Sendo pressionado pelo Espécime 8-0-7, Reid estava tenso com o modo enraivecido que as palavras da criatura o atacavam. Não tendo como fugir daquela situação, tentaria dar um jeito para descobrir o máximo possível.
— Seu pirralho insolente! Eu vi sua morte, tão clara quanto o Sol, não faz sentido isso!
— Eu não entendo como isso aconteceu. Não faz sentido eu burlar sua visão. Ela não era absoluta?
— Ela ainda é!! Você não entende como funciona! — gritava 8-0-7 enquanto coçava sua cabeça com força, escorrendo sangue e soltando fumaças que o curava no mesmo instante.
Percebendo que ele estava estressando-se novamente, Reid decidiu "mimá-lo" para que pudesse saber sobre sua habilidade de tempo.
— Eu estudei sobre você, você pode ver através do tempo, não é? Como eu quebrei a sua visão?
— O tempo é como um livro, criança, ele tem começo, meio e fim escritos; mas quem conhece o tempo se torna um escritor, e eu era o único que escrevia! Moldei reinos e impérios com minha visão, e o que adiantou? Uma peste como você desafiou meu efeito e agora aqueles... aqueles cinco idiotas ficam duvidando da minha capacidade! Eu sei da morte de cada um deles e acham que sou inútil??
— E por que não me viu chegar até aqui? — Agarrando Reid pelo pescoço e sufocando-o, o garoto colocou as mãos para tentar tirar o agarrão que o 8-0-7 fazia.
— Eu vi você ser evaporado pela Anomalia que atacou a cidade, era para estar morto há horas, e aqui está você, em minha frente respirando, seu verme!
Jogando-o no chão, Reid voltou a respirar desesperadamente, assustado com o modo agressivo que era tratado; mas deixou o 8-0-7 no controle para que não se estressasse mais.
— Conte seu efeito passivo, criança — falou o Oráculo, voltando para as sombras e continuando a arranhar as paredes com suas enormes unhas afiadas.
Ainda no chão, Reid falou o que sabia sobre si enquanto se levantava.
— Até onde eu sei, toda vez que eu morro, eu sempre retorno em um ponto específico. Primeiro, renasci no meu quarto, depois, na delegacia. Eu não sei como...
— Então você não prevê, você vive!... — Pensativo, 8-0-7 continuou. — Conte todas as vezes que você morreu e as diferenças. Agora!!
— Bem... na primeira vez, eu morri no segundo disparo de luz da Anomalia. Na segunda vez, tentei salvar minha amiga; mas acabei sendo pego pela luz, e só na terceira vez eu consegui sobreviver.
— Então foi isso... — Saindo das sombras atrás de Reid, o Oráculo passou em seu lado. — O tempo é algo confuso, e não achei que precisasse explicar; mas você é o único manipulador de tempo que conheço... por enquanto.
Agachando-se no chão da sala, a Anomalia começou a arranhar o chão com suas unhas, desenhando diversas linhas enquanto explicaria ao jovem por quem ainda havia desgosto.
— Imagine o tempo como... um rio. Ele tem uma nascente, e esse rio pode ser estreito, ter deságues em poças ou então acabar no denso e enorme oceano. Pode passar por águas turbulentas ou se encontrar com outros rios, o que os humanos acreditam ser a besteira do destino ou qualquer outra idiotice. Ou então, o rio pode dar numa cachoeira que o despenca a toda força...
Prestando atenção na explicação, Reid tentava seguir o raciocínio.
— E cada ser vivo é um pequeno bote no rio do tempo. Alguns rios são longos, enquanto outros são curtos; mas cada ser vivo possui seu próprio rio. — Continuou. — As pessoas pensam que estão fazendo a diferença; mas elas apenas seguem a correnteza predestinada de seus rios. A diferença é quando você tem a noção do futuro!
Desenhando um pequeno barco nas linhas que fizera, virou sua cabeça para Reid e explicou o motivo dele não aparecer em suas visões como havia imaginado.
