Capítulo 3
Entendendo uma nova vida
_ Sabe, aqui as coisas são parecidas, mas funcionam um pouco diferentes. O amor que seu pai sente por sua mãe, jamais há de ser apagado ou esquecido, pois é fundamental que nos amemos uns aos outros. Quando ele estava encarnado, sentia por ela os amores carnais, comuns a todos os seres humanos. E ele foi fiel a esse amor, e ainda o é. O que mudou agora é que ele encontrou o amor espiritual, que é o que nos completa. Hoje nos unimos e nos transformamos num único ser, ou seja, somos completos agora. Fomos divididos para que assim conhecêssemos o vazio e nos voltássemos ao Mestre Divino buscando-o sempre e nos amando uns aos outros, tentando assim ocupar o vazio e cumprir o mandamento, e agora nos reencontramos para juntos progredirmos. Se não houver pendências em nenhuma das partes. E amo muito sua mãe, que o presenteou com amor devoto, puro e verdadeiro.
_ Como podem ser parte um do outro e suas idades se desencontram de forma gritante? Tu és muito mais nova que papai! Deve ter uns dezenove anos...
_ Isso porque quando fomos divididos, seguimos rumos diferentes e nossos erros fizeram com que nós nos encarnássemos e desencarnássemos em épocas diferentes. Estou aqui há mais de quarenta anos esperando por seu pai. Somos o que vocês chamam de alma-gêmea.
Alexa falava com tanto carinho e ternura que acabou por me contagiar... Como uma pessoa de bem podia nos consolar tanto só com suas palavras... Era tudo tão mágico...
Papai se aproximou e tomando a mão de Alexa ajudou-a a se levantar.
_ Temos de ir agora.
_ Voltará para me visitar?
_ Claro, querida.
_ Papai, antes de irem gostaria que me esclarecessem algumas duvidas, se não for atrasá-lo, é claro.
_ Que duvidas?
_ Estamos no paraíso?
_ Não. Ainda não. Estamos num lugar onde chamamos de Colônia.
_ E estamos aqui, porque não fomos bastante bons pára estar no paraíso?
_ Não. Estamos aqui para revermos nossos entes queridos e se necessário voltamos ao lar terreno, para nos redimirmos de nossos erros. É também importante que nos encontramos com nossa alma-gêmea aqui para podermos passar de fase. Existem três etapas para que possamos nos encontrar com o Salvador; uma delas é a que vivemos no lar terreno, somente uma vida de amor e humildade podem nos tirar das idas e vindas ao lar terreno. Porque primeiro precisamos aprender a nos perdoar, para podermos amar uns aos outros. É a fase mais difícil, pois não se sai dela fácil. Sempre há algo que se deve. O credor, cedo ou tarde, paga aquele a que se deve. A segunda fase é aqui., onde receberá uma tarefa, somente se não for devedor e ter que retornar ao lar terreno. Essa tarefa, que tu mesmo vai escolher, deve ser cumprida com amor e boa vontade, e assim que se reencontrar com sua alma-
gêmea poderá então chegar à terceira fase, que é o tão esperado altar onde fica o trono de Deus. E para chegarmos lá perfeitos e sem vazios, é necessário, sua outra metade.
_ Entendi... Mas, então... Porque ainda está aqui?
_ Porque pretendo rever todos meus entes queridos pela última vez, pois assim que passar dessa fase, jamais nos reencontraremos. Apesar de sermos almas afins e estarmos ligados por toda a eternidade.
_ Sabe, sei que posso parecer egoísta, mas depois que descobri minha nova situação, desejei que todos eles viessem para cá, onde não sentiriam mais dor e nem morreriam para deixar aflitos aqueles que os rodeiam...
_ Engana-se, minha filha. Aqui há dor e solidão. Há duvidas e rejeição.
_ E as pessoas que aqui estão não ficam ansiosas para mudar de fase?
_ Na verdade não. Algumas pensam que por terem a eternidade pela frente,não se preocupam... Alguns até retornam ao lar terreno sem necessidade.
_ Parece que não as aprova.
_ Não mesmo. Estão aqui para seguirem em frente e prepararem-se para um novo tempo de adoração ao Deus vivo.
_ E eu que não acreditava em reencarnação...
