeça dele nem que ele mesmo tivesse que fazer o trabalho sujo.
—Vou considerar seu silêncio como resposta, venha até o porto, no píer mais afastado, pode trazer uma arma se quiser, não fará diferença, e eu nem preciso dizer o que vai acontecer se você chamar a polícia ou algum dos seus colegas do conselho, não é? Você tem até meia noite de amanhã pra aparecer.
O olhar de desprezo que Marquês direcionou a Héctor quando desligou poderia matar alguém.
—Prepare o enterro do seu filho, Tece-Runas, mas tenha certeza de que será um caixão fechado.
Assim que Marquês virou suas costas, Héctor sorriu de orelha a orelha, seus espectros estavam apenas começando.
No dia seguinte, bem sedo, o Silludino já esperava na ponta do píer, observando o vasto mar a sua frente, o maldito Tece-Runas provavelmente planejava joga-lo na água, ele não teria a oportunidade.
—Então você não amarelou igual aos outros covardes do conselho, hã?
V estava alí, atrás dele, Matteo logo ao seu lado, com os braços amarrados. Quase uma cópia jovial do pai, os cabelos prateados possuíam mechas loiras, um presente da falecida mãe, duas tranças desciam pelo seu rosto lhe dando um visual andrógeno, os olhos dourados e a pele escura vinham do pai, as asas eram um manto beje belíssimo sobre seu corpo, o exoesqueleto negro era herança do avô.
—Deixe ele ir, e aí eu vou executar você.
—Pai, não! Eles vão te matar!
—Não se preocupe Matteo, tudo vai ficar bem, venha aqui, eu vou te desamarrar pra você ir embora daqui.
—Não façam nenhuma gracinha, se não, meus companheiros vão matar os dois.
V o soltou, o garoto em um misto de desespero e ansiedade correu na direção do pai, recebendo um abraço do mesmo.
—Calma, tudo vai ficar bem.
O velho homem, afagando os cabelos do jovem que soluçava e escondia o rosto em seu peito, não percebeu que suas mãos não estavam realmente amarradas, e que o menino sorrateiramente sacou seu ferrão, saltando pra fora de uma abertura escondida na palma de sua mão. Uma arma natural dos Silludinos, uma lâmina em formato de cone, entalhada como uma broca.
—Obrigado por vir me salvar pai...
—Sempre pode contar comigo, meu filho.
—E obrigado...—Matteo olhou seu pai nos olhos, sua expressão não era de tristeza, era um olhar frio, cortante.—Por baixar a guarda.
Marquês não teve tempo para reagir, o ferrão já estava perfurando seu coração quando finalmente processa as palavras do filho, seu sangue manchando seu uniforme e a mão do garoto e escorrendo como uma cascata de sua boca, não havia nenhuma emoção naquele olhar. Matteo o puxou para seu ombro, falando com uma voz totalmente desconhecida pelo pai.
—Lembra da noite em que a minha mãe morreu? Você achou que não havia mais ninguém naquela casa, mas tinha, eu assisti tudo.
O garoto remexeu a lâmina no peito do seu próprio pai, ouvindo aquele homem asqueroso engasgando no próprio sangue, ele nem ao menos se importava se o velho estaria vivo ou não para lhe ouvir.
—Eu assisti você a estrangulando, assisti quando você chutou a barriga grávida dela e esmagou o crânio daquela que você sempre jurou amar contra a parede.
O homem já havia perdido o brilho da vida no olhar, mesmo assim Matteo sabia que ele ainda podia ouvir.
—O jeito que você chorou no funeral dela e fez um discurso sobre o quanto a amava quase me fez vomitar, quanto mais os anos foram passando, mas parecido com você eu fui ficando, mas como pode ver, eu acabei me tornando ainda melhor.—Matteo o segurou sua nuca, o trazendo mais próximo ainda ouvindo sua respiração fraca, quase cessando.
—Mesmo sem a sua presença física lá, espero que me assista orgulhoso, me assista enquanto eu choro e discurso sobre o quanto eu te amava, mesmo sabendo que assim que ninguém estiver olhando, eu vou dançar na sua cova, eu espero que se orgulhe de ter me tornado o monstro que você tanto queria me tornar.
Matteo retraiu o ferrão e se afastou, o cadáver caindo no mar, manchando o azul de vermelho, Marquês assistiu simplesmente dar as costas, assim como o mesmo havia dado as costas ao corpo de sua esposa anos atrás.
Aquilo que ele sentiu, aquele sentimento triste em seu coração perfurado... O que era aquilo?
Ninguém nunca saberia, mas naquele momento, Marquês von Held sentiu, pela primeira vez, culpa, arrependimento, ao ver o seu próprio sangue manchando a pele do rosto do seu filho, vendo a única coisa de valor que ainda o restava corrompida, assim como ele, o entristecia profundamente, e antes de seu corpo desaparecer no oceano, uma lágrima escorreu pelo seu rosto, desaparecendo nas águas gélidas.
Matteo marchou dali limpando o rosto, as roupas e o ferrão.
—"Apunhalar pelas costas."—V disse quando Matteo passou, se quer olhando em seu rosto.
—"E expor o corpo na luz."