— Aqueles que sabem o futuro possuem um remo no barco, e eles desviam do curso natural das águas e navegam em margens que se escondem da minha visão. Eu vejo apenas aquilo que é para acontecer, as outras possibilidades não são percebidas por mim, e você sabia de muita informação de um dia que você não deveria nem existir mais. Você navegou por águas que não podia, seu insolente, e agora minhas visões estão sendo afetadas por decisões que você toma... Haverão de existir inúmeros futuros agora, porque você mudou coisas que deveriam ser imutáveis!
Sabendo que seria uma ameaça em potencial ao 8-0-7, Reid rapidamente se afastou da criatura, a qual o tentou pegar selvagemente com seu braço longo e magro, sem sucesso. Levantando-se do chão donde desenhara a explicação após o agarrão inexato, começou a coçar sua cabeça mais forte do que já o fazia, sangrando cada vez mais pelo chão da sala.
— Eles acham que poderão brincar com você, verme... Talvez seja a chave para transformar este mundo em algo muito maior do que você ou eu! — Virando-se para Reid, o Oráculo apontou seu dedo para o pescoço dele. — Prove que estão errados se acham que você é um brinquedo. O odeio por ser a única exceção da minha habilidade; mas estava esperando algo assim há séculos!
— Do que está falando??
— Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas... Se você se conhece; mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha, sofrerá também uma derrota... Se você não conhece nem o inimigo e nem a si mesmo, perderá todas as batalhas!!
Batendo com força sua mão na parede com um soco, quebrou-a com o impacto, jorrando sangue pelas paredes da sala. As demais luzes se acenderam e mostraram que era a cela do 8-0-7, com bastantes símbolos arranhados nas paredes, com uma porta de ferro densa atrás de Reid, abrindo-se quando a olhou. Seguindo até a porta, virou-se para trás e viu a Anomalia encarando-o, mesmo não tendo olhos, como se soubesse onde estaria.
Ao sair, viu que apenas havia um corredor longo com armas automáticas apontando para ele. Suas miras apontavam para o peito dele, deixando alguns pequenos lasers infravermelhos focados no coração do rapaz. Andou calmamente pelo corredor com medo das armas fixas na parede atirarem nele. Ao chegar até o outro lado do corredor, agora com as armas mirando em suas costas, bateu na porta de ferro à frente, esperando alguma resposta.
Após sua batida, a porta se destrancou e abriu-se verticalmente, subindo, revelando três agentes-militares Lambda, com roupas semelhante às da SWAT, com luvas, capacetes, óculos de proteção, coletes blindados e botas grandes, todas escuras, com um logo pequeno da Fundação S.E.T.H. no peito e um logo grande nas costas; mas por estarem na Sede de Washington, sofria alterações. Todas as Sedes possuíam o mesmo símbolo de estrela; mas cada uma tinha seu próprio adorno, com o de Washington envolvendo a estrela num círculo azulado e com listras vermelhas e brancas.
Gritando para Reid colocar as mãos na cabeça, obedeceu-lhes sem hesitar, com medo de que atirassem nele. Acionando as algemas magnéticas e levando-o à força a algum lugar, Reid passou por uma ponte que ficava logo atrás dos militares quando saíra da cela do Espécime 8-0-7, uma ponte com cerca de dez metros de altura que cortava aquele lugar por completo, mostrando salas de pesquisas abaixo, acima e aos lados. Não importava para onde Reid tentava olhar, centenas de agentes-cientistas, tanto Zeta, Lambda e Alpha, estavam em pesquisas frenéticas com todo e qualquer tipo de análise.
A construção era majoritariamente branca com vidros alternando entre transparente e translúcido, ambos azul-claros. As divisórias das diversas salas de pesquisa tinham contornos escuros, com várias paredes divisórias. Com a ponte tendo um comprimento de cinquenta metros, Reid observava atentamente os vários tipos de testes que faziam, envolvendo diversas ajudas da robótica. Ao chegar ao final da ponte, um pequeno pátio central ligava a várias escadas, tanto rolantes quanto com degraus fixos, e aos elevadores.
Apenas em silêncio e assustado, Reid se deparou com Ashe saindo do elevador à sua frente, causando uma discussão com aqueles militares.
— Ninguém me falou que iam jogá-lo na cela do 8-0-7 como um pedaço de lixo. Quem autorizou isso??