_ Existe um ciclo que deve ser cumprido. Se esse ciclo foi interrompido por algo que fez e não por vontade do Mestre Divino, terá que voltar para terminar esse ciclo. Por isso é que muitas vezes uma criança nasce com câncer e com poucos anos morre, é só um exemplo, para abreviar o máximo seu tempo na terra e cumprir seu ciclo interrompido, lembrando que essa é uma escolha do próprio encarnado que depois de conhecer a colônia não quer ficar longe daqui por muito tempo.
_ Quer dizer que ainda posso retornar?
_ Reencarnada?
_ E de que outra forma seria?
_ Em espírito. Pois acredito que não retornará mais ao lar terreno reencarnada.
_ Posso ir lá em espírito?
_ Com certeza.
_ E quando será isso?
_ Só seu médico poderá lhe dizer.
_ Mas pai, já estou bem...
_ Sinto muito Liza, mas só seu médico poderá julgar se seu estado psicológico, está preparado para rever as pessoas que ama sem sofrer um abalo emocional que poderia comprometer sua evolução.
_ Entendo...- Resmunguei desanimada.
_ Estou recebendo apelos de nossos irmãos... Preciso ir imediatamente! Assim que for possível, voltarei.- Ele disse e saiu acompanhado por Alexa, que se despediu com um sorriso.
Nunca me senti tão sozinha como naquele momento. Será que era assim que passaria a eternidade? Sempre sozinha? Dependendo de Gabriel para fazer qualquer coisa?
Ouvi uma batida na porta e logo depois Gabriel entrou.
_ Como vai minha paciente predileta?
Se não tivesse ouvido a conversa dele com Antonio, realmente acreditaria que realmente estava preocupado. Peguei o travesseiro e joguei nele com raiva. Ele me olhou confuso, enquanto recolhia o travesseiro do chão.
_ Saia daqui! Não quero te ver! Seu cretino! Falso!
_ Hei... Espera ai! O que foi que fiz?
_ Não passa de um hipócrita!
_ Porque diz isso?
_ E por que você finge que se preocupa comigo?
_ Não finjo. Não me preocupo mesmo.
Essas palavras foram como um banho de água fria na minha ira.
_ Então porque perguntou...
_ Como estava? É de praxe. Porque me importaria? Não significa nada para mim.
Uma lágrima rolou em meu rosto, apesar de meu esforço para não demonstrar o quanto àquelas palavras me aniquilaram, me deixaram totalmente fragilizada. Não devia tê-lo atacado. Sabia que ele me tratava assim por me considerar uma criança mimada. Via-me como uma criança e como tal, não levava a sério minhas palavras. Ao pensar nisso, fiquei mais furiosa ainda.
_ O que quer aqui?
_ Ver minha paciente.
_ Não preciso de ti!
_ Sei disso.
_ Então porque insiste?
_ Por obrigação. Acredite, gosto tanto como tu, de estar aqui.
_ Você é um rato! Não sei como conseguiu estar aqui...
Ele deu uma gargalhada, mas não me deixei enganar. Vi que em seus olhos brilhavam o frio brilho da raiva.
_ E por enquanto não saberá minha cara. entretanto, uma coisa garanto-lhe; meus passos foram mais honestos que o seus!
_ O que quer dizer com isso! Não tem o direito de me julgar! Não sabe nada da minha vida!
_ Ai é que se engana. Sei tudo. Cada passo seu, em cada encarnação que vivera.
_ Como pode saber se nem eu mesmo sei.
Ele ficou confuso, era como se tivesse dito algo sem pensar, e sua resposta veio insegura.
_ Como seu médico, preciso saber tudo que lhe ocorreu, para poder lhe dar o tratamento ideal.
Não me convenceu, mas deixei para lá. Com Gabriel não adiantava discutir.
_Acabei de tomar uma decisão. Já que a visita lhe deixou muito mal humorada, vou proibi-las.
_ Não se atreveria! Não pode fazer isso!
_ Já está decidido e não se fala mais nisso.
Fiquei furiosa, mas guardei a resposta na língua, pois querendo ou não, ele me tinha nas mãos. Se continuasse batendo de frente com ele, sairia perdendo.
_ Será que o "doutor" sabe como estão meus parentes?
_ Eles... Estão bem.
_ Estão bem? Quer saber? Acho que não sabe de nada e esta blefando! Além de hipócrita é um grande mentiroso!- Gritei, a despeito de ter tomado a decisão de não mais me alterar. Arrependi quase que imediatamente, então resolvi mudar de assunto.
_ Por quantas encarnações passei?
