Com a polícia chegando ao local, alguns dos desordeiros tiveram de ser levados a um hospital antes de serem presos. Facadas nas costas, costelas fraturadas, ossos dos braços e das pernas expostos; tudo foi justificado como autodefesa por parte do grupo de recuperação 731. Com o tanque de combustível cheio, as comidas que pediram sendo entregues para viagem e um saco de gelo no rosto da canadense, continuaram na estrada. Se não encontrassem alguma Anomalia, parariam no horário do almoço, e, com a agente Osmundson precisando entregar um relatório à Monviso, treiná-los-ia para saber como andava a taxa de produtividade deles.
Enfim pegando seu celular, Lisbon viu que havia uma mensagem em sua caixa postal, ouvindo-a enquanto dava leves sorrisos. As falas envergonhadas de Ashe trouxeram um pouco de inocência à agente que estava com a cabeça lotada de problemas. Retornando a ligação no instante que ouvira a gravação, abriu a portinhola, e, assim que Ashe atendeu, esticou seu braço para Reid, o qual sentava à esquerda, alcançando o celular. Sem entender, levou o telefone ao ouvido e perguntou "alô?", esperando retorno.
— ... — Ashe ficou corada, não imaginou que ele mesmo a atenderia.
— Alô? — Insistiu.
— O... Oi, Reid! Há quanto te... tempo!
— Ashe?! Uau, não imaginava que seria você! — Olhando para Solina, a garota, curiosa, dizia sem som "põe no viva-voz", podendo ser entendida pela leitura labial. Reid, atendendo ao pedido, pô-lo para ela escutar.
— Pois é, euzinha! Faz tempo que não nos vemos, hehe! Como está indo nas suas recuperações de Anomalias?
— Olha... Estou tentando entender meu efeito passivo melhor, já é um progresso; mas as coisas estão um pouco tensas.
— Imagino... Deve ser difícil não poder usar seu efeito, né?
— Ah, na verdade, já usei sim, morri duas vezes ontem, então aos poucos eu...
— 'Cê morreu duas vezes, moleque? Achei que fosse só uma — Intrometeu-se, com Solina zangada e olhando-o com raiva. Ela e Brandon estavam lado a lado no banco direito, e após ver que ele interrompeu Reid, ela deu um murro em seu ombro.
— Fica quieto, ela pode ouvir, deixa eles conversarem. — Ashe ficou mais vermelha do que já estava, não sabia que seus companheiros ouviriam a ligação. Não havia nada de mais na conversa deles; mas foi o suficiente para desligar o celular e deixá-lo entre suas pernas. — Parabéns, assustou a coitada!...
— A culpa é minha?!
Enquanto os dois discutiam, Reid deu leves toques na portinhola, esperando Lisbon abri-la e pegar seu celular. A curiosidade pode ter valido a pena; mas Ashe não ligaria novamente até conseguir recuperar-se da vergonha que passara.
— O que aconteceu agora, Ashley? Está parecendo uma adolescente na puberdade encontrando a banda favorita. É só uma ligação.
— Ligação?! Eu não sabia que ele ia me atender, eu fui uma palhaça... E mal me despedi dele... Idiota, idiota!
— Você está falando daquele Espécime que deixei na cela do Oráculo? O que te acompanhou lá na Sede? Quanta saudade de alguém que nem conhece, hem...
— Você não entende! O jeito que ele me pediu ajuda em Palo Alto quando aquele Zafiel estava destruindo a cidade foi... estranho. Esse efeito dele não é bom, me preocupo se ele continuar usando...
— Te fará mal se começar a carregar os problemas de todos nas costas. Desde que você entrou na Fundação, sempre avisei para que se preocupasse, em primeiro lugar, com suas obrigações.
— Eu aguento carregar quantas preocupações eu quiser, obrigada, Hill — falou, zangada.
— Todos fazem o necessário para sobreviver e estar às custas dos mais fortes, você foi a solução que ele achou, de certa forma.