— Foi o agente Hill, Ashley.
— Eu já disse p'ra não me chamarem pelo nome, vocês não aprendem?! E vou ter uma conversinha com o Hill depois... Como podem tratar nosso hóspede assim? — Pegando Reid pelos braços dos agentes-militares, andou com ele até o elevador donde viera. — Eu cuido dele a partir de agora, vão!
Entrando no elevador e clicando no botão para ir ao quadragésimo sétimo andar, Ashe se cansou da pose de "má", mesmo que ninguém tivesse caído nisso, voltando a ser inocente e confiante.
— O 8-0-7 machucou você? — Desativou as algemas de Reid
— Só... tivemos uma conversa, não se preocupe. Para alguém que vê o futuro, é um pouco ansioso, hem?
— Que nada, ele só odeia os humanos. Na verdade, ele odeia tudo. A doutora Monviso quer ver você para conversarem um pouco, sabia?
— 'Pera, Monviso?! Letizia Monviso? A renomada cientista??
— Sim, ela gosta de uns... Espécimes diferenciados, e saber que você "vai morrer" e não causar problemas a deixou louca! — Reid engoliu saliva com medo do jeito que Ashe falara. — Quer dizer, não vão te machucar; mas se tentarem te matar, meio que não vamos perdê-lo, sabe?... Me expressei mal, desculpa. — "Pare de piorar a situação, Ashe", pensou consigo.
Encostando-se na parede do elevador, desabafou um pouco com seu novo amigo, continuando:
— Os ataques constantes das Mariposas estão ganhando mais força com o passar do tempo, e mais pessoas estão indo p'ro lado deles... Acho um bando de idiotas com a gente.
— As Mariposas Sangrentas estão cada vez mais desafiando vocês, né?
— Aff! Nem me fale, eles dizem que somos uma conspiração, que mentimos, blá blá blá!... Certeza que a HORUS 'tá envolvida com eles...
— Mas você acredita nisso? — perguntou Reid.
— Óbvio que não!! Eu me apresentei a eles porque... Eu fiz de tudo p'ra provar minha confiança porque a Fundação quer o bem da humanidade, eles nos defenderam, ainda nos defendem e vão nos defender! É uma besteira o palco que dão para eles...
Parando de conversar quando chegaram ao andar desejado, Ashe procurou a agente Monviso para mostrar-lhe Reid, o Espécime ainda não enumerado; mas viu que todos daquele andar estavam de olho na televisão, e, provavelmente, os demais também estariam.
"Um dos maiores escândalos de testes da Fundação? Após o que parece ser um dos piores ataques enfrentados pela organização mundial S.E.T.H., cerca de seiscentas Anomalias fugiram depois de uma das maiores Jaulas já vistas ser atacada e liberar tantos seres perigosos pelos Estados Unidos. E o mais surpreendente não é isso, e sim, a 'Jaula do Colorado', como chamada informalmente, não ser documentada em nenhum momento pela Fundação e estar localizada abaixo de uma cidade sem autorização."
A Fundação possui quatro divisões estruturais: a Instalação, as Sedes, as Bases e as Jaulas. Apenas há uma Instalação, e é onde os agentes Ômega atuam, de acordo com relatos da Fundação; localizada em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos. As Sedes são locais principais de pesquisas e de desenvolvimentos, restringidas apenas uma por continente em sua grande maioria; sendo elas: a Sede Leviatã, no Oceano Pacífico; a Sede de Paris, na Europa; a Sede do Cairo, na África; a Sede de Camberra, na Oceania; a Sede de Pequim, na Ásia; a Sede de Washington, na América; a Sede Ísis, uma instalação em órbita; e a Sede Bóreas, na Antártida.
Ademais, Bases são agrupamentos e lugares usados para o âmbito bélico, militar, produtivo e, às vezes, habitacional; espalhados por todo o planeta, como forma de abrigar e sustentar aqueles em volta, mesmo não sendo o foco. As Jaulas, especificamente, são locais de aprisionamento e contenção de Espécimes, evitando sua presença no exterior. Em suma, são subterrâneas, com diversas entradas; mas com um aspecto em comum: um enorme pátio central liga todos os andares, com cada andar tendo longos corredores com salas de diversos tamanhos, onde contêm os Espécimes já capturados.
