Berta, Ben e Michael ficaram parados, observando Augusto e a família irem embora. Michael pensava em como desejava ter o irmão por perto para sempre. Poderem brincar todos os dias. Mas aquilo era algo que não poderia ter. Rio Denso viraria ruína e ninguém jamais encontraria a cidade novamente. Por mais que desejasse aquilo, preferia que Rob tivesse uma vida normal, com pais que o amassem e, principalmente, que não tivesse suas mãos sujas de sangue, mesmo que o sangue fosse de pessoas desprezíveis.
Ben refletia sobre o que acabara de fazer. Tinha seus dois filhos ali com ele, e, por mais que Aurora tivesse morrido, poderiam tentar ser uma família feliz de novo. Porém, sabia que Rob estaria melhor com os pais adotivos. Dali para frente, a vida deles seria triste, melancólica e sem sentido. Haviam sobrevivido todos aqueles anos por causa das pessoas de Rio Denso e o que queriam fazer com elas. Depois que os matassem, não sabia ao certo como seria a vida. Teria seu Michael de volta, pelo menos isso. Mas uma vastidão de dúvidas borbulhava em seus pensamentos.
Berta ainda estava em fúria por Michael e Ben terem deixado Elisa ir embora. Para ela, a mulher deveria ter um fim tão ruim quanto o de Aurora. Se ela tivesse ido até Ben, aquilo poderia ter sido diferente. Mas eles a deixaram ir, e Berta os amaldiçoava por isso, mesmo sendo sangue do seu sangue.
Ficaram parados, sem trocar palavras. A chuva agora caía com fúria, deixando-os encharcados da cabeça aos pés. Raios iluminavam o céu negro, cortando a lua vermelha. Trovões ribombavam no horizonte. Estava na hora.
— Vamos — disse Michael, movendo-se colina abaixo.
Ben e Berta o seguiram. Raízes começavam a sair da mata e se agarravam ao corpo do garoto. Logo ele já não se movia mais com os próprios pés, mas sim com as raízes. Ele era parte das árvores e da natureza agora. De alguma forma, a magia do pai lhe dera esse poder. Insetos e aracnídeos começavam a sair da mata também. Grandes aranhas, escorpiões, formigas e tantos outros. Acompanhavam os três como um exército. E logo batalhariam.
Ben e Berta também foram envoltos naquelas raízes. Dessa forma, os três se locomoviam mais rápido e sem se cansarem. Pareciam de borracha, pois se esticavam conforme Michael fazia o percurso. Quando chegou na primeira rua da cidade, sorriu.
Observou pessoas fechando as cortinas de uma casa. Ordenou que uma das raízes quebrasse a madeira e procurasse por alguém lá dentro. Não demorou muito até ela voltar com três pessoas. A raiz da árvore transpassou pelas pernas delas e as trouxe empaladas para o garoto.
— Estão se sentindo bem? — disse Michael, com um tom sarcástico na voz.
Os três berravam de dor. Um homem mais velho chorava, pedindo perdão. Uma mulher de cabelos grisalhos pedia para que poupasse sua pequena filha. A garotinha de cabelos amarelos chorava, mas não dizia nada.
— E vocês pouparam minha mãe? Vocês me pouparam? Eu também era um garotinho naquela época.
Os três continuaram a berrar enquanto formigas e aranhas subiam pela raiz. Quando perceberam o que estava vindo em sua direção, começaram a se balançar de forma inútil. Poucos segundos depois, estavam sendo devorados e picados. Michael continuou a andar, deixando os três para trás e se deliciando com o som da dor. Berta e Ben apenas observavam. Aquele dia era de Michael, e apenas ele tocaria naquelas pessoas.
Pouco tempo depois, a cena se repetiu por toda Rio Denso. Pessoas estavam sendo devoradas vivas por bichos, outras cortadas ao meio pelas raízes. Michael cuspia em um ou outro e às vezes parava para conversar com eles. Quanto mais dor e pânico infligia, mais satisfeito se sentia. Tinha esperado por esse dia por tanto tempo, e finalmente ele chegara.
Aos poucos, postes foram caindo com a força das raízes. Moradores foram eletrocutados e o cheiro de carne queimada começou a invadir o nariz do garoto.
— Fujam! Não têm como se esconder de mim. Eu estou por todos os cantos. Eu sou tudo nessa cidade. Eu sou Rio Denso. Vocês me criaram e me fizeram assim, agora sofram. Corram!