Ashe irritou-se muito com a fala do agente Hill. Tinha convicção de que Reid buscou sua ajuda não apenas para sobreviver, mas sim, para salvar os demais habitantes da cidade. Depois de morrer duas vezes, Reid sabia das últimas dores da morte por aquele Espécime, e contando com a Alpha, não a usara apenas para sair vivo.
— Você não sabe o que diz, isso sim... Se visse os olhos dele, saberia que refletem uma dor sem igual!
— Se; mas não sou. Descanse, estamos nesse voo há horas e você ainda não dormiu. Não vai estar apresentável com olheiras, Ashley.
— 'Tá! — Virou-se, emburrada com as falas do agente incréu. Ainda levariam cinco horas para chegarem à Sede do Cairo.
Christina e Krystal acordaram lá pelas nove horas, descansadas e prontas para seguirem o "plano" de Duffner. Krystal perscrutaria e informaria discretamente tudo que pudesse ajudá-los a respeito da S.E.T.H., agindo como "vigia" lá de dentro. Duffner, com identidades falsas, acompanharia Christina como seu novo cinegrafista. O jovem conseguiria facilmente se infiltrar na companhia de notícias que Chris trabalhava, podendo cumprir a promessa de protegê-la da Fundação. Seus pais ficaram tristes com a notícia de que já partiriam, acompanhando-as até o térreo do prédio.
— Voltem sempre, eu e seu pai amamos o jantar de ontem, sabem que a porta sempre estará aberta! — Abraçando-as, os dois apertaram suas filhas tanto, mas tanto, que elas quase ficaram sufocadas. Foi uma das demonstrações mais genuínas de saudade.
As irmãs pegaram um táxi, o qual deixou Christina perto do Empire States. Abraçando-a, Chris sussurrou um "se cuida" no ouvido dela antes de descer do carro. Pagando a entrada e subindo até o topo do arranha-céu nova-iorquino, Duffner estava lá, esperando-a. Poucos turistas estavam ali, facilitando a comunicação deles. Como a ventania era imensa, usavam roupas volumosas, principalmente Duffner, com um casaco de cor grená. Seus cabelos prateados mexiam-se com a brisa enquanto apreciava a cidade.
— Bom dia, Chris.
— Bom... dia — respondeu-lhe, bocejando.
— Já avisei sua chefe sobre a nossa viagem.
— Já falou com a Loterra? Eu ia ligar agora mesmo p'ra ela.
— Não precisa mais. — Virou-se para poderem conversar melhor, ficando cara a cara. — Eu, Adryan Hempbell, um amante da fotografia, nascido em Massachusetts, fui recomendado por um amigo do patrão dela. Eu estava desempregado; mas tenho um currículo muito bom. Tente lembrar do meu nome para evitar confusões o quanto antes.
— Ok, Adryan... Aonde vamos?
— Ouvi dizer que houve um surto de internações nos hospitais da Filadélfia. Iremos investigar a qualidade do saneamento de água de lá.
— Acho que colou bem a desculpa, né?
— Sim, nada que um amigo do chefe não pudesse mandar na sua patroinha. — Uma pomba branca pousou perto do parapeito, a qual tinha algo amarrado em sua pequena pata. — Meu informante chegou! — A pomba não o estranhou, ficando estática quando se aproximara. Um pedaço de papeleto com algo escrito foi tirado das patas da ave, contendo uma localização. — Obrigado, velho amigo, estamos indo — disse, aproximando-se do olho da pomba.
— Você... agradeceu à pomba?...
Rindo, Duffner lhe respondeu:
— Logo logo você entenderá. Vamos!
Ambos desceram e andaram por algumas quadras. Ainda que fosse cedo, o tumultuado trânsito já se acentuava; a barulheira dos motores e das buzinas tomavam as tentativas falhas de conversarem durante a ida. Com um casaco marrom, Christina pôs sua touca na tentativa de esquentar suas orelhas. Era friorenta naturalmente; mas o fato de estar ansiosa e confusa de início acabaram-na deixando mais frígida naquela manhã. Um prédio feito de tijolos à vista era o destino que Duffner a levava. A porta, trancada remotamente, só seria aberta se algum inquilino liberasse a entrada. Apertando o botão do apartamento "nº. 13", uma mulher o atendeu, perguntando impacientemente:
— Quem é logo cedo? Não quero comprar nada, seus vermes. — Desligou o interfone. Insistindo, Duffner apertou outra vez o botão. — O que vocês querem, que saco, eu já falei que...