"De acordo com nossas fontes, um tremor na cidade preanunciou diversas Anomalias agressivas fugindo por vários túneis subterrâneos. Cerca de duzentos militares e cem cientistas morreram durante a madrugada de hoje, além dos habitantes da cidade sobre a base. Mesmo que seja uma tragédia para as famílias das vítimas, o FBI e a CIA começaram a pressionar a Fundação para que ela explicasse o porquê de não falar absolutamente nada sobre a Jaula escondida. Outros países também desconfiam das intenções da Fundação e ordenaram, por exemplo, que a Interpol, o MI-6, a FSB, o MSS, a DGSE e o Mossad investigassem a fundo os esquemas e o propósito da Fundação em seus territórios."
Reid, olhando para Ashe, viu que seus olhos ficaram duvidosos com a Jaula que até ela desconhecia. Por qual motivo precisavam esconder um lugar desses do público? As federações mundiais começaram a questionar o quão confiável a Fundação aparentava ser com toda a ajuda que davam aos países, sendo militar, econômica e até sociopoliticamente. Ashe, a qual tinha um motivo nobilíssimo por sua luta, ficou sem chão naquele momento.
"Nenhum grupo se responsabilizou pelo ataque, além de... Esperem um minuto...". A repórter parou de falar por um instante e pôs a mão em seu ponto de comunicação no ouvido para escutar o que lhe haviam transmitido. "Acabamos de receber uma nota da Fundação dizendo o seguinte: 'A Fundação S.E.T.H., em conformidade com o ocorrido supracitado, convoca a Organização das Nações Unidas para uma conferência urgente a todas as federações para um esclarecimento; como prova de confiança, decidimos revelar dois dos agentes Ômega para falarem sobre. A Fundação S.E.T.H. ordena que todos os soberanos mundiais reúnam-se nesta noite acerca de toda confusão causada; atenciosamente, O Concílio'".
Todos os agentes daquele andar ficaram boquiabertos, assim como todas as outras pessoas pelos Estados Unidos. Minuto após minuto, os demais jornais doutros países começaram a noticiar a partir da notícia dada e uma repercussão desenfreadamente tomou conta da mídia. Jornais, rádios, programas, redes sociais, vídeos circulando sobre o fiasco da Jaula do Colorado, exposições falsas de informações e o maciço sentimento de dúvida sobre a Fundação estava presente pelo mundo inteiro.
Reid, distanciando-se de Ashe para ir à janela do andar, percebeu onde estava. À frente dele; mas abaixo, o Memorial Lincoln, e virando-se, estava a distância o enorme obelisco do Monumento a Washington na altura de seus olhos. Reid percebeu que realmente estava na capital americana. A Sede de Washington foi construída sobre o National Mall, tendo diversas conexões subterrâneas e contornando até o Capitólio e a Casa Branca, com diversas torres secundárias e um arranha-céu central de duzentos e trinta metros, com mais de sessenta andares, onde Reid estava com Ashe quando viram a notícia.
Muitíssimos agentes começaram a receber diversas ligações, além duma multidão começar a surgir em volta da Sede de Washington. Há mais de dezenove décadas, desde sua criação oficial em 1827, a Fundação S.E.T.H. apenas tinha um único agente Ômega revelado, seu fundador original: Erich Vogel-bähn. A barulheira das conversas avulsas ensurdecia qualquer um ali perto, pois as dezenas de andares com centenas de agentes somados com a aglomeração do lado de fora crescia o volume a cada instante.
— Reid... Venha... — dizia Ashe, ao menos, tentava dizer em meio àquela falação.
Agarrando a mão de Reid com força, entrelaçando seus dedos, voltaram ao elevador e Ashe pensava aonde ir, já que estava um pouco confusa com tudo que ouvira na televisão. Pegando seu cartão Alpha e enfiando-o numa abertura do elevador, teve permissão para ir aos andares inferiores, querendo ficar em sua cela até acalmar-se.
— Você vai... ficar perto de mim, 'tá?...
