À noite, enquanto o grupo 731 ainda chegaria a Nebraska City, quase uma hora antes, Ashe e Hill alcançaram a Base de Denver, encontrando-se com novos agentes, os quais os levariam ao Aeroporto Internacional de Denver e visitariam a Instalação. Não houve muita conversa, pois além de manterem a discrição sobre o Espécime 9, não estavam dispostos a puxar assuntos maçantes com os agentes dali. Ashe visitaria pela primeira vez a Instalação da S.E.T.H.; mas não sabia se as quase vinte horas de voo e com uma troca de aeroporto valeriam a pena. Cruzaria meio planeta para conversar com as pessoas mais importantes daquele século.
— Precisamos mesmo ir pessoalmente? Eles já falaram com você antes, por que não ligam de novo? — perguntava a Hill, descendo do veículo.
— Eles querem dar uma missão para nós dois, e pelo visto, deve ser coisa séria...
— Eu imagino; mas vamos ficar quase um dia viajando, eu nunca fiz isso, nunca saí do nosso país... — Olhando para a Alpha, agente Hill lhe falou:
— Ashley, relaxa. O pior está para vir quando encontrarmos os Ômega, garanto.
Apenas ficando em silêncio, seguiu o Alpha e compraram as passagens. O primeiro voo seria de Denver até o Aeroporto Internacional do Cairo, recebendo auxílio na Sede daquele continente, e com um avião particular, fariam uma segunda viagem até Abu Dhabi, cidade da grande Instalação. O primeiro voo global de Ashe seria um dos mais corridos, enchendo a cabeça da garota com preocupações bobas. Enquanto esperavam o horário para partirem, Hill lhe pediu para que o acordasse quando desse o chamado de seus embarques, deixando-a sentada ao lado, praticamente sozinha. Pegando seu celular, ligou para Monviso.
— Atende, atende... — suplicava enquanto o som da discagem ecoava em seu ouvido.
— Ashley? Boa noite!
— Boa noite, doutora, como 'tá?
— Estou bem, que surpresa sua ligação — falou. — Em que posso ajudá-la? — Novamente passando os dedos em seus cabelos caídos nos ombros, enrolando os fios louros, perguntou à cientista Alpha sobre o número de Osmundson, apenas para ver se estavam indo bem.
— O número da Lisbon? Claro, eu te passo sim; mas certeza que é só para saber da missão?...
— Óbvio que sim, por que mais seria?
— Ora, a Fundação proíbe que Anomalias tenham contatos pessoais; mas você e o 8-4 ficaram bem íntimos antes dele entrar no grupo de reconhecimento, né?
— Doutora, não é isso, eu prometo que... — Ashe foi interrompida por Monviso.
— Ashley, você está na Fundação há tanto tempo tentando ter algum amigo. Não estou achando ruim, pelo contrário, fico feliz por se dar bem com ele. Quando ele esteve na minha sala, mostrou ser educado, atencioso e muito esperto. É uma boa companhia p'ra você. — Ao falar isso, a garota ficou tão corada que quase não falou mais nada.
— Er, muito... muito obrigada, Letizia!
— Vocês são jovens, aproveitem esse momento conturbado para criarem laços. Você sabe que quanto mais confiáveis as Anomalias, melhor o trabalho em conjunto será. Posso falar o número dela? — Dizendo que sim, guardou o número na cabeça para ligar depois, porque o jeito que Letizia falara deixou a entender que ela estava gostando de Reid. Não que fosse mentira; mas envergonhou-a. Após vinte minutos, acordou Hill e partiram para o voo de quinze horas ao Egito.
Christina, por sua vez, ouvira ao lado da irmã diversas informações que a HÓRUS tinha: possíveis outras identidades dos agentes Ômega; a influência das treze famílias na política internacional; Bases com grande arsenal bélico não revelado; depoimentos mal documentados de vítimas envolvidas em Crises e Incidentes, os quais ocorreram misteriosamente; segredos dos dois Contatos... Tudo que fosse necessário àquele momento foi compartilhado por Duffner. "Incidentes" são pequenos problemas causados por Espécimes, como perturbação de propriedades, agressões mínimas, atentados violentos e tudo que envolvesse poucas vítimas. "Crises" são grandes problemas causados por Espécimes, como, por exemplo, o Zafiel que atacara perto de Stanford, com demasiadas vítimas, destruição de patrimônio público, alto risco de danos...
