Naquela noite de quarta, Erine estava quase chegando à loja de Fast-food no Shopping que Anne a chamou. Anne normalmente detestava sair, mas dessa vez foi quem teve a iniciativa. Erine até se assustou.
Quando ela parou na frente da loja, ela viu Anne lá dentro. Ela fez um sinal para que a amiga fosse até ela.
-Oi. -Erine a abraçou.
-Oi, Eri. Como você está?
-Nossa, muito bem. Até assustada por você ter me chamado primeiro. -Ela deu uma risada.
-Nossa. -Anne baixou o olhar. -Acho que eu precisava conversar com alguém.
Erine viu um olhar pesado no rosto de Anne. Alguma coisa havia acontecido.
-Você... O quê houve? -Erine olhou nos olhos dela.
-Muita coisa. Vamos ali na praça de alimentação. Ou sei lá, em algum lugar mais... Tranquilo.
-Ah amiga. Vamos.
As duas andaram um pouco. Quando Erine se deu conta, estavam na sacada, que dava vista à cidade. Durante a noite, Gardeville era belíssima. Erine suspirou. Aquela sacada, naquele shopping, foi onde Joe morreu.
Anne segurou a mão de Erine e deitou a cabeça em seu ombro.
-Muita coisa aconteceu nos últimos meses. Eu nunca imaginei que a gente ia lutar com um vampiro. Ou tentar.
Erine deu uma risadinha.
-Nem eu. E pensar que o Matt estava certo com toda a paranoia dele sobre vampiros.
-É. Ele avisou desde que os desaparecimentos começaram. Você acha que o Vrazael vai voltar?
-Ele vai. Desde sempre, ele volta e volta. Não é como se a gente fosse o fim dele.
-Não, não assim. Eu quero dizer, se ele volta enquanto a gente vive. Você acha que vamos ver ele de novo?
-Olha... -Erine pensou sobre aquilo. -Eu não sei. Mas se voltar, nós ainda temos nosso plano.
Anne olhou para longe.
-É. Mas dessa vez, sem a Clementina, ou o Mil. É assustador saber que aquele demônio pode nesse exato momento estar matando alguém em algum lugar.
-Eu às vezes tenho pesadelos com as crianças. Eu... -Erine controlou a respiração. -Eu achei que eles iam morrer aquele dia. Eu pensei que ia perder o único legado que o Joe deixou aqui.
Anne começou a chorar.
-Que merda. Joe... Por que ele era tão idiota às vezes? Ele era tão... Bobão. -Ela abraçou Erine. -Ele sempre via o melhor em nós. Eu xingava ele e queria todo mundo longe. Mas ele nunca ligava. Parecia que ele não se importava com nada.
Erine deitou a cabeça em Anne.
-Não sei também. Sabe, quando eu era pequena, eu fiquei doente. Muito doente. Eu sofria de uns problemas no pulmão. Eu fiquei com muito medo de morrer, na época uma notícia de uma menininha com problemas no pulmão ficou bem conhecida no país. Acho que era... Linda Greyman. É. Você se lembra?
-Não. O quê aconteceu?
-A menina teve uns problemas no pulmão, e ia morrer de qualquer jeito. Teve toda uma comoção, porquê a mãe dela não aceitava que ia perder a filha. No final, o pai da garota, ex-marido dela, fugiu do hospital com a filha. A esposa acabou tentando salvar ela, e foi levada junto. Todo mundo ficou em pânico, foi uma confusão completa. No final, descobriram que a garotinha sonhava em ver neve. Ela queria ver a neve de todo jeito. O pai dela sabia que ela ia morrer e realizou o sonho dela. Depois disso, ele se entregou, soltou a mãe da menina e sumiu na neve. O corpo dele nunca foi encontrado.
-Cara... Que horror. -Anne ergueu o olhar, e encarou Erine. -Deve ter sido terrível sentir aquela sensação toda.
-É. -Erine concordou. -Eu entendi o pai da garota quando eu vi como a Erika ficou. Ela faria tudo para ver o Joe uma última vez. E ela faria qualquer coisa para realizar o sonho dele. Agora essas crianças estão seguindo o que o Joe deixou. Todos os dias, eu prometo que vou proteger esses meninos. Eles são como filhos para mim. É como... Como se eles sempre tivessem feito parte da minha vida.
-Eu vejo isso. Eu via isso no Joe. Sempre perguntavam para ele porquê ele cuidava daquelas crianças, e ele dizia que eram como irmãos para ele. Apesar de tudo, ele agiu como um homem honrado até o final. Mas homens também... Por que fazem tanta cagada?