— Vim comprar alpiste, queria saber se o gaioleiro está, só ele que me vende.
A mulher ficou em silêncio, desligando o interfone novamente; mas, desta vez, destrancou a porta. Subiram as escadas, passando pelo apartamento treze e seguindo acima. As várias voltas da escadaria os levavam ao sobrado do pequeno prédio, o qual havia diversas gaiolas com vários pombos dentro e mais de dezenas espalhados pelo teto em volta; do parapeito aos telhados. Todas as aves dali se comportavam, não fazendo barulho ou alvoroço. Um homem negro de sessenta e um anos cuidava das aves, usando bastantes casacos e inchando-se com a quantidade de roupas. Mesmo com tantas vestes, eram sujas e rasgadas, como se fosse um mendigo, além de estar com luvas de pano pretas. O homem estava de costas à porta que entraram, olhando para o céu, com uma pomba marrom no ombro.
— Então essa é a sua nova parce'ra, a mocinha da ONU...
— É bom conhecer gente nova, sabia? Deveria tentar o mesmo, Langdon, ao invés de só cuidar dos seus pássaros.
Virando-se, o mendigo era totalmente cego. Seus olhos, esbranquiçados, olhavam de forma desfocada para o nada. Sua barba cinzenta e seu cabelo grisalho foram revelados à Christina, mostrando que mal cuidava da aparência. Em suas mãos, outra pomba, branca dessa vez, estava sendo acariciada por ele.
— Não 'tamo' aqui p'ra fazê' amizades, apenas p'ra derrubá' aquela Fundação. — O homem maltrapilho andava pelo sobrado sem tropeçar ou errar passo algum, indo em direção às grandes gaiolas e colocando calmamente a pomba que acariciava no poleiro.
O efeito passivo de Langdon, uma Anomalia de ordem Humani, consistia em poder enxergar "fora de seus olhos". Cada pomba que ele cuidava era treinada a obedecer-lhe e agir como correio físico. Sem rastros, sem provas de envio. Tudo o que seus ratos alados viam, ele via também, ficando a par de, bendizer, tudo em Nova Iorque. Havia cerca de um milhão de pombos na cidade; mas ele possuía um limite de quantas visões podia "roubar" simultaneamente. Pombos são aves espertas e adaptáveis, tornando-se espiões perfeitos, altamente insuspeitáveis. Langdon, aliás, apenas sobreviveu por causa deles, decidindo cuidar de suas aves como se fossem seus filhotes.
— Já que não estamos aqui para festinhas, por que me chamou? O que ficou sabendo?
— Num é p'ro 'cê dessa vez, é p'ra ela. — Aproximando-se da jornalista, tinha um cheiro forte. Christina não sabia se era de cachaça ou de conhaque; mas o aroma ébrio era nítido. — 'Cê conhece um tal de "Stuart", né?
— Sim... Por quê?
— Uns policiais da Fundação viram ele no sistema procuran'o um homem de gangue do nada, sem relação com os casos que ele tinha. Nada demais, né; mas quando 'cê acusou os chefões da Fundação, foram atrás dele na hora. Um mais um dá dois, e tiveram certeza depois de ver o histórico dele. Insistiram em sabê' como 'cê descobriu aquilo. Fizero' de tudo p'ra sabê'.
— O quê?! Mas... e ele? Como o Stuart 'tá?
— Ele 'tá a sessenta metros no fundo do Hudson. Se te conforta, ele num falô' nada, que corage' a dele. Aguentou bem, com todo respeito. — Christina ficou zonza com aquilo.
— 'Pera, ele morreu? A Fundação fez isso?? Como assim? Ele tem filhos, isso não pode ser verdade... Quem te falou essas coisas?!... É mentira, só pode ser mentira!