Em se tratando dos Contatos, apenas dois ocorreram em toda a humanidade. O Primeiro Contato ocorrera há bilhões de anos e pouco se sabe sobre e ele. Diversas teorias conspiracionistas surgem, bendizer, toda semana sobre o famigerado Primeiro Contato; mas seu mistério é tão grande quanto os próprios Ômega. O que se sabe sobre o Primeiro Contato é que algo, de origem misteriosa, caiu na Terra quando esta ainda era uma bola de magma, com explosões sem precedentes e uma atmosfera densa e quente. Com o passar do tempo, o planeta esfriou-se, formando uma camada rochosa que separou a crosta do manto terrestre. Próximo à Fossa de Tonga, a oeste do Círculo de Fogo do Pacífico, raios ômicos intensos são emitidos, provando a existência da mais temida e enigmática Anomalia: o Espécime 0, criador das Anomalias.
O Segundo Contato ocorrera logo na virada do século vinte para o vinte e um. Anormalmente, um surto maciço de Zafiéis surgiram por quase oito meses diretos. Um verdadeiro massacre sem histórico para a humanidade. De junho de 2000 até janeiro de 2001, mais de nove mil Anomalias dessa classe apareceram mundialmente, matando mais de novecentos e cinquenta milhões de pessoas pelo globo. Em frente à Instalação, doze blocos de concreto de dezenas de metros de altura e de centenas de metros de comprimento mostram os nomes, na frente e no verso dos blocos, das vítimas do Segundo Contato. Conhecido como "Memorial da Dúzia", a humanidade não se esqueceria de quase um bilhão de mortos tão facilmente; mas num cenário promissor como aquele, mais de sete bilhões e trezentos milhões de pessoas já foram alcançadas no planeta, provando que os seres humanos ainda prevalecem e erguem-se à pressão das Anomalias de duas décadas atrás.
Krystal, como de costume, ficava em silêncio; mas reconhecia alguns Incidentes que Duffner citara. Enchendo a cabeça de Christina com as principais informações que havia, demonstrava-lhe a confiança necessária, até mesmo depois de defendê-la no beco horas antes. Com diversas passagens subterrâneas, saíram numa lanchonete a três ruas da loja de eletrônicos. Mesmo que tivessem visto Krystal entrar com sua irmã na loja, assim que Christina saíra sozinha, os três agentes não poderiam associá-la a nada se foram atrás da repórter, colocando-a numa posição positiva, mesmo que também estivesse na mira da Fundação. Com o anoitecer, mal o perceberam com as luzes da "Grande Maçã", apelido da cidade nova-iorquina, o breu da noite. Ambas passariam a noite no apartamento de seus pais antes de partirem para a investigação proposta por Duffner. Pegando o mesmo táxi, entraram no prédio e subiram até o andar deles, surpreendendo-os.
— Querida, olha quem voltou! — falou John após atender quem batia à porta.
— A Chris voltou?
— Melhor ainda!
Saindo da cozinha e indo até a entrada, alegrou-se em vê-las novamente.
— Agora eu entendi o estresse, precisavam ficar a sós, nós dois deveríamos ter dado um tempinho p'ra vocês duas se resolverem. Nos desculpem.
— Tudo bem, mãe, não se preocupe com... — Não a deixando terminar a frase, agarrou suas duas filhas e abraçou-as.
— Venham logo, entrem!
— Sabiam que a pizzaria perto da praça ainda existe? Vocês adoravam a de calabresa quando eram menores, vou ligar p'ra eles! — completou John.
Aquela emoção tocava o coração de Krystal, e com Christina sabendo que ela queria mudar, deu um tapinha nas costas dela enquanto entravam, como se dissesse "é hora de falar algo". Respirando fundo, apertou suas mãos na camiseta que usava, tomou um fôlego e respondeu-lhes:
— Eu... Eu gosto dessa pizza... — "'Tá... Ela tentou", pensou Chris.