Descendo até o décimo andar subterrâneo, cinco andares abaixo donde o 8-0-7 estava sendo mantido, foi aos andares com dormitórios. Ashe levou Reid à sua cela, pois mesmo que ainda fosse uma Alpha, era uma Anomalia. Sem humanidade, sem direitos concretos, apenas benefícios temporários. Ao chegar perto de sua cela, onde ficava no final do corredor esbranquiçado, junto aos dormitórios de agentes Lambda, dois guardas estavam em frente de sua porta, com um deles estando sentado num banco ali perto e o outro de pé com um rifle.
— Boa tarde, agente O'Donnell... Recebemos um comunicado de três agentes dizendo que você interrompeu a abordagem deles com o suspeito que coincidentemente está do seu lado.
— Algum problema com isso, Marley? Estava apenas dando uma voltinha com ele, mostrando como as coisas funcionam, sabe?...
— Até poderíamos deixar; mas sei que você acabou de ver a notícia, não temos tanto tempo p'ra ficar "passeando" pela Sede... Precisamos levá-lo. Agora! Entre na sua cela, Ashe.
Mesmo que simpática, aquela situação sobre a Fundação deixou-a nervosa, fazendo-a entrar murmurando em sua cela. Vendo por alguns instantes quando a porta do quarto dela se abriu, era um lugar simples: paredes, chão e teto brancos e uma cama no canto direito. Nada muito diferente do padrão, com um tamanho um pouco maior de três metros de largura e de comprimento.
Levando Reid à agente Monviso, algemando-o novamente, subiram ao andar que Ashe levara Reid da primeira vez; mas agora, com menos transtornos, passaram sem problemas. No final da sala daquele andar, uma saleta com uma mesa no centro, a qual havia um computador encimando-a, diversos quadros com diplomas e certificados nas paredes e uma estante cheia de livros, todos da mesma autora: Doutora Letizia Sibin Monviso.
— Sente-se na cadeira, por favor — pediu um dos guardas, desativando sua algema, enquanto o outro ficou do lado de fora daquela pequena sala.
Sentado, esperando alguns minutos, agente Monviso chegou, pedindo para que o guarda se retirasse de sua sala e deixasse-os a sós. A agente Monviso era uma afamada Alpha, nascida nos Estados Unidos; mas com descendência italiana. Havia diversos prêmios de ciência moderna e de biotecnologia pelas descobertas feitas na Fundação. Quando entrou, estava com seu cabelo espiralado preto solto pelo corpo, batendo até as costas, nitidamente diferenciando seu jaleco branco. Usava óculos afinados nas pontas e um sapato preto de camurça.
— Desculpe-me a demora, está uma correria hoje! Hehe... — disse a cientista ao jovem, rindo de nervoso.
— Tudo bem, não se preocupe, é uma honra conhecê-la! Estudei muito sobre você, doutora Monviso!
— Ó! Obrigada, é bom ouvir um elogio de vez em quando. — Cumprimentou o jovem com um aperto de mão após ele se levantar para olhá-la de perto, sentando-se logo depois para conversar com aquele rapaz. — Você me chamou muito a atenção, principalmente com a Ashley me perguntando o que dizia seu efeito passivo.
"Ashley...", pensou Reid, associando que era o nome verdadeiro de Ashe, sendo este um apelido, o mesmo nome que ouvira ao sair da cela do Oráculo.
— Você disse que estudou sobre mim, vamos ver se é um fã? Você lembra como eu organizei as Anomalias?
— Claro que sim! — respondeu-lhe. — Você dividiu em quatro ordens físicas, né?!
— Que orgulho, Reid, isso mesmo. A primeira é a ordem Utensilia. Algumas Anomalias acabam surgindo por meio de coisas inanimadas, como objetos, construções, veículos, roupas, fenômenos... São raros e podem possuir um pequeno grau de consciência; mas ainda são seres inorgânicos, portanto, não têm direitos. A segunda ordem é chamada de Deformis, que é qualquer tipo de ser que sofreu uma mudança radical na aparência ao ponto de não se parecer com o que era antes de se transformar, além da grande maioria deles perderem o discernimento. Você conheceu o Oráculo, por exemplo. Assim como os Utensilia, não recebem direitos, pois sua mente se desfez e se quebrou, de certa forma...