— Meus bichinhos não mentem, eles vê' quase que tudo na cidade. São tão caras de pau que os próprios policiais que denunciaram ele, avisaro' que sumiu. Porcos imundos!
Sentando-se na mureta, incrédula, o homem andrajoso a fez sentir tontura com aquela informação. Não bastava seu cinegrafista, agora seu velho amigo também? No máximo, Christina achava que havia lavagem de dinheiro e desvios de investimentos sendo realizados, tornando a Fundação "suja"; mas, aos poucos, percebia o quão inclemente e intolerável a S.E.T.H. realmente era com quem saísse da linha. A fachada de salvadora encobria, com um grande pano, alguns de seus métodos mais podres que praticavam, inclusive sequestro e tortura. Possivelmente seria a vez dela se Duffner não a ajudasse no dia anterior.
— Ele... sofreu?...
— 'Cê deve imaginá' o nível da coisa, até com um pano na boca dava p'ra ouvi' os gritos, ao menos num te entregô'. Sei lá o que 'cês eram; mas ele num te deixô' na mão. Duff, é bom que saiam logo daqui, tão mais atrás do 'cê que antes, sabem que 'cê 'tá ajudan'o ela. Fiquei saben'o também que o tatuadô' qué' te vê' quando sair daqui, acho que é bom ir p'ra lá.
— Obrigado, Langdon, passarei para vê-lo o quanto antes. Abra seus olhos...
— ...expanda sua mente! — Dando as mãos, apertando-as fortes, os Espécimes 1-2-7-7-4-4 e 9-7-5-5-2, respectivamente, Duffner e Langdon, completaram a frase um do outro. Uma prática comum dos membros da HÓRUS.
Saindo do prédio, ainda estonteada, Christina foi levada por Duffner a uma cafeteria ali perto, comprando-lhe um café na esperança da bebida quente acordá-la e voltar à realidade. Sentando-se num ponto de ônibus depois da compra, subiram no ônibus que os levariam à rodoviária minutos depois, dando tempo para que tomasse o café. Enquanto percorriam a cidade, Duffner, sentado a seu lado, tentou amenizar as coisas, dizendo-lhe:
— Sabe, Chris, vários informantes e contatos que eu tinha foram mortos pela S.E.T.H., com exceção dos que eram Anomalias; mas com certeza sofreram à altura quando foram levados. Não deixei isso claro quando nós conversamos; mas é bom que se afaste, por enquanto, de quem ama, tirando a Krystal, claro.
— Ontem, eu e ela ficamos com os nossos pais, eu não quero que...
— Se eles não sabem de nada — interrompeu-a —, então estão seguros. Não fale nada com quem não tenha a ver com a nossa missão. Meça bem as palavras, ok?
— 'Tá... Lá em cima, ele disse que sou sua nova parceira. O que houve com o último?...
— Eu pedi para que seguisse um caminhão suspeito da VOX.
— A empresa de financiamento?
— Sim. A VOX é uma empresa que pertence ao clã de mesmo nome. Os Vox fazem parte das treze famílias, e elas...
— As treze famílias? Achei que fossem um mito!
— Não, não são. Espalhadas pelo mundo, eles se reúnem três vezes por ano, na Instalação, só para decidirem o que a S.E.T.H. pode fazer.
— Até os Ômega são paus-mandados?
— Não exatamente... — Aproximando-se dela, falava mais baixo ao perceber que o ônibus se enchia, aos poucos, de pessoas. — As treze famílias financiam economicamente a Fundação, além de algumas questões políticas nos governos. Em troca, eles querem que a S.E.T.H., além de conter as Anomalias, seu propósito original, cumpra alguns de seus assuntos; mas como são treze clãs no total, nem tudo o que pedem é feito. Os Ômega escolhem o que farão para agradar, ao menos, a maioria.
— Não achava que até quem dava ordens recebia ordens...
— O buraco é bem mais fundo, Chris, aquilo que contei a vocês no esconderijo foi apenas a ponta do iceberg, nosso propósito é pegar justamente aquele pedaço submerso no fundo...
— Vou tentar dar o meu melhor; mas você não respondeu à minha pergunta por completo...