Enquanto esperavam a comida, Margaret ajeitou a mesa, estendendo uma toalha florida igual a seu turbante, pondo os pratos e os talheres e enfileirando os copos ao lado destes. Com uma jarra cheia de limonada caseira, ligando a TV e assistindo ao jornal noturno, a família Birch esperaria seu jantar chegar. John, puxando assunto, perguntou às filhas:
— O que fizeram enquanto estavam fora? Vocês parecem diferentes do almoço.
— Nós... conversamos e nos resolvemos, só fomos dar uma volta juntas — falou, disfarçando.
— Ah... Há quanto tempo nós não nos sentamos na sala? Que saudade...
Vendo que sua mãe estava confortável com toda a família reunida na sala de estar, Christina se lembrou da infância de apartamento que tivera. Ela e Krystal brincando sob a mesinha de canto; as noites frias com a coberta enrolando as duas no sofá bege; os bolos que faziam com sua mãe depois da escola... O motivo de Krystal ter-se afastado ainda incomodava Chris no fundo do coração a cada lembrança que recordara; mas ignorou àquela noite. O bem-estar de Margaret superava o remorso inacabado dela. Após meia hora, as duas pizzas de calabresa chegaram, com o entregador batendo à porta.
— Eu pego, onde está o dinheiro?
— Perto do espelho da cozinha — respondeu John à Christina.
Pegando-o, ao abrir a porta, assustou-se ao ver o rosto de Fred, seu cinegrafista, segurando as pizzas. Engolindo seca a saliva e apertando a maçaneta da porta com toda a força que havia, suas pupilas encaravam o rosto do entregador, o qual enxergava a mesma face de quem morreu sobre a Jaula Ábdita do Colorado.
— Moça?... Moça?... — Ouvia Christina, uma voz vindo de longe. Piscando rapidamente suas pálpebras, seus olhos sumiram com a alucinação que tivera.
— Perdão... Quanto ficou? — Afinal, o choque daquele ataque enfim estava afetando-a, já que ela sabia que nem havia restado corpo com aquela explosão e a família dele não seria avisada da morte. Apenas ela sabia daquilo.
Encimando as pizzas na mesa, o massacre em Haswell retornava à sua memória, com os enormes tentáculos de fogo acentuando o caos e o desespero que sentiu. Se tudo que Duffner lhe contara fosse realmente verdade, quantos outros "Freds" não existiram? Quantos cônjuges, pais e filhos nunca souberam do paradeiro de pessoas que amavam ao ponto de ficarem sem respostas? Dentro de si, pensava no quão relutante isso lhe parecia ser. Seu pensamento mórbido foi abruptamente interrompido com o gelo da limonada batendo no fundo do copo de John.
— O que está esperando, Chris? Vamos comer!
Comeram todos reunidos em torno da mesa de madeira, desfrutando os laços familiares que há tanto tempo não compartilhavam. Dava para ver nos olhos de Krystal o quanto ela sentia falta daquilo. O jeito alegre e espontâneo de seu pai, o sorriso meigo e a ternura característica de sua mãe e o jeito atencioso de sua irmã tocavam seus sentimentos mais profundos. "Quero ficar aqui...", ela pensava consigo. Após o jantar, Christina falou a seus pais que estavam cansadas, indo ao quarto de hóspedes para descansarem da tarde extremamente teórica que ambas tiveram.
Enquanto Christina trocava de roupas, pondo uma calça moletom e uma camiseta branca da faculdade toda amassada, Krystal, com um short de pijama avermelhado e uma camisa também branca, escovava seus dentes no banheiro daquele quarto. Deitada na cama olhando as mensagens em seu celular, vários programas televisionados queriam entrevistá-la depois do que ocorrera no Congresso da ONU; mas ignorou todas elas.
— Você confia tanto assim na HÓRUS?
— Eu... confio nele... — dizia pausadamente com a escova na boca. Limpando a boca espumada de pasta, falou mais do que o normal sobre o que achava da HÓRUS. — Eles querem a verdade... e eu quero lutar por isso também...
— Ok, vou ver o que consigo com a minha chefe, talvez ela me deixe buscar mais informações depois do que fiz, espero... Krys, você vai ficar bem na Fundação?
— Eu sou Alpha...
— Verdade, eu esqueci disso. Como você conseguiu uma patente tão alta?
Deitando na cama, virou para o lado oposto que Christina estava, apenas dizendo antes de dormir:
— Eu... consegui uma coisa que queriam há... muito tempo...