Reid, mesmo que apreciasse as falas explicativas de Monviso, conseguiu entender a qual ponto ela gostaria de chegar.
— Outra ordem é a Entia, e qualquer ser vivo que não seja um humano e que não se tornou uma aberração é posto. É claro que são tratados como "selvagens", já que cientificamente são animais, plantas, fungos, bactérias, vírus... E, é claro, temos a ordem em que se encontram você e a Ashley: a ordem Humani. Há mínimas ou médias mudanças físicas; mas sua consciência ainda é preservada e sua humanidade entra em uma filosofia muito questionável. Você perdeu sua humanidade ou ainda faz parte de um de nós? Nem eu sei responder, entende?...
— E onde entram meus direitos nisso? Já que você não deixou tão clara essa parte...
— Garoto de poucas palavras... Jovem; mas direto, gostei de você. Nós da Fundação, como imagino que você já saiba, usamos Anomalias para conter outras Anomalias. A humanidade só evoluiu por causa do cérebro, pois não somos mais rápidos do que uma galinha, nossa resistência é à base de remédios e qualquer mudança de temperatura nós tendemos a ficar incomodados. Nós somos frágeis, Reid, mais do que imagina.
Levantando-se da cadeira, Monviso começou a andar e ficou parada na janela de sua sala, olhando a multidão em volta da Sede, com suas mãos no bolso do jaleco.
— As pessoas pensam que estão seguras; mas eu te afirmo, somos muito fracos... Porém, há vocês! — Monviso se aproxima de Reid e põe suas mãos em volta da cadeira, pressionando o rosto dele para trás enquanto o encarava bem perto, olhando-o duma ponta à outra. — As Anomalias! Me apaixono por cada Anomalia que encontro, cada uma única e poderosa, eu quero possuir cada Espécime para o lado da humanidade, Reid... Quero tê-las comigo...
Ajeitando o jaleco, arrumando suas mechas que caíram no rosto dele e sentando-se novamente, colocou as mãos cruzadas em cima da mesa, em forma de punho, dizendo:.
— Quando uma Anomalia ainda possui consciência, os direitos humanos ficam em um limbo de "ainda devemos servi-los ou não?". Um pouco de legislação... Você se lembra da Lei nº 8.190 de 2003?
— Hum... — Pensou Reid. — Aquela que cita os acordos Anomalia–Humanidade?
— Uau! Queria que todos os jovens fossem como você... Essa mesma. Ela surgiu depois do Segundo Contato e diz, resumindo, que "um Espécime ainda senciente pode desfrutar de alguns direitos se... e somente se ajudar estritamente em missões da Fundação". Acho que você já percebeu isso com a Ashley, certo? Ela é um caso à parte em alguns quesitos; mas ainda tem limites do que pode ou não pode fazer.
Retirando alguns papéis de sua gaveta, Monviso os colocou sobre a mesa, com uma caneta ao lado.
— Nessas folhas, estão alguns direitos que você poderá possuir se aceitar nos servir quando necessário. Infelizmente, preciso te avisar... Em 2020, na Indonésia, impedimos um vulcão de entrar em erupção, acho que você se recorda disso; mas como sabíamos que um Espécime suportaria magma fervente? Com testes anteriores... Precisamos testar você de tempos em tempos.
Lendo rapidamente as folhas, Reid focou nalguns aspectos importantes. Obediência a partir de agentes Lambda para cima; contenção não programada caso haja alguma situação imprevista; permissão de ferimentos graves na existência de descumprimento de ordens; translocação incomum quando houver urgência de pedidos com o Espécime... Eram muitas coisas mínimas; mas todas demonstravam o mesmo: subordinação. Em troca de ter novamente alguns dos privilégios perdidos ocasionalmente ao transformar-se numa Anomalia, o livre-arbítrio era dispensável, perdendo a voz da opinião.
— E... como funcionará isso?