— Ah, sim... O carro dele foi encontrado num lago, a quilômetros e quilômetros daqui; mas nada de corpo. Acharam que fosse um acidente. Semanas depois, a esposa dele, que sabia dos nossos planos, foi sequestrada saindo do serviço. Ela era agente imobiliária. Quando fui investigar o apartamento deles, dias depois, a S.E.T.H. sabia que eu iria ali, e encontrei vinte dedos das mãos e duas línguas numa pequena caixa de madeira. Um bilhete, em cima da caixa, dizia "entregue-se ou causará mais perdas"...
Christina, olhando-o, viu que seus olhos, mesmo que bonitos pelo tom amarelo-mel, carregavam uma culpa gigantesca. Não finalizando ainda, prosseguiu:
— Ele foi meu quarto parceiro só esse ano. Você é minha décima sétima parceira, Chris. Sempre que me afasto de quem me alio, algo ruim acontece, por isso vou te seguir dessa vez. Sua irmã estará bem, uma Alpha é difícil de dar cabo, e se seus pais não sabem de nada, estão fora da mira. Você já os irritou, não posso permitir que morram mais por minha culpa...
— Mas como ninguém vê essas coisas? Ao menos uma testemunha tem que ter!
— Eles têm um esquadrão especial. Anomalias mortíferas treinadas para fazerem um "trabalhinho sujo" aqui ou ali. O que mais me assusta é que são meticulosos e circunspectos, sempre ficam a passos de mim. Sei que há o dedo deles em pelo menos um sumiço dos meus companheiros. Isso se encerrará o quanto antes, e você não será mais uma, Chris!
O olhar de ódio era nítido. Duffner sempre teve uma fala eloquente e um jeito calmo; mas aquela pose e os sentimentos guardados eram novos para a jornalista. O ressentimento de carregar o fardo das inúmeras vidas que tiraram dele era um peso que, dia a dia, aumentava. Chegando à rodoviária, perto da entrada onde ficavam os ônibus, uma van com o logo da ABC News, menor do que a de Haswell, estava estacionada. Movimentado, o lugar seria ideal para despistar qualquer um que estivesse seguindo-os. Já com a chave, Duffner desativou o alarme e abriu a porta para entrar na van; mas, abaixando a cabeça com uma atitude de decepção, falou:
— Merda! Eu deveria ter feito isso antes... — Olhando para cima, quatro ou cinco pombos estavam no telhado da rodoviária. Enquanto os encarava, colocou sua mão na perna de Christina, assustando-a com a aproximação de suas mãos. Puxando seu celular, quebrou-o no meio e jogou-o numa lixeira. — Pronto, fuja daí, isso foi vacilo meu, gaioleiro, me desculpe.
— Por que você fez isso?!
— Fiquei sabendo que a S.E.T.H., recentemente, anda testando uma inteligência artificial que pode clonar chips a distância. Certeza que fizeram de tudo para invadir seu celular, espero que o Langdon não fique bravo comigo, terá trabalho trocar todas aquelas gaiolas de lugar.
— E como vou falar com a emissora??
— Você sabe o número da Loterra de cabeça?
— Claro que não, por isso o celular!
— Pois bem, eu sei de cor, então é só ligar de alguma cabine telefônica e avisá-la se precisar. Qualquer coisa pode ser um risco alto em potencial à nossa segurança. Quando tudo isso acabar, te compro outro celular, certo?
— Eu odeio que faz sentido a sua lógica. 'Tá! Vou cobrar quando acabarmos com isso.
No estado da Pensilvânia, a cidade de Filadélfia ficava a sudoeste de Nova Iorque, a duas horas de Manhattan. Usando o pretexto de investigar as maciças internações naquele lugar, lentamente, Duffner conseguiria algumas respostas que tanto buscava, um passo à frente para o destino de Christina entrelaçar-se no de Reid.
