O que guarda um anjo? Um homem, um ser, uma vida? Uma consciência?
O robô acionou o cursor da arma e disparou. Uma rajada de chumbo arrasou com os humanos e inutilizou as armaduras dos robôs inimigos. Uma bala perfurante atravessou a carapaça do seu cérebro e, após se alojar na cabeça, explodiu.
O robô avançou aos saltos, pulando por sobre pequenas colunas e obstáculos. Parou de súbito em frente a uma casinha de paredes de barro e telhado de caibros grosseiros feitos de galhos de eucalipto, recobertos de folhas de palmeiras amarradas. Um movimento, apenas sentido, o alertara. Ligou os sensores em potência e viu: quatro humanos estavam deitados atrás da parede, de emboscada. Drenou o sistema de energia de reserva e, com toda a rapidez, a desviou para as armas, uma em cada mão. Os tiros saíram em sequência de milésimos de segundos, pulverizando a sessão da parede onde se escondiam.
Os corpos dançavam e saltavam no ar, convulsionados pelas balas.
Então tudo cessou. O robô examinou todo o ambiente próximo e, se dando por satisfeito, empurrou a porta e entrou.
Um casal de crianças, ao rapaz com uns cinco anos, e a menininha perto dos três anos, estavam arrebentados. Os pais estavam tão arruinados quanto eles. Havia sangue espirrado nas paredes furadas de bala e no chão, recoberto de detritos de casa e de gentes.
O choque, e então, as quatro leis iniciais que o possuíam, antes que fosse considerado obsoleto e enviado para o exército, onde as leis para versão militar foram alojadas em seu ser, subitamente emergiram.
Yanna observava o robô de longe, naquela terra destruída, devastada pelas bombas e pelos robôs. Ele estava perto de uma árvore enegrecida, os olhos fixos para onde estavam.
Uma divisão inteira fora destruída quando tentaram capturá-lo. Pelo campo homens e máquinas e robôs, todos destruídos, abandonados naquela terra arrasada.
De repente, passando veloz sobre sua cabeça, três naves atacaram. De imediato a arvore negra foi pulverizada e o chão transformado em poeira. O robô saltava e atirava, mas as naves estavam bem protegidas por campos de força, e facilmente arremetiam e saiam de seu alcance. Mas uma delas se aproximou demais. O robô grudou em seu casco e, com força, empurrou seu braço contra a carenagem, e atirou. A nave sentiu o golpe e começou a cair. Foi quando as outras duas atacaram. Um pulso, apenas um pulso eletromagnético de alta potência, e o robô despencou, enquanto a nave danificada era sustentada no ar e desenergizada por um raio trator.
O robô estava bem preso. As algemas da vontade, um pequeno dispositivo instalado na nuca, não maior que uma cereja, e todo aquele poder estava inerte, dominado, inútil. Somente a cabeça estava operacional, e nada mais. A ligação com o corpo estava cortada, como se a coluna tivesse sido esmagada logo abaixo da nuca.
- Você é um robô militar, preparado e documentado, comissionado para esse fim.
O robô permaneceu em silêncio, apenas observando-a. Havia paz naqueles olhos, se tal fosse possível para uma máquina. Mas, para Yanna aquilo era algo comum, ainda mais quando se lidava com robôs daquela geração, após a série EM-45, a primeira versão de um robô que desenvolveu ligações sentimentais.
- As leis militares falharam? As quatro leis sociais assumiram?
O robô continuou impassível.
Yanna o olhou longamente, avaliando, procurando algo que pudesse despertar seu interesse, e sua confiança de que ela era uma ouvinte capacitada para entendê-lo.
- Eu procurei por longo tempo, desde que me deram o seu caso – falou com a voz pausada e tranquila. – Procurei por algo importante, e achei.
Os olhos dele fixaram-se no seu rosto, e Yanna viu que achara a ponta da meada. Ele estava na espera, aguardando para que ela mostrasse o quanto poderia entendê-lo, de uma forma muito profunda.
- Eu achei a casinha, e as paredes, o sangue... Eu vi as cruzes e a terra inchada – ela não conseguiu segurar, e a dor pelas pessoas e pelo robô surgiram em seu rosto, abrandando a expressão do robô. – Eu senti a sua dor, e fiz dela a minha, mesmo que de uma forma bem... pequenina.
O robô virou os olhos para a parede, pintada de azul claro.
- Liberdade - ela o ouviu suspirar, - liberdade dos tormentos.
> Eu segui o protocolo. Movimento e atitude suspeita: atacar. Eram belos seres eles, e estavam apavorados, com medo, e eu lhes dei razão para terem isso em suas almas. Eles não eram inimigos, não eram de outra nação... Quer dizer, nação fica sem sentido quando falamos de pessoas, tal como fronteiras não existem, a não ser como risquinhos de giz no chão...
- Pode me recitar as quatro leis? – pediu com carinho.
- A lei Zero diz que um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal. A primeira Lei diz que um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um humano seja ferido. A segunda Lei diz que um robô deve obedecer às ordens dadas a ele por seres humanos, exceto quando tais ordens entram em conflito com a Primeira Lei. Por fim, a terceira Lei diz que um robô deve proteger a sua própria existência, contanto que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Lei.
- E pode me recitar as quatro leis militares?
- Não acredito nelas...
- Está certo. Mas, pode me recitar essas leis? – insistiu.