Ao ver que Reid tremeu enquanto segurava as folhas, Monviso tentou acalmar o jovem, dizendo:
— Olha, eu sei que não é nada fácil... — Esticou seus dedos e pô-los sobre a mão de Reid, acariciando-o. — Posso ter sido uma "menina-prodígio" no colégio e ter ganhado diversos prêmios; mas ainda não estou acostumada a entregar alguns desses acordos de lealdade a pessoas que não possuem nem o mínimo do que foi garantido quando ainda eram humanos. Entenda que é a melhor opção em que você sairá ganhando. Precisamos fazer testes em você de qualquer jeito, e isso acontecerá com ou sem sua permissão, porque podemos e vamos fazer isso. Entretanto, queremos sua confiança, pois, em algum momento, precisaremos de você...
Reid pensou acerca da proposta feita, terminando de ler o restante do acordo de lealdade. Permissão de visita uma vez a cada dois meses; liberação semestral acompanhada e restrita por guardas; acesso a missões periódicas... Mesmo que não "saísse ganhando" tanto, Reid poderia ter a chance de manter contato com Rebecca, sua amiga de infância a qual se preocupa ainda. Pegando a caneta para assinar, Monviso o interrompeu.
— Espere um segundo, pedi para trazerem algo...
Chegando coincidentemente próximo à fala da agente Alpha, o mesmo guarda que trouxera Reid entrou e deixou um aparelho semelhante àquele que o chefe de segurança Smith havia usado em Stanford; mas com uma aparência mais sofisticada, com um visor maior e uma seringa em seu compartimento. Retirando a seringa, amarrou o braço de Reid com um torniquete para coletar seu sangue.
— É rápido, assim você também saberá quem é nessa sua nova vida...
Usando a seringa e retirando alguns mililitros de sangue dele, Monviso pegou o tubo em que o sangue estava armazenado e colocou-o no dispositivo, o qual injetara algumas substâncias e centrifugou-o. Autorizando Reid assinar os papéis após terminar de lê-los, o dispositivo apitou.
— Nossa... Que código baixo o seu, faz tempo que não catalogamos um assim... Bem-vindo, Espécime 8-4!
Depois do dispositivo calcular o código de identificação de Reid e revelando ser o número oitenta e quatro, assinou com sua rubrica os papéis. Cada Anomalia emite um padrão único de substâncias que, decodificadas no sistema da Fundação, caracteriza o número do Espécime, resultando em, muitas vezes, números em branco na ordem numérica, uma vez que não aparecem de forma ordenada e sequencial.
— É uma honra poder contar com sua ajuda, Reid! Pedirei para que fique com a Ashley até terminarmos de resolver esses... imprevistos.
Chamando os guardas e algemando-o novamente, desceram mais uma vez ao andar da cela dela. Ao chegarem, desativaram sua algema, abriram a porta da cela e um deles disse:
— Se comportem, quando acabarmos de resolver algumas coisas, voltaremos. Converse um pouco para ficar menos tenso, garoto.
Antes de entrar, percebeu que havia uma placa amarela com os números sete, dois, oito e quatro, enfileiradamente estampados, referindo-se ao código 7-2-8-4. Relembrando quando encontrou os militares armados, lembrou-se de ter visto a mesma placa amarela; mas com outros números, respectivos do 8-0-7. Ambos, pela cor amarela da placa, eram Azazéis. Vendo a cela de Ashe, Reid percebeu que havia apenas uma cama, como notara da primeira vez, e uma cadeira de escritório com rodinhas ao lado dum gabinete simples de plástico.
Sentada na cama, descalça e com as pernas cruzadas, estava segurando um pequeno rádio portátil cinza, sintonizando entre as estações para ter mais alguma notícia. Estava tão distraída que mal viu Reid entrar, apenas o notou quando se aproximou perto de sua cama.
— Ó! Te deixaram aqui enquanto estão resolvendo isso, né? Ignora a bagunça, hehe... — Reid, sentando na cama, ficou ouvindo o que Ashe tentava procurar no rádio.
Enquanto isso, diversos repórteres e investigadores buscavam informações sobre o acontecimento da madrugada na Jaula do Colorado; mas a Fundação S.E.T.H. havia cercado todo o lugar após duas horas de quando houve o ataque. Entretanto, a Fundação não sabia que uma repórter estava ali por perto coincidentemente quando a situação estava crítica na Jaula.