Desde pequena, talvez uma das coisas que mais diferenciava as duas irmãs era o fato de Krystal lidar bem com a tecnologia. Enquanto soldados da S.E.T.H. davam tiros, ela, por outro lado, dava "Enter". O passado que ela formou dentro da Fundação impregnava sua mente. A tímida garota nunca imaginou que poderia fazer coisas de que se arrependesse tanto, e, querendo consertar o que fizera, secretamente contatou a HÓRUS. No começo, ambos desconfiavam das intenções do outro; mas quando Duffner a contatou, decidiram derrubar a S.E.T.H. Não muito tempo depois, Christina se envolveria no escândalo na ONU e colocá-la-ia na mira dos Ômega pelo vínculo parentesco, escondendo suas reais intenções, mesmo que brevemente. Ambas tentaram descansar após a tarde cheia de informações.
Depois de todo o ocorrido maldito em Nebraska City, no hotel alugado pelo grupo 731, agente Osmundson não conseguia dormir, mesmo depois dalgumas horas desde o Incidente, deixando Reid sozinho no quarto e saindo para ficar na varanda. Há muito tempo não fumava; mas, com uma pressão em si própria de que poderia ter sido mais útil, sua boca se enchia de fumaças, baforando-as a cada tragada que dava. Seu cabelo ruivo com raízes castanhas estava solto, caindo no rosto dela e balançando a favor do vento.
Os quartos alugados por Lisbon ficavam no segundo andar do modesto hotel. Olhando para os veículos estacionados logo abaixo, a ponta brilhante do cigarro soltava algumas cinzas no chão. O vento frio e cortante balançava os fios que escondiam seu rosto. Estar sozinha naquele momento, mesmo que deprimente, era reconfortante à Lambda. Eram mais de duas horas da madrugada, e, assim que acabou de fumar, jogou a bituca e trancou a porta logo após entrar. Reid parecia dormir, estando na cama mais longe da porta. Aproveitando que não dormiria logo, foi tomar um banho o quanto antes. Nada melhor do que o silêncio mesclado com a gélida água escorrendo pelo corpo para tentar olvidar os problemas da mente. Lisbon ficou quase dez minutos no chuveiro, alternando entre ficar parada com a cabeça inclinada para a água gotejada passar por seu corpo e esfregar o sabão perto do pescoço e da cintura. Suas mãos levemente tiravam a ansiedade, quase que uma terapia para a agente que, há tempos, não se culpava de suas atitudes.
Desligando o chuveiro, saiu do banheiro com a toalha em volta do corpo. O clima álgido do quarto não a incomodava, pois o banho que tomara estava tão frio quanto. Largando a toalha na cama, pôs-se a vestir com uma roupa mais confortável; mas usou a mesma calça legging escura, apenas trocando a camisa. Quando abotoou seu sutiã, percebeu que Reid estava acordado, perguntando ao garoto:
— Não está dormindo por quê?...
— Eu não consigo dormir por muito tempo; mas acabo tendo que dormir várias vezes por dia, como se fossem cochilos. — Erguendo-se, sentou-se de lado para conversar mais com Lisbon, evitando olhá-la diretamente, envergonhado com seu corpo seminu. — Acordei quando você ligou o chuveiro; mas preferi ficar quieto.
— Deve ser sua contrarregra.
— Eu... não havia pensado nisso... Mal se fala, quer dizer, mal se falava na faculdade sobre as contrarregras, sou muito leigo nisso, mesmo sendo uma Anomalia.
— Não é culpa sua. Não tem como saber qual a contrarregra de um Espécime só estudando, precisa ter diversos testes e longos estudos para entender alguns. Basicamente, contrarregras são "observações dos efeitos passivos" — gesticulou com as mãos, olhando-o, enquanto se trocava — que uma Anomalia pode ter. Nem todas têm; mas talvez seja seu caso... Mais tarde eu te ajudo com isso.