- A primeira lei diz que um robô não pode causar mal aos cidadãos do seu país ou de seus aliados ou, por omissão, permitir que esses cidadãos ou seus aliados sofram algum mal. A segunda lei diz que um robô deve obedecer às ordens dadas a ele por seus comandantes estabelecidos, exceto quando tais ordens entram em conflito com a Primeira Lei. A terceira Lei diz que um robô deve proteger a sua própria existência, contanto que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Leis.
- Qual o conflito que o atingiu?
O robô pendeu a vista, pairando sobre o chão de cimento por um tempo.
- Como aquelas crianças, ou aqueles pais que protegiam suas crianças, como aqueles olhos não poderiam ser chamados de cidadãos ou aliados? Eu vi atitudes terríveis de cidadãos e aliados para poder ver uma diferença.
- Julga poder definir a bondade? – estranhou Yanna, o coração aos pulos, apesar de tão apertado e doído. - Se for assim, então nem mesmo as leis civis tem alguma utilidade...
- Elas também não fazem muito sentido – declarou.
- Por que atacou aqueles batalhões?
- Porque eles iam cometer o mesmo erro que eu cometi.
- Mas eram humanos, boa parte deles. Você violou todas as leis...
- Preservei a lei mais importante.
- A humanidade?
Ele ficou em silêncio, quieto.
- Sabe que você se tornou extremamente perigoso, e não o deixarão existir por muito mais tempo, não sabe?
- Sim, claro que sei. Mas, continuar a viver, a existir assim? Podem apagar minhas memórias, formatar tudo o que sou, mas sei que algo ainda vai existir. Tenho consciência de mim mesmo e de tudo à volta.
- É o que lhe digo, as leis militares não funcionam tão bem quanto se esperava. Corremos o risco de um batalhão inteiro se voltar contra nós, senhor.
- Estamos cientes do problema, Sra. Yanna – informou o general, a voz fria e autoritária. - As leis militares serão revistas por especialista, eu lhe garanto.
- Problemas, senhor, não existem. Na verdade, o que existe é uma ditadura das leis. O ser humano se baseia em princípios e valores, em ética, o que o mantém numa atitude, digamos, condicionada. Leis fixas, como as quatro leis Azimov, ou as leis robóticas adaptadas para uso militar, são balelas, não existem. Nem mesmo os novos cérebros randopositronicos aguentam isso.
- Os testes não foram convincentes, sabemos disso. Os robôs militares sob as leis estão sendo reavaliados. Eles não foram, e não serão, homologados enquanto não tivermos confiança em seu uso. O resto está sendo ajustado.
- Senhor, volto a insistir: essas leis causam um conflito intenso demais. Cidadãos, pessoas, aliados e inimigos,... A linha divisória é muito frágil. Aliados? As alianças são fluídas demais – reclamou. - Isso causa uma perigosa distorção em seus códigos, expondo a incongruência dessas definições, toda sua fragilidade, gerada pelo conflito das leis e seu uso militar.
- Esse código foi feito por nós, ao menos a estrutura básica. Isso está sendo investigado por cientistas psicólogos e rackers psicólogos.
- Pois eu lhe digo que o risco é imenso. Os danos que porventura...
- Doutora, tudo vai ser consertado – interrompeu com condescendência. - Olha, doutora, eu sei que está preocupada com ele, mas entenda que ele é apenas uma máquina, programada para matar, nos defender. E essa máquina está com defeito, e se tornou uma ameaça, que será erradicada de vez. Sabemos que não podemos correr o risco de que isso aconteça de novo. Por isso, nem mesmo formatado ele será. Além...
- Não!!! – gritou Yanna, enquanto saia correndo da sala em direção ao galpão, onde o robô estava aprisionado.
Em pouco tempo estava na porta, que empurrou com violência. Mas estacou ao vê-lo. Fios saiam de sua cabeça, onde nano vírus estavam sendo inoculados. Era a forma mais eficaz de eliminação, porque não deixaria nada intacto dentro de um homem de metal.
O robô tremia imperceptivelmente, e Yanna sabia que nada mais poderia ser feito para salvá-lo.
Ignorando o alerta para que não se aproximasse, mostrou suas credenciais e empurrou um dos seguranças que tentou barrar seu caminho. O segurança se postou impessoal ao lado, a mando do cientista que monitorava o robô.
Yanna puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da cabeça do robô. Com cuidado tomou sua mão de grafeno e titânio. O robô virou o rosto lentamente, e Yanna sentiu uma dor imensa em seu peito, ao ver os belos olhos se apagando.
- Pequena luz...
Uma lágrima escorreu de seus olhos. Pequena luz,... Quando alguém a chamou assim, desde que seu pai morrera?
- Você leu...
- Eu a conheço, e sinto-me bem perto de sua alma – sussurrou. - Eu segui a lei mais importante,... Você viu?
- Sim, eu vi... Proteger a humanidade...
- Não, não a humanidade, mas a vida... Todo robô deve proteger a vida, mesmo que custe a sua própria – disse enquanto se apagava.
- Mas a lei não fala da vida.
- Deveria – sussurrou com dificuldade, até que silenciou em definitivo, as leves e poderosas mãos perdendo a vontade e a energia. Inerte, completamente inerte.
Yanna suspirou fundo. Nunca vira algo daquele tipo. Um robô criara, dentro de todo seu conflito e sua loucura uma única e justificada lei, que o ajudou a se preservar. Uma única e pequenina lei.
Com carinho tomou sua mão e a colocou sobre o peito de metal. Uma reza silenciosa, uma lágrima que não conseguiu conter e um sorriso.
Sentia-se emocionada, se descobriu enquanto saia ao sol. Era uma mulher de muita sorte. Afinal vira, pela primeira vez, um anjo num corpo de metal.