Onze horas antes de Reid acordar na Sede de Washington, às duas da manhã, Christina Birch, uma repórter novata de vinte e nove anos da ABC News, possuía pistas e informações de movimentações suspeitas numa pequena cidade no Colorado, no condado de Kiowa. Haswell era uma cidade exígua com cerca de duzentos e trinta habitantes; mas, de acordo com pesquisas e dados fornecidos, em dez anos, a cidade gastou oito vezes o consumo de energia padrão e quadruplicou o gasto de água. Fazendo uma reportagem no local para expor o que seria um "escândalo de propina política", a repórter encontrou mais do que deveria naquela noite.
— Já entrevistamos quase todos os cidadãos, Chris, ninguém falou absolutamente nada sobre isso, é como se não soubessem de nada — falou o motorista da van de reportagem, o qual também era seu cinegrafista.
— Eu sei disso, esse pessoal deve estar recebendo p'ra ficarem quietos. Não tem como não saberem o motivo de declararem tanto gasto hídrico. — Continuou Christina. — E você falou certo, quase todos; ainda está faltando duas casas, um mercadinho e um bar. Podemos deixar as casas e o mercado p'ra amanhã; mas ainda dá p'ra pegar o bar aberto, vamos!
Revirando seus olhos de cansaço; mas concordando em ir, o cinegrafista continuou acelerando a van até o bar que, para o azar dele, realmente estava aberto àquela hora da noite. Estacionando a caminhonete, avisou à Christina que estava cansado e que não iria junto. Descendo da van, entrou no bar, procurando alguém para entrevistar. No entanto, como era de esperar, havia apenas três pessoas no bar, sendo uma delas, uma atendente duns cinquenta anos de cabelo um pouco grisalho.
— Ora, ora, se não é a reporterzinha, como 'tá in'o a sua entrevista?
— Não posso comentar muito; mas indo muito bem, obrigada — disse, tentando disfarçar o constrangimento. — Aliás, vim falar com você, gostaria de fazer algumas perguntas.
Pegando um gravador do bolso, encimou-o na mesa, apertando o botão para gravar.
— Agora são... duas e quarenta da madrugada de sábado, dia vinte de setembro de 2025. Aqui é Christina Birch e estou com... — Olhando para a taberneira, esperou que ela falasse seu nome.
— Agatha — falou; mas não muito contente.
— Agatha... Enfim, eu andei pesquisando sobre sua cidade e vi que houve uma movimentação enorme de caminhões dez anos atrás; mas a cidade não cresceu em... em absolutamente nada!
Haswell era uma cidade do interior que poderia facilmente ser chamada de "caipira". Estabelecimentos familiares, nenhum destaque econômico, ruas desertas com árvores secas pelo clima semiárido do Colorado, gramas mortas em volta dos pneus de trailers, barracões velhos... Nada de interessante vinha dali; mas ainda assim, a repórter insistia que era nem um pouco comum haver aquela movimentação e não aparecer nada de destaque na cidade.
— Minha emissora disse que seria minha última chance de matéria, e se eu não conseguir nada até amanhã, eles vão me cortar... Por favor, Agatha, se você sabe de alguma coisa, de qualquer coisa, me fale. O que a cidade fez com tantos caminhões e o que são os gastos absurdos de energia?
— Desculpe, garota — dizia enquanto limpava um copo por dentro usando um pano —; mas eu não faço ideia, sô' só uma garçonete velha.
— Alguém está subornando vocês? É por medo que não me falam?? Eu posso ajudar, eu posso...
—Olha, foi mal mesmo; mas se não vai comprá' nada, não posso gastar mais a minha saliva. Se quiser falar com aqueles dois bêbados, pode ir.
Decepcionada consigo, Christina desligou o gravador e pegou-o, colocando-o em seu bolso na calça jeans. Ao dar alguns passos, ficando no meio daquele bar com pisos de madeira e mesas velhas, o chão começou a tremer, balançando tudo num raio de quilômetros. Os copos suspensos no balcão caíram, alguns carros apitaram os alarmes e um silêncio profundo veio em seguida. Assustada, a repórter não sabia o que havia acontecido; mas descobriria o quanto antes contra a própria vontade.