A breve fala da agente fez com que Reid pensasse que já havia visto algumas contrarregras, mesmo sem perceber. O 2-0-0-9-1 que atacara perto de sua universidade, para usar seu efeito, tinha de explodir seu crânio e estar à beira da morte após usá-lo; o 1-4-9-2 não poderia sair de um metro de distância de Solina; e mesmo que não soubesse sobre o efeito de Ashe, este não formava raios solares no período noturno. Mínimos detalhes, pormenores técnicos e circunstâncias específicas regiam as contrarregras dalguns efeitos passivos; mas algumas Anomalias mal possuem contrarregras. Sendo descoberta há poucos anos, uma área quase que desconhecida assustava até mesmo os próprios Espécimes.
— Solina me contou mais ou menos o que aconteceu lá com você e o garoto. Como 'tá com isso? Se não quiser conversar, tudo bem, eu só estava...
Interrompendo-o, respondeu-lhe:
— Eu sei que você pode não gostar de ser uma Anomalia; mas esse seu efeito... Você pode consertar tudo, Reid! Salvar quem quiser, ter o que desejar, saber e fazer o impensável... Eu cogitei em te contar sobre o que aconteceu e... tentar te matar p'ra você me ajudar a corrigir isso tudo; mas seria egoísmo meu... e eu também não teria coragem de fazer isso com você, muito menos depois do que fez contra a leoa daquela cidade...
Ouvir que a pessoa ao seu lado estaria disposta a matá-lo para excluir o sofrimento que sentira apenas para não carregar o fardo de suas ações assustou Reid. Imaginou o que fariam com ele quando mais pessoas soubessem de sua capacidade; mas no que diz respeito à Lisbon, a agente aceitou suas consequências, mesmo que ainda estivesse incomodada do que ter que envolver Reid nisso.
— Não sei ainda sobre como se sente quando volta no tempo; mas eu te invejo por conseguir fazer isso... — Um breve silêncio tomou o quarto. — Tente descansar, amanhã nós vamos sair cedo da cidade, não quero ficar mais aqui.
Terminando de falar com Reid, não percebeu que seu celular estava sem som, perdendo a caixa postal de Ashe: "Oi, Lisbon, há quanto tempo! Como está indo com a recuperação das Anomalias? O Reid está bem? Quer dizer... Todos estão bem? É a primeira vez que ele está em campo e não faz tanto tempo que ele virou uma Anomalia, sabe? Por isso a preocupação, haha! Só isso mesmo, só passar para falar um 'olá', não nos vemos desde a missão em... Havana? Poxa, faz tempo, hahaha!... Tchau, tchau!".
— Idiota, idiota, idiota... — sussurrava consigo. — Era só falar normal, qual o seu problema? Pareceu forçado, porcaria...
— Vai continuar em prantos ou vai me deixar dormir, Ashley?...
— 'Tá, 'tá, desculpa... — Olhando pela janela no voo, as nuvens escuras eram cortadas pela ponta da asa do avião. Com tanta vergonha, nunca mais ligaria, guardando seu celular e torcendo para que não ouvissem a mensagem dela, especialmente Reid.
O sono não durara muito para Lisbon, pois uma multidão enfurecida achou onde passaram a noite rapidamente. Mal sendo sete horas da manhã, vários simpatizantes das Mariposas berravam frases como "vão para o inferno", ou "morram, esquisitices malditas", e até "se matem, Anomalias imundas", despertando-os da noite que foi mal dormida. Agente Osmundson ligeiramente se trocou, colocando seus sapatos, trocando de blusa, fazendo um rabo de cavalo e pondo sua mochila nas costas. Assim que abriu a porta, Solina estava olhando-os de braços cruzados.
— Que bando de babacas, estão aqui faz uns dez ou quinze minutos, e mais gente vem aos poucos...
— Voltem p'ras suas celas, bestas! — gritou um dos cidadãos, jogando uma pedra no segundo andar.
Quando a pedra chegou perto de Solina, o braço esquerdo do 1-4-9-2 apareceu em seu ombro, como se fosse uma prolongação do corpo da garota. Agarrando a pedra, espontaneamente a arremessou de volta ao homem, de forma tão rápida, que atingiu perto de seu pé, tirando uma lasca do asfalto do pátio. Aquilo assustou as pessoas que protestavam; mas mesmo que os fizesse recuar um pouco, logo se aproximaram novamente, perto do estacionamento do hotel. Em vinte minutos, todos dali se trocaram e desceram as escadas, mantendo distância deles enquanto o dono do hotel os impedia de segui-los. Como Osmundson foi generosa no pagamento da discrição, o dono se sentiu na obrigação de afastar a multidão intrometida.