Enquanto seguiam a viagem em busca doutras Anomalias da Jaula do Colorado, nenhumas acharam. Ou os outros grupos de recuperação estavam tendo êxito ou eram ardis o suficiente para não serem notadas. Independente de qual situação fosse, apenas parariam a busca por elas até segunda ordem. Quando estavam perto da vila de Hoskins; mas a quilômetros, saíram da estrada e estacionaram debaixo duma árvore. Mesmo com uma vegetação rasteira e cheia de gramíneas, várias árvores densas e volumosas formavam sombras acolhedoras pelos campos.
— Ok, vamos lá, pelo menos meia horinha de treino, não posso atrasar mais p'ra mandar p'ra Monviso. — Ouvindo a fala de Lisbon, todas as Anomalias, com exceção do 2-9-3, desceram e começaram-se a preparar para seus testes diários. Reid ainda estava confuso do que faria; mas imitava Solina, balançando seus braços e aquecendo-se. Brandon saltitava no lugar, mexendo seu pescoço dum lado ao outro. — Quem começa?
— Eu vô' mostrar p'ra essas crianças como uma Anomalia de verdade faz!
— Certo, Brandon, quando quiser. — Tirando sua camisa e sua máscara de pano, seu corpo malhado evidenciava sua boa forma. Sem suas roupas da cintura para cima, Reid e Solina perceberam que ele tinha uma tatuagem no pescoço. Marcas específicas e até rústicas, como se fossem primitivas. Uma tatuagem semelhante a um leão; aliás, à cabeça dum, com uma juba e uma mandíbula aberta, sendo chamativa e bem-acabada.
Berrando, ativou seu efeito passivo, abrindo sua boca o máximo que pôde. Seus dentes começaram a crescer, afiando seus caninos e aumentando seus molares e incisivos. Suas unhas, desta vez, apenas as das mãos, ficaram tão pontiagudas que cortavam só de olhá-las. Sua coluna também se afiou, com pequenos "espinhos" de ossos. Cada vértebra rasgava sua carne, sangrando no processo. Aumentou de tamanho pouquíssimos centímetros, nada tão agravante; mas notaram que estava minimamente maior.
— Denley, venha cá!
— Sim, senhora, diga!
— Quero que atire algumas vezes nele. — Um silêncio seguiu o ambiente.
— O quê?... Mas isso não vai...
— Só atire, quero ver como ele 'tá. Mire no peito, ok?
Pegando a pistola de Lisbon na cabine do caminhão, mirou no meio do peitoral dele. Ainda com os músculos tensionados, aguardou o disparo. A quase oito metros de distância, o som do tiro assustou alguns pássaros ali perto, os quais revoaram. Cinco tiros, cada um mais próximo do coração. Aqueles projéteis bateram e pararam, caindo na grama. As cinco feridas curavam-se instantaneamente, esfumaçando seu peito; mas eram feridas superficiais. Míseras balas disparadas.
— Ainda machuca ficar nessa forma?
— O que... você... acha?... — dizia, ou, ao menos, tentava.
— Pelo menos fica bem mais resistente. Aqui, pegue! — Pegando sua arma da mão de Denley e jogando-a, Brandon não a conseguiu pegar. Até uma criança pegaria; mas ele mal moveu sua mão. — É, ainda lento. Você perde muita mobilidade, que faca de dois gumes a sua contrarregra... Certo, pode desativar, acho que não mudará mais que isso. Obrigada.
Enquanto Lisbon gravava um áudio para sua Alpha, Brandon desativou seu efeito; mas demoraria até seus ossos e unhas voltarem ao tamanho normal. Poderia acelerar sua produção de minerais; porém, não o contrário. Dissolver-se-iam ao longo do tempo, aguardando encostado na árvore. Sentou-se para relaxar e tentar amenizar gradativamente sua dor.
— Qual dos dois agora? — Reid e Solina se encararam, chacoalhando os punhos e decidindo quem seria o próximo da maneira mais infantil possível. "Pedra, papel, tesoura!", falaram concomitantemente.
— Droga, eu te odeio, Reid, não vê que 'tô' machucada?
— Você escolheu "tesoura" porque quis, que culpa eu tenho de ser bom nesse jogo?
— Você só tem sorte... Porcaria... 'Tá, eu vou! Segura isso. — Deu a sacola de gelo que fixava no rosto.