_ Quatro.- Ele respondeu de má vontade, mas não desisti.
_ E o que fiz, nessas outras vidas?
_ Não posso lhe dizer.
_ Do que vale então, se não pode nem esclarecer minhas duvidas.
_ Olha aqui mocinha! Ainda não é hora! Pare de me encher com suas perguntas inúteis!
_ Não são vocês mesmos que dizem que tempo aqui é uma questão insignificante?
_ Como essa mulher é chata! Tente entender que se não estiver em boa forma emocional, qualquer contato com passado e com entes queridos poderá ser sua ruína!
_ Algum dia me dirá?
_ Não será preciso. Quando estiver pronta se lembrará.
_ E quando estarei pronta?
_ Quando eu decidir.
_ Porque tem que ser você?- Já sabia a resposta, mas estava decidida a irritá-lo. Era mais forte que eu.
_ Porque sou seu médico.
_ É assim com todos seus pacientes?
_ Assim como?
_ Bruto.
_ Cada um tem o tratamento que merece.
_ Sei... Tem muitos pacientes?
_ Alguns.
_ Gostaria de trocar idéias com eles sobre nosso médico...
_ Não terá essa oportunidade.
_ Gabriel...
_ Sim?
_ Tenho uma alma-gêmea?
_ Todos temos. Mas não pense nisso agora.
_ Vou conhecê-lo?
_ Ainda não sei.- Ele disse pensativo fitando um ponto qualquer, mas sabia que não via nada, viajava em suas divagações.
_ Sabe quem é ele?
_ Ele quem?
_ Minha alma-gêmea.
_ Sei. Vamos mudar de assunto?
_ Há Gabriel! Diga-me, por favor...
Ele deu um suspiro profundo e foi até a janela.
_ Não posso.
_ Porque?
_ Ele ainda não esta preparado, para que você saiba.
_ Ele está aqui, não esta?
_ Sim. Está.
_ Como sabe que ele ainda não está preparado para que eu saiba?
_ Não sei.
_ Pode acontecer de confundi-lo?
Ele se virou e me encarou.
_ Confundi-lo?
_ É. Me apaixonar por alguém daqui e achar que encontrei minha alma-gêmea?
_ Claro. Isso sempre acontece aqui. As pessoas se apaixonam como se ainda estivessem encarnadas... Mas, como paixão é um sentimento carnal, logo se cansam, e se desiludem de seus parceiros.
_ Já aconteceu contigo?
_ Não.
_ Já encontrou sua alma-gêmea?
_ Já.
_ E onde ela está agora?
Ele fitou-me frio.
_ Pergunta demais! Ele disse irritado, mas li nos olhos dele que sentia o mesmo que eu. Havia uma energia que nos unia, nos atraia. Uma atração poderosa. Ele sabia. Há! Que inveja da mulher que tivera a sorte de ser a alma-gêmea dele...
_ Sente atração por outras garotas?
_ Depende...
_ Do que?
_ O que quer ouvir Liza?- Ele disse se aproximando, e se aproximou perigosamente perto demais. Pensei que ia me beijar, mas apenas falou, deixando seu hálito quente em meu pescoço, me dando arrepios de prazer._ Quer ouvir de meus lábios o que lê em meus olhos? Que tenho vontade de te arrancar dessa cama e fazer amor, toda vez que me olha com fúria e desejo? Que não suporto vê-la me comer com os olhos e não poder tocá-la?
_ Gabriel! Não é nada disso... Quer dizer...
_ Não tente negar o que é claro como o dia! Ainda me terá, mas não será como pensa.- Ele disse e saiu apressado do quarto.
Levantei e fui até a janela observar a paisagem perfeita e as pessoas que completavam aquele cenário. Pareciam tão certos naquele lugar... Como se fizessem parte um do outro. Tive vontade de sair, para conversar com as pessoas, respirar em outro ambiente... Mas junto com essa vontade, veio outra muito mais forte; a de me deitar novamente. Estava cansada. Voltei para cama e dormi. Quando acordei tinha uma bandeja no criado mudo. Estava quentinha como se tivesse sido colocada ali há pouco. Comi tudo, desistindo de tentar comparar o sabor daquela iguaria com algo que conhecia. Daí por diante, foi sempre assim. Não via mais ninguém, nem mesmo Gabriel. Sempre dormia e quando acordava tinha uma bandeja no criado mudo. Não conseguia me dar conta nem do tanto de dias passados assim. Comecei a sentir tédio. Entretanto, um dia, acordei e havia vários livros junto com a bandeja. Fiquei feliz em ter outra coisa que fazer que não fosse comer, escovar dentes e tomar banho. Uma força maior me impedia de passar por aquela porta...Por várias vezes, pensei nisso, mas um amedrontado incompreensivo medo impedia-me. Assim, ficava ali. Presa ao quarto por um medo irracional. Nem se quer me aventurava a tentar abrir a porta.