Homens e mulheres; jovens, adultos e idosos. Todos usavam roupas escuras com o símbolo da Mariposa ou no peito ou nas costas. Alguns ainda usavam máscaras de pano, como Brandon, e até capacetes para cobrirem seus rostos. Placas com insultos eram erguidas depois daquela noite. Ninguém via que capturaram um Espécime possivelmente perigoso, apenas pensavam que explodiram uma loja de comida propositalmente só para "abusar da liberdade" dada a eles. Enxergando apenas por um buraco na fechadura da verdade, eram cínicos quanto aos atos feitos na noite anterior.
Entraram no caminhão, com todos se sentando nos lugares que já estavam acostumados, e prosseguiram a viagem. Entre a cabine e a traseira do caminhão, uma pequena fresta tampada por uma portinhola de ferro separava as duas partes do veículo. Era estreita o suficiente para passar objetos pequenos, como pastas, cartões e munições de armas. Abrindo-a, o rosto de Lisbon era visto só pela lateral, dando ênfase em seus lábios e sua bochecha esquerda, dizendo:
— Desculpem-me, eu esqueci de pedir a janta para vocês, estava tão estressada que deixei vocês sem comida...
— Como se a gente fosse comer depois daquilo... — respondeu Brandon.
— Relaxa, um café da manhã reforçado pode valer a pena, principalmente para você! — falou Reid. Assim que saíssem da cidade, parariam no primeiro lugar para comerem.
Dez minutos depois de entrarem na pista, seguiram à lanchonete de estrada mais próxima, sendo esta, afastada, quase que no final da rodovia. O aspecto era dum lugar humilde, com um pequeno posto de combustível na frente, tendo somente quatro bombas de gasolina. O local tinha luzes neon vermelhas e detalhes brancos e cinza, algo parecido com um estilo vintage duma ponta à outra. Denley estacionou na bomba mais próxima e todos desceram do caminhão, deixando o 2-9-3 trancado na traseira. Enquanto o agente enchia o tanque, alcançá-los-ia assim que acabasse. Ao entrarem, o movimento de vaivém das portas de vidro recordou-os dalgo retrô, muito temático naquele lugar.
Banquetas vermelhas e redondas; o chão quadriculado variando entre pisos brancos e pretos; uma jukebox colorida no canto ao lado duma máquina de fliperama; diversos painéis de vidro iluminando o lugar; mesas de ferro com bancos aparentemente confortáveis e uma lousa em cima do balcão de pedidos com os cardápios escritos a giz, destacando o especial do dia: musse de limão. Um lugarzinho tão simpático quanto aquele relaxaria a mente do grupo 731.
— Eu quero um musse, Lisbon!
— Eu também, parece muito bom!
— Sério? Você gosta de limão também? — perguntou Solina a Reid.
— Óbvio, não tem como não gostar!!
— Por favor, vocês dois, não apelem... — Sentando-se perto do balcão, chamou a garçonete mais velha de camisa clara e com um avental vermelho e começou a falar os pedidos. — Uma omelete tradicional, duas musses de limão... Quer o quê, Brandon?
— Não quero nada, Lisbon...
— Hum... E uma xícara... Não, duas xícaras de café extraforte.
— Mais alguma coisa? — perguntou a senhora.
Balançando a cabeça como se dissesse "não", a garçonete dos cabelos prateados entregou os pedidos ao cozinheiro que ficava atrás. Apenas a senhora e o homem na cozinha estavam atendendo, já que o maior movimento seria no almoço, em que duas garçonetes e uma estagiária os ajudariam. No mesmo momento em que as comidas eram preparadas e o café era servido a Lisbon e a Brandon, uma carreta estacionou ao lado do caminhão de Denley. O agente cumprimentou o motorista e os dois passageiros; mas ninguém interagiu na mesma moeda.
Eram três homens, com dois deles estando acima do peso e o terceiro sendo alto. Com uma idade aparente de mais de quarenta anos, usavam boné, tinham uma barba rala e malfeita, camisetas xadrez e calças jeans azuladas. Enquanto o motorista do grande caminhão enchia o tanque, os outros dois entraram na cafeteria. Reid e Solina estavam sentados a uma mesa perto da entrada, enquanto que Lisbon e Brandon estavam lado a lado nas banquetas giratórias do balcão. Os homens se sentaram entre os dois, estranhando-os o motivo de não se sentarem juntos.