Mas quem ele realmente queria ainda não tinha dado as caras. Julio Cani, o padre tão idolatrado pelos moradores de Rio Denso, quem começara tudo aquilo. Quem decidira que eles deveriam morrer apenas por serem demônios. Aquele que falava que seu Deus havia ordenado que ele limpasse a cidade. Agora, quem seria limpo dali seria ele próprio.
Aos poucos, a cidade foi se tornando um cemitério. Corpos jaziam caídos pelas ruas, outros ainda sendo devorados pelos insetos e aracnídeos. Fogo começava a tomar conta de algumas casas. A chuva ainda caía forte, mas não o suficiente para apagá-lo.
Michael parou na praça em frente à igreja. Sua mãe ainda estava lá — ou o que sobrara do corpo dela. Caminhou até lá com as raízes envoltas em seu corpo.
— Mamãe, sei que não pode me ouvir, mas como eu gostaria que estivesse aqui agora. Tenho certeza que seria o dia mais feliz da sua vida depois do que fizeram com nossa família. Espero que esteja feliz onde está, e saiba que nos veremos novamente, mais cedo do que você pensa — disse ele, ordenando às raízes soltarem-na daquela cruz e levarem seu corpo para a cabana onde vivia com o pai. Depois de tudo aquilo, daria a ela um enterro decente.
Ele rugiu com a dor que sentia no peito. Berrou:
— Onde está o padre? Quem me trouxer ele terá uma morte indolor.
Mas ninguém apareceu. Estavam ocupados tentando fugir da morte que corria atrás de cada um. Não demorou muito até Rio Denso ficar em silêncio, apenas com o som da chuva e o crepitar das casas em chamas. E ele ainda não tinha encontrado o padre. Virou-se para Ben.
— Onde ele pode estar, Ben?
O pai de Michael deu de ombros. Não fazia ideia de onde o padre poderia ter se escondido. Michael havia ordenado que as raízes procurassem todos e em todas as moradias. Estava se virando novamente quando uma fagulha despertou em sua cabeça.
— Nossa casa.
Os três voltaram para a colina o mais rápido que puderam. Pararam em frente à casa onde Augusto viveu por alguns dias e ficaram observando o caos lá embaixo. Estavam aguardando que as raízes vasculhassem a casa do médico e a cabana de Ben. Demorou apenas alguns minutos até voltarem com o padre pendurado e se debatendo.
— Ora, ora, se não é o grande Julio Cani. O puro, o caçador de demônios — disse Michael.
O padre cuspiu na cara do garoto, deixando-o irritado.
— Me mate logo, sua cria de Satã. Acabe logo com isso.
Michael gargalhou.
— Você acha mesmo que vai morrer assim, tão facilmente? Você vai morrer sim, um dia. Mas vai sofrer muito antes. Vai implorar para que eu te mate. Vai rezar para seu Deus e vai oferecer sua alma para o meu, tudo para que sua vida chegue ao fim. Mas não assim, tão facilmente, padre.
Julio arregalou os olhos ao ouvir aquilo. Começou a se debater mais ainda, mas as raízes não deixavam que se soltasse.
— Alguns amigos meus estão famintos, padre — disse Michael, olhando para a base das raízes.
O padre acompanhou o olhar do garoto e gritou. Formigas, aranhas e alguns escorpiões subiam por ela e iam na direção do padre.
— Mas não se preocupe, que elas não vão te matar. Vão apenas comer um pouquinho e só voltarão a se alimentar assim que sua carne estiver cicatrizada.
Julio se debatia enquanto os insetos e aracnídeos subiam pelas raízes. Quando chegaram, ele gritou. Aos poucos, filetes de sangue escorriam de onde cada um dos bichos mordia e devorava a carne. Michael, Ben e Berta ficaram observando, com um sorriso no rosto. Esperaram muito por aquilo e finalmente conseguiram. A cidade estava limpa e o padre em suas mãos. Imaginaram que Michael o mataria naquele mesmo dia, mas gostaram ainda mais de saber que o padre sofreria muito primeiro. E depois seria mandado para o Inferno.
Michael deixou o padre preso na árvore, envolto pelas raízes de forma que não teria como fugir. Voltaram para a cabana, para finalmente descansarem e enterrarem Aurora. No outro dia, torturaria Julio novamente.
E isso seguiria por mais de seis meses, até que o padre partisse.