Os dias se passavam e já havia lido todos os livros. Todos falavam sobre do que eu estava vivendo. Foi muito importante para mim. Um deles falava da importância de entender as adversidades da vida. Achei lindo o trecho que dizia assim;
"Todo aquele que aqui passar , passará sozinho".
Ninguém pode (nem deve tentar),
Caminhar pelos mesmos passos de outro.
Pois cada um tem seu próprio caminho.
Porque somos únicos e insubstituíveis.
Ninguém, jamais será igual a alguém."
Já não sentia tanto cansaço como antes e nem tanto sono. Essa fase havia passado e agora passava grande parte do tempo, olhando pela janela. Mas logo voltei para a cama.
A porta se abriu devagar e meu coração deu um salto dentro do peito. Era ele, Gabriel! Odiei-me ao constatar que foi dele que senti mais falta. Sentia uma alegria cruel ao revê-lo. Ele estava com a bandeja na mão e fechava a porta devagar com cuidado para não fazer barulho. Ainda não havia notado que estava acordada e me ressenti ao descobrir que ele esperava me encontrar dormindo. Quando finalmente se virou e percebeu que estava acordada abriu o mais lindo dos sorrisos. Colocou a bandeja no criado mudo e sentou-se na cama.
_ Como vai minha adorável paciente?- Perguntou irônico. Já tinha até me esquecido do calor de suas palavras.
_ Deve saber melhor que eu. Não és tu, o médico aqui?
_ Que lingüinha afiada...
_ Estou aprendendo contigo...
_ Humm. Acho que minha paciente acordou de mau humor.
_ Mau humor?! – Levantei indignada da cama.- Você me deixa dias e dias aqui, sozinha, sem ter o que fazer, com quem conversar e vem me falar de mau humor?
_ Oras. Sempre que chegava, estava dormindo, então preferia não incomodá-la. Ainda mais que dá claros sinais de que não gosta da minha pessoa. E posso lhe garantir que é muito mais sociável quando esta dormindo e caladinha.
_ Como é cínico! E papai, Alexa, Geisa e Antonio? Porque não vieram me visitar?
_ Há sim! Eles vieram, mas disse que precisava de um tempo sozinha e proibi visitas.
Passei a mão pelo cabelo num gesto nervoso.
_ Não faria isso.
_ Faria não. Fiz.
_ Não passa de um cafajeste.
_Acha mesmo? Nem todo mundo pensa assim.
Fiquei indignada e calcei os chinelos.
_ Quero sair desse quarto.
Ele se levantou e foi até a janela.
_ Volte para a cama e fique quietinha,como uma boa menina.
_ Não me trate como criança! Não quero ficar presa nesse lugar! Quero sair, caminhar, respirar ar puro...
_ Poderá fazer tudo isso que está dizendo, mas ainda não. Esta muito frágil...
Ignorando-o, abri a porta e quando ia iniciar o passo para sair, não encontrei o chão. Olhei para baixo e tudo que vi, foi um imenso buraco negro, que parecia não ter fundo. Fiquei com tontura e senti que ia cair, mas Gabriel foi mais rápido e segurou-me, evitando minha queda. Seu toque me fez despertar e olhando novamente para o chão, não vi nada além de um tapete. Soltei-me de seus braços e com muito cuidado removi o tapete. Para minha surpresa, não havia ali nada, além do chão. Imediatamente soube que aquilo fora algum feitiço daquele anjo do mal.
_ Foi você, não foi?
A sua resposta, foi o nascer de um sorriso diabólico. Quando vi que se divertia as minhas custas, não me contive e passei a lhe socar, no que ele tentava me conter segurando em meus pulsos.
_ O que pensa que esta fazendo comigo, seu cretino?
Ele continuava me olhando com um brilho frio no olhar. Uma satisfação oculta e malévola. Seus lábios se moveram num sorriso sardônico. Parecia adorar me ver desesperada.
_ Você está louca... Ele disse rindo.