— Dê o controle p'ro 1-4-9-2.
— Eu não vou fazer isso, Lisbon, você sabe.
— Sim; mas deveria tentar. Um dia precisará fazer isso de novo, você sabe.
— Posso me defender sem ele — retrucou. — O que mais?
Enquanto cruzava os braços para a Lambda, uma aura arroxeada envolveu seu corpo e o Espécime se manifestou perto da garota. Osmundson se aproximou e olhou no rosto da Anomalia.
— Consegue levantar o caminhão? — Olhando para sua "dona", Solina permitiu que o fizesse, andando ao seu lado.
Parando na frente do veículo, antes do espírito pôr suas mãos no parachoque, Lisbon interveio, falando:
— Mudei de ideia, quero que vocês levantem.
O Espécime 1-4-9-2 deu um passo para trás, escondendo-se no corpo da garota. Solina teve seus antebraços envolvidos pelas braçadeiras da Anomalia, como se fizessem parte do corpo da própria garota. Agarrando o parachoque frontal e flexionando suas pernas, a união de Lewis e de seu Espécime conseguiram levantar a cabine a setenta centímetros do chão.
— Ótimo, progrediu um pouco, quatro centímetros a mais do que a última vez — comentou Lisbon —; mas acho que poderia ser melhor se...
— Se eu desse o controle. — Completou. — Eu sei; mas não, pode esquecer. — A canadense soltou o caminhão, causando um barulho alto das rodas colidindo com o chão. Pôs o saco de gelo novamente no rosto ao pegá-lo com Reid, sentando-se ao lado de Brandon.
— Reid, como é sua primeira vez, vou te explicar um pouco, venha aqui. Periodicamente, fazemos testes nas Jaulas; mas por estarmos em uma recuperação, temos que fazer aqui mesmo, ao ar livre. Com você, será um pouco diferente, pois já provou como usa o efeito, não tem como me mostrar literalmente.
— É... Quando retorno, só eu me lembro das coisas, mais ninguém.
— E o que você sabe por enquanto do seu efeito?
— Quando 'tô' prestes a morrer, volto no tempo, e acho que funcionam como... como checkpoints. — Lembrou-se da tela no fliperama na lanchonete, com a legenda "Fim de jogo. Recomeçar?".
— Um ponto de reinício... Estávamos falando disso antes, não é? Sobre seu sono. — Reid assentiu com a cabeça.
— Eu meio que sinto a necessidade de dormir a todo momento, como se estivesse sempre cansado, e deve ser por isso. Eu sempre volto exatamente onde acordei do meu sono. É como se meu efeito...
— ...te protegesse. Deve ser realmente isso. Se você acordou depois de dormir, seu efeito "sabe" que não tem como morrer antes disso, que já está em segurança, criando o seu salvamento no tempo. Belo raciocínio, Reid, gostei disso. Algo a mais?
— Pensando bem, eu não diria "sono", quero mudar esse nome. Teve uma vez que desmaiei e contou como meu ponto de reinício. Acho que sempre ocorre quando perco a consciência, não só quando durmo. Que tal?
— Monviso me avisou que era bem esperto, fez jus ao elogio. Certo, quem quer almoçar e voltar à procura das... — Um berro cortou a fala dela, com uma enorme sombra passando no céu. O grito, ardido e estridente, assustou-os. — Esqueçam o que disse, entrem no caminhão. Agora!
Perseguindo a Anomalia, mesmo que voasse, foram atrás dela com o caminhão até onde puderam. Era uma criatura comprida, tipo uma minhoca. De longe, não havia uma noção de seu tamanho; mas possuía cerca de seis metros de comprimento, mesmo que não fosse larga. A parte inferior da criatura era cinza-clara; mas, à proporção que voava, sua cauda mostrava um tom mais escuro, como se sua parte superior fosse preta. Não havia asas, voando por meio de levitação ou algo que vinha de seu efeito passivo, movendo-se como uma serpente no céu.