Logo em seguida, quatro motos estacionaram nas vagas à frente da cafeteria, com estas sendo pretas, com guidões largos e motores barulhentos, parecendo de gangues. Três das motos estavam com duas pessoas, enquanto a quarta, apenas uma. Descendo, os sete motociclistas também entraram, sendo três mulheres e quatro homens. Pareciam ter de vinte a quarenta anos, idades muito variadas, e suas roupas eram escuras, totalmente negras, com luvas e jaquetas de couro.
— Minha nossa, que tumulto logo cedo! — falou a garçonete depois de atender os caminhoneiros, indo a uma das mesas dos motoqueiros, que se sentaram nas mesas em torno de Reid e Solina. — O que vão pedir?
— Estamos pensando ainda, aquele ataque ontem à noite tirou nosso apetite — falou o motoqueiro, respondendo à garçonete.
— Né? Só de lembrar daquela explosão... Já me embrulha o estômago... — completou uma das moças.
— Mas 'cês ficaram sabendo? Uma Anomalia morreu, que bênção, não foi? — Intrometeu-se um dos caminhoneiros, olhando torto para Brandon. — Não vai beber seu café não, mulato? Tem que tirar a máscara p'ra isso.
Encarando-o, apenas disse:
— Te importa? Beba o seu que eu bebo o meu.
Pondo sua mão no ombro de Brandon, Lisbon deu um sinal como se quisesse evitar uma discussão, falando por cima:
— Não queremos problemas, nos desculpem.
Olhando pela janela para evitar contato visual, Reid viu um dos motoqueiros que estava em frente ao hotel que alugaram: o mesmo capacete preto com uma viseira espelhada, impedindo-o de enxergar seu rosto e uma blusa de frio marrom colada no corpo. Ele estava observando-os no acostamento da pista e assim que o Espécime 8-4 o olhou com seus olhos bicromáticos, ligou sua moto e seguiu adiante. Aquilo incomodou Reid de tal forma que nem pôde imaginar.
— Sabe, hoje cedo, a gente viu um grupinho de Anomalias saindo da cidade, e falaram que estavam destruindo as coisas ontem, causando um grande tumulto. Vocês sabem de algo? — indagou outro motoqueiro, o qual havia uma barba castanho-avelã.
— Ouvimos falar; mas não fazemos ideia...
A resposta da agente Osmundson não satisfez a vontade deles. Um clima de silêncio desconfortante ficou no ar por alguns segundos, sensação que até a garçonete percebeu. Reid evitava olhá-los, mantendo a cabeça baixa; Brandon segurou sua xícara de café com força, negando tirar sua máscara facial e Solina olhou para Denley. Ao perceber que o caminhoneiro agressivamente partiria para cima do agente que dirigia o caminhão de seu grupo, o 1-4-9-2 pegou uma faca da mesa e jogou nele, quebrando o vidro da grande janela que ficava ao lado da garota e acertando as costas do homem gordo, denunciando sua presença para Denley.
— Merda... — resmungou Lisbon, justo na hora em que a jukebox rodou a música "Cherry Bomb", começando a tocá-la.
Os dois caminhoneiros partiram para cima. Todos que entraram ali estavam com sede de briga, era nitidamente perceptível, obrigando o grupo 731 a defender-se. Lisbon jogou o café quente no rosto do homem, empurrando-o para trás, e Brandon saltou para agarrar pela frente o caminhoneiro alto de seu lado. O espírito de Solina agarrou os dois motoqueiros que ficavam atrás dela pelos braços, os quais pularam o assento; mas a distância das pernas deles rompia um metro, conseguindo acertar a jovem com um chute no rosto, desativando brevemente o 1-4-9-2. Reid, sentado em frente dela, defendeu-a deles, partindo para socos. Ele não era um bom lutador; mas por ter feito boxe quando era mais novo, antes dos pais se divorciarem, lembrou dos golpes que utilizara em campeonatos mirins.