_ Louca?!-Tirei forças,nem sei de onde e me soltei de suas mãos._ Me tranca aqui dentro, proíbe minhas visitas, me isola de tudo e de todos, me trata com total desprezo e eu que sou a louca aqui?
_ Não é uma prisioneira minha, mas de seus anseios, de seus medos e sentimentos. Será que não viu a fraqueza que teve quando tentou sair do quarto? Ainda quer me culpar, por um crime que não cometi?
_ Mas o que está dizendo? Devo mesmo estar louca, ou as mensagens que chegam ao meu cérebro estão escapando pelo caminho e chegando incompletas... Ou então esta querendo me deixar louca. Nada do que venha a sentir poderá me aprisionar, como diz, pois sou muito razoável.
_ Liza, tem que entender seus próprios sentimentos para poder dominá-los. Aqui, esta protegida, lá fora, não. Lá, ouvirá lamentos que poderão prejudicar sua evolução, se não tiver absoluto controle sobre suas emoções.
_ Não seja cínico, Gabriel! Tudo que deseja é me atormentar.
Ele revirou os olhos demonstrando impaciência.
_ Quer saber? Tenho uma paciente que tem muitas bonecas. Pedirei para que lhe ceda alguma.
_ Não se atreva a me tratar como uma criança!
_ Então não haja como uma!
Não agüentei e perdendo o controle avancei sobre ele e puxei seu cabelo. Na tentativa de fazer com que o soltasse, me jogou na cama, mas foi inútil, pois, segurando-o pelos cabelos, levei-o comigo. Ele caiu por cima de mim e acabamos ficando numa posição, muito comprometedora com seus lábios a poucos centímetros dos meus.
_ Me solte...
_ Não.
Então aconteceu o que desejava há muito tempo... Ele me beijou. Era um beijo tão diferente... Esse dizia tantas coisas... Transmitia tantos sentimentos... Nunca havia sentindo tanto num beijo.
As mãos que antes puxavam os cabelos, respondendo a uma ordem oculta pelo desejo, ficaram carinhosas... Nunca vou me esquecer desse dia. Pois foi nele que descobri que amava Gabriel, apesar da tristeza, pois segundo suas próprias palavras, o amor que ocupa o vazio dos corações, era somente aquele vivido entre almas-gêmea. Portanto, estava numa batalha perdida.
Em um segundo a situação mudou e ele ficou mais agressivo, seus lábios, antes gentis, ficaram possessíveis e exigentes. Senti o membro dele se enrijecer e recebi como a uma caricia. Fez-me desejá-lo. Suas mãos entraram por dentro da camisa e encontrou meus seios, segurando-os como se fossem uns troféus. E num instante, estava nua em seus braços, mas quando tentei abrir seu zíper, ele se afastou. Levantou-se e só então me dei conta de que estava vestido e eu nua. Senti vergonha e me cobri com o lençol, antes de olhá-lo indagadora e frustrada pela promessa de amor que não se consumou.
Ele sorriu. Aquele sorriso maldoso. Foi até a janela, ficando de costas para mim.
_Se vista.
Não pude impedir as lágrimas que brotaram, de rolar por meu rosto. Sem dizer uma palavra, me vesti e sentei na cama, mas as lágrimas não cessavam.
Ele se virou e ficou me observando, com o desprezo estampado em sua expressão e em seus olhos frios e indiferentes ao meu sofrimento. Não consegui sustentar aquele olhar de desprezo.
_ Porque?- Perguntei com amargura.
_ Não quis me soltar. Foi a única maneira que encontrei...
_ Nossa! Como é persuasivo. Estou impressionada com sua determinação.- Disse enxugando as lágrimas.
_ É muito teimosa, mas não vou dizer que sinto muito. Não seria verdade. Além do mais, teve um lado bom, agora sei que arma usar contra você.
_ Que arma?
_ Seu corpo.
Fiquei vermelha.
_ Por que precisa de uma arma contra mim? Por acaso represento algum perigo?
_ Simples. Porque quero destruí-la.
_ O que fiz, para que me odiasse tanto assim?
_ Na hora certa saberá.
_ E acha que pode usar meu corpo? Jamais deixarei que me toque novamente.
_ Há, vai deixar sim. Implorará.
_ Nunca!
_ Eternamente.
Só então me lembrei da conversa que ouvi entre ele e Antonio. Era de mim que falavam. Mas, por mais que tentasse, não conseguia me lembrar com exatidão o que fora dito naquele dia. Só tinha certeza que era algo relacionado com o passado... Precisava descobrir do que se tratava, mas não conseguiria nada com Gabriel se o abordasse diretamente. Teria que ir devagar... Num impulso, resolvi começar uma conversa, já colocando em prática, a idéia de descobrir tudo que pudesse sobre ele.
_ Por quantas encarnações passei? Você já disse,mas não me recordo.
Gabriel me olhou confuso e surpreso com a súbita mudança de assunto e humor.
_ Quatro.
_ Nossa! E você?
Ele abaixou a cabeça e apertou as mãos. Seus olhos escureceram. Descobri tarde demais que havia entrada em território perigoso. Nem esperava mais por uma reposta, quando o ouvi;
_ Três...
_ Uma a menos que eu...- Ainda tentava entender até onde aquilo podia ter alguma coisa a ver comigo.
_ É.
_ E, não quis mais voltar?
_ Não.
_ Porque?
_ Por opção minha!- Pelo tom de sua resposta não foi difícil perceber que aquela conversa começava a irritá-lo, mas não podia parar agora.
_ Há quanto tempo está aqui?
_ Aqui na Colônia não tenho certeza, mas desencarnado já há mais de 100 anos.
_ Se não estava aqui, onde estava então?
_ Vaguei por muitos anos no umbral.
_ Já ouvi falar sobre esse lugar, mas não sei ao certo o que quer dizer.
_ É o lugar para onde vão os espíritos que não conseguem se libertar de um certo ciclo vicioso, aqueles cuja sua consciência não os permitem a se perdoar, os suicidas e alguns outros casos... Mas os mais ocorrentes, são esses de que lhe falei.
_ E em qual categoria se encaixava?
Dessa vez não respondeu e seu silêncio era mais perturbador que sua língua ferina. Resolvi tentar por outro caminho.
_ Com quantos anos desencarnou pela última vez? – Ele me fitou,parecia aliviado por não insistir na pergunta anterior.
_ Uns 26 anos.
_ E era assim mesmo?
_ Assim como?
_ Com essa aparência?
_ Não.
_ Como assim? Pode-se escolher a forma que quiser aqui?
_ Não. Existe aqui, um lugar que chamamos de Casa dos Espelhos. Lá se pode ver como era a aparência que o Mestre Divino escolheu para nós e foi perdida pelos pecados.
_ Então era assim que devias ser desde o principio?
_ Isso.
_ E porque papai não mudou de forma?
_ Porque se assim fizesse, não seria reconhecido pelos entes queridos dessa geração.
_ Mas você mudou! Não quer ser reconhecido por seus entes queridos?
_ Não tenho mais "entes queridos", e a pessoa que... Na verdade não desejava ter mais vínculos com nada que me lembrasse do passado.
_ Nossa! Essa é uma atitude radical. Porque? O que houve?
Dessa vez ele não respondeu e se virou como a dar por encerrada aquela conversa. Sabia que devia parar por ali mas havia outra coisa que precisava saber;
_ Como conseguiu fazer aquele buraco negro?
Ele riu como se lembrasse de algo muito engraçado.
_ Criei uma ilusão hipnótica no seu cérebro.
_ Porque faz isso? O que ganha?
_ Porque não quero que saia do quarto sem minha autorização.
_ Não pode me impedir.
_ Não posso? –Perguntou levantando a sombracelha desafiante.
_ Não devia pelo menos.
_ Tem muitas coisas a aprender, e uma delas é que esta na minha mão.- Ele disse erguendo a mão.
_ Devia se envergonhar... O que sua outra metade diz disso?
_ Do que esta falando?
_ Falo de sua alma-gêmea. Não tem ciúmes de ti?
_ Que motivos teria para isso?
_ Me trancar aqui nesse quarto, já seria motivo suficiente e levando em conta onde estamos, pode até descobrir o que houve entre nós.
_ E o que exatamente aconteceu entre nós?
_ Oras... Nós quase...
_ Não seja tola! O que aconteceu aqui, não significou nada para mim, além do mais, não deveria julgar as pessoas por si própria. Ciúme é um sentimento medíocre. Digno de pessoas como tu.
_ Você não é humano Gabriel. Fere os sentimentos das pessoas como se não passassem de lixo. Melhor do que ninguém, devia saber que não esta acima dos outros...
_ Apesar de não estar acima de todos, aqui sou eu quem esta no comando. E se lhe servir de consolo, ainda será minha, mas onde e quando eu quiser.
_ Fala como se fosse uma condenação. Já pensou que posso gostar?
_ Há! Vai gostar sim. Mas me encarregarei de se desprezar por se deixar escravizar pelos prazeres do corpo.
_ Pensei que éramos apenas espíritos...
_ Claro que temos um corpo! Não de carne, mas temos.
_ E o que ganhará me fazendo sofrer?
_ Tem a eternidade para descobrir...
_ Não te entendo...
_ Nem é para entender, por enquanto.
Nesse momento Geisa entrou no quarto tempestivamente. Trazia uma rosa amarela nas mãos, mas quando nos viu escondeu as mãos para traz e ficou nos olhando constrangida.
_ Desculpe Gabriel... Sei que proibiu visitas, mas só queria deixar uma flor para Liza...-Ela disse virando-se para sair.
_ Não vá ainda...- Pedi.
Ela se voltou para Gabriel e o fitou esperando seu consentimento.
_ Vou deixá-las a sós, devem ter muito que conversar.- Ele disse já saindo.
_ Senta aqui.- Convidei apontando um lado na cama. Ela se aproximou e sentou, mas permanecia muda.
_ Essa flor é para mim?- Perguntei ansiosa por iniciar uma conversa.
_ É sim.- Disse me entregando.- Já estive aqui antes, mas sempre a encontrava dormindo. Resolvi lhe trazer uma flor para lhe transmitir conforto, não tinha intenção de incomodá-la.
_ Jamais me incomodou, querida.
_ Não?! Ela arregalou os olhinhos cinzentos. Parecia surpresa e não muito certa da verdade da minha afirmação.
_ Claro que não. As pessoas que amamos não são comparadas com incômodos, jamais!
_ Há...
_ O que te fez pensar assim?
_ Bem... Gabriel proibiu visitas... Nos disse que tu estavas passando por uma fase muito difícil e era melhor que não a incomodássemos.
_ Quem me incomoda de verdade é ele.
_ Porque?
_ Ele me trata mal. É como se me odiasse.
_ Compreendo... Ainda está muito confusa e é normal, mas saiba que se engana, Gabriel não a odeia.
_ Não sabe o que diz, Geisa.
_ Sei sim. Ele não pode te odiar pois é um homem muito bom.
_ Gabriel? Pode ser tudo, menos, bom.
_ Não devia falar assim...
Respirei fundo. Mas o que estava fazendo? Aquilo não eram coisas para se dizer a uma criança. Foi um erro pensar. Pelo jeito dela me fitar, logo entendi que havia lido meus pensamentos.
_ Liza, aqui não existem esses preconceitos. Só sou uma criança porque quis que me reconhecesse, além do mais, aqui, nós "crianças" sabemos e conversamos sobre tudo.
_ Perdoe minha ignorância...
_ Não tem problema, você não tem culpa. Afinal ninguém morre sabendo.
Rimos juntas.
_ Nossa! Estou com tanta saudade de casa... Queria ver nossa família novamente, saber como estão...
_ Eles estão bem... É uma pena não poder levá-la para poder visitá-los...
_ Como assim? Então é verdade? Pode ir até eles?
_ Posso sim! E os vejo sempre, mas não pensam mais em mim... Só mamãe.
_ Não é verdade, Geisa. Todos te amam.
_ Não. Não amam. Nem se lembram de mim. Sei, porque posso ler seus pensamentos.
Que argumento poderia usar contra aquela verdade? Não havia justificativa valida. Eu mesmo, quando no lar terreno, só me lembrava dela ocasionalmente.
_ E porque não pode me levar?
_ A primeira vez terá que ir com Gabriel.
_ Porque?
_ Só ele pode dizer quando estará preparada para um reencontro. Sabia que pode ser muito perigoso?
Fechei os olhos com força para me acalmar e impedir que as lágrimas rolassem.
_ Vamos combinar uma coisa? Toda vez que for visitar nossa família, depois passe aqui para me contar das novidades e como estão as coisas por lá?
_ Porque diz isso? Logo, logo poderá visitá-los também.
_ Não vou. Gabriel nunca vai permitir isso.
_ Porque não?
_ Porque ele não gosta de mim! Será que ninguém vê isso?
_ Ele não tem nada contra nada você, Liza.