A criatura continuava sua trajetória, já que o grupo 731 tinha uma deficiência com ataques à longa distância, podendo apenas a seguir e torcer para que pousasse o quanto antes; mas, desafortunadamente, não o fez. Aquela perseguição durou por quase dez minutos; porém, não havia cidades por perto, apenas longas estradas e rodovias. Quando se aproximavam da cidade de Norfolk, uma outra Anomalia voou em direção àquela. Branca e com longas asas cheias de penas, atacou-a. Lisbon inicialmente se assustou com aquele outro Espécime; mas logo imaginou que seria dalgum grupo de recuperação, assim como eles.
— Teremos companhia, menos mal. Se preparem caso precisemos agir, ok? — disse pela portinhola entreaberta.
Parando o caminhão, desceram e ficaram encarando o céu. Aquela luta no azul-celeste lá de cima parecia perigosíssima, mesmo a trinta metros do chão. A ave humanoide branca, com as garras de suas patas, atacava a "serpente" que pairava e contra-atacava com sua cauda. O bater das asas era tão forte que se ouvia donde Reid estava. Rápida e ferozmente, a breve luta daqueles seres voadores teve um fim, com a Anomalia longa despencando, toda ferida e envolta pelas fumaças regenerativas. A Anomalia do grupo de recuperação caiu em cima daquele Espécime, segurando-o com suas pernas.
A Anomalia fugitiva tinha o corpo muito parecido com o de uma enguia, cheio de escamas e com algumas guelras. Sua mandíbula, com dentes serrilhados e de diversos tamanhos, poderiam arrancar a cabeça duma pessoa facilmente. Como se já não bastasse a boca horrípila, na cabeça, acima de seus pequenos olhos, o rosto duma mulher revirando os olhos e dois braços humanos saíam do corpo da Anomalia, além dum longo cabelo preto nas costas da criatura. Ordens Deformis transfaziam com que ficasse irreconhecível sua forma original, e, olhando para aquele rosto humano mórbido, Reid sentiu pena e, simultaneamente, sorte por não se ter tornado algo assim.
O aliado que a derrubara, mesmo que magro, era forte e alto, com dois metros e meio de altura, quase inimaginável que um ser daquele tamanho pudesse voar com o bater das asas. Pernas longas e bem-apessoadas, com unhas enormes e mortais; uma cintura finíssima e usando um tipo de espartilho de couro; asas densas e visivelmente macias, variando entre tons esbranquiçados e beges, assim como um creme. Além disso, em sua álula, região em que se dobra a asa, possuía uma mão humana com unhas igualmente escuras como as de suas patas.
Solina, vendo aquela Anomalia em cima da outra, aos poucos levou sua visão ao rosto dela. Em torno de seu pescoço, uma plumagem afável agia como uma estola natural no corpo daquele ser. Seu rosto, ainda que não demonstrasse tanta afeição, parecia ser meigo; mas tal dualidade com o estado em que ficou a Anomalia caída parecia que algo descontrolado a atacara, e não uma criatura tão airosa e graciosa. Diferente de Solina, Brandon já notou seus chifres, os quais eram curvados para baixo e tinham brincos azulados em suas pontas. Díspar da canadense, preocupava-se mais no que era potencialmente perigoso ao invés daquilo que era formoso.
Inopinadamente, dois assovios de longe foram ouvidos por todos dali. A Anomalia 3-2-3-9 virou sua cabeça em cento e oitenta graus, olhando de suas costas para onde possivelmente assoviaram, igual a uma coruja. Saindo de cima daquela serpente estapafúrdia, bateu suas asas tão forte e rapidamente que uma leve ventania foi feita.
— Reid e Brandon, venham comigo. Solina e Denley, fiquem de olho no 2-9-3 e nesse bicho, já voltamos. Se ele acordar, façam com que volte a dormir!
Seguindo a Lambda, o grupo 731 futuramente se aliaria aos grupos de recuperação 119 e 402 para lidarem com um problema na cidade de Norfolk. Aquela serpente, o Espécime 6-6-0-2-5, não seria a única companhia que os grupos teriam das Anomalias da Jaula Ábdita do Colorado, precisando unir forças para lidarem com todas que se escondiam naquela cidade, descobrindo-as das piores formas possíveis.