Denley, por sua vez, ao perceber o grito e ver a confusão que acontecia dentro daquele lugar, tirou a mangueira de combustível e jorrou gasolina no corpo do homem, ameaçando incendiá-lo caso se aproximasse, mesmo que não tivesse isqueiro algum. Não se importando, o motorista agarrou-o pela cintura, deixando-o de costas para o caminhão, enforcando-o logo em seguida. Denley, desesperado, soltou a mangueira da mão enquanto levava socos na costela, pegando a faca que estava fincada no dorso e cortando o caminhoneiro até largar seu pescoço.
Solina, recuperando-se do chute, ativou novamente o espírito para ajudar Reid, o qual apanhava mesmo se defendendo. O espírito de Solina não poderia aparecer se ela estivesse inconsciente ou dormindo. Um soco dele foi suficiente para quebrar a perna do homem que a chutou, deixando o outro motociclista com medo; mas partindo para cima, nocauteando com um mero soco na cabeça. Uma das mulheres que os acompanhava foi logo batendo em Reid, agarrando-o pelas costas e desequilibrando-o, fazendo-o cair perto da máquina de fliperama. Olhando-a de ponta-cabeça, um detalhe o fez perceber algo sobre seu efeito passivo.
Brandon, defendendo-se e contra-atacando os outros motoqueiros, ainda rasgava as roupas do caminhoneiro alto neste ínterim com suas unhas afiadas; mas este havia pegado uma faca do balcão, revidando os arranhões que recebia. Mirando no rosto de Brandon, rasgou a máscara que cobria sua boca deformada, assustando-o.
— E ainda quer se parecer como um humano? Aberração! Você é um monstro, aja como tal!!
Aquilo irritou Brandon duma tal maneira que, sem piedade, quebrou o braço dele e arranhou sua mão, soltando a faca e segurando seu pescoço com as duas mãos, estrangulando-o. Lisbon facilmente derrubara o homem de seu lado e retirou sua arma, apontando-a para os demais motociclistas. Não a usaria por falta de coragem; mas dar-lhes-ia medo mesmo assim. Percebendo que Brandon mataria o homem se não interviesse, berrou:
— Parem agora ou eu atiro!!
Assim que falou, o 1-4-9-2 jogou um homem que a atacara no teto, quebrando as luzes do lugar, outro para fora da lanchonete, derrubando as motos e deslocando a mandíbula de uma das mulheres, sujando o chão com sangue. Brandon se acalmou e deu um soco para apagar o homem, nocauteando-o. Os demais baderneiros, mesmo que poucos, pararam e renderam-se após todo aquele estrago.
— Desculpem pelo transtorno, podem ligar p'ra polícia? — pediu ofegantemente à garçonete, a qual estava perplexa e imóvel, derrubando a cafeteira da mão. Vendo que Solina estava com a mão no rosto, continuou. — Pode emprestar um pouco de gelo também, por favor?
Algemando todos dali com abraçadeiras, um total de dez suspeitos ficaram na frente do posto, com Denley os supervisionando até a polícia chegar. Solina ganhou um olho roxo, e, por não ter capacidades regenerativas, ficou com uma sacola de gelo no rosto. Brandon, indignado por ser discriminado tanto pela etnia quanto por ser um Espécime, estava cansado de agir como um animal selvagem quando se descontrolasse. Lisbon já não dormira bem, e com uma confusão daquelas, estava mais irritada; mas não se envolveria no conserto da lanchonete. Com o dinheiro dos processos que a S.E.T.H. ganharia por ter seus agentes atacados por simpatizantes das Mariposas, a maior parte seria voltada à reconstrução daquele lugar.
O dia do grupo 731 mal havia começado e já ganharam um alvoroço, interrompendo o café da manhã deles. Além de protegerem a humanidade, precisavam-se proteger dos próprios humanos. A vida não era fácil para nenhum dos lados. Toda luta possui seus prós e contras, e Reid pensava, em conflito consigo, que defender a humanidade em prol de Rebecca poderia valer mais do que simpatizar com a visão otimista de Ashe, ou seria o contrário? Uma dualidade entre proteger os humanos ou defender seus "irmãos" enchia seu coração de tormento e sua mente de dúvidas. O novato Espécime 8-4 lutaria para fazer do mundo um lugar digno àqueles que amava.