_ Gostaria de acreditar nisso. Geisa, quando encontrar Antonio, peça-o para vir me visitar, preciso , que se possível, substitua Gabriel.
_ Não sabe o que esta dizendo...
_ Claro que sei! Ele esta me levando a loucura, com essa tortura de deixar-me trancada aqui!
_ Mas... Esta aqui há apenas uma semana!
_ Uma semana? Só?
_ É.
_ Mas cada minuto que passo aqui, parece uma eternidade... Sinto como se ele quisesse me destruir, me mantendo e obrigando a um confinamento. Acredito que quer se vingar por algo que lhe fiz no passado, mas não é justo! Como posso pagar por um erro que nem sei se cometi ou porque fui levada a cometer? Como saber se ele não está julgando levando em conta apenas o seu ponto de vista?
_ Acho que precisa mesmo de um tempo sozinha, afinal Gabriel, não pode lhe fazer mal.
_ Como pode afirmar isso com tanta certeza?
_ Bem... Ele é... Antes de tudo, um homem muito bom, sempre cuidou de seus pacientes com muita dedicação e... Bem, o resto terá que descobri sozinha.
_ Está bem. Por algum motivo que desconheço, já percebi que jamais vai acreditar em mim. Mas quero que guarde; ele nunca permitirá que saia daqui e muito menos que veja meus familiares. Estou condenada a ficar eternamente confinada nesse quarto. Ele me tem nas mãos, e o único remédio é mesmo me conformar com o inevitável...Há Geisa... Entendo que foi o destino que me trouxe aqui e assumo que não fui exatamente um modelo de virtudes, não merecia mesmo ter paz.
_ Mas a guerra esta partindo de ti mesmo! E o pior é que esta lutando contra nada. Porque não tenta parar de travar essa luta dentro de você e se liberte? Pare de ter medo e deixe seus sentimentos fluírem! Pare de olhar para os lados procurando negativismo em tudo ao seu redor! Essa atitude é prejudicial. Procure a verdade e então encontrará sua tão desejada paz... Mas desde já lamento muito seu modo de pensar.
_ Está bem, Geisa. Prometo que vou tentar.
_ Faça isso. Mas não se esqueça que nunca estará sozinha, se não quiser... Agora, preciso ir, já demorei tempo demais.- Ela me deu um beijo na testa e se retirou.
Apesar de suas palavras finais, me senti muito sozinha. Aconcheguei debaixo do cobertor. Estava vivendo um pesadelo. Parecia que gritava, gritava por socorro e ninguém me ouvia. Era um pesadelo tão real, que era impossível de ser ignorado. Como poderia me sentir segura, se ninguém acreditava em minhas palavras? Fechei os olhos desejando dormir e nunca mais acordar. Não queria enfrentar os olhos frios de Gabriel e nem a dura realidade de já não poder contar com as pessoas que amava. E foram com esses pensamentos sombrios que adormeci profundamente.
Acordei me sentindo estranhamente bem demais. Estava descansada. Sentia-me com as energias fortalecidas. Pronta para encarar qualquer obstáculo. Olhei em volta e tudo estava em ordem. Então porque aquela sensação que algo havia mudado? Fui tomar banho, mas ao contrário das outras vezes, não senti vontade de voltar para a cama. Troquei de roupa, tomei o suco que estava na bandeja e arrumei a cama.
Duas coisas me deixaram perplexa; Primeira, era que não me lembrava de ter posto a camisola que acabei de trocar... Senti que meu rosto queimava ao imaginar que, Gabriel podia ter me trocado enquanto dormia. E a segunda; As roupas de cama também foram trocadas... Devia ter tido um sono muito pesado, para não perceber as duas trocas. O que me levou a outra pergunta; Por quanto tempo dormi?
Alguém mexeu na porta e fiquei paralisada com a perspectiva de ver Gabriel. Nem entendi o porque da apreensão, já que havia o visto poucas horas antes.
Ele entrou e parou ao me ver de pé. Parecia cansado. Seus olhos estavam fundos e apresentavam olheiras.
Alguma coisa no jeito dele me chamou a atenção quando ele me fitava... Era como se não me visse há muito tempo, como se estivesse... Saudoso e até... Feliz! Os trajes também não eram mais os mesmos. Não usava a roupa branca. Estava de jeans e camiseta.
_ Vejo que a bela adormecida resolveu acordar!- Ele disse abrindo um sorriso que iluminou o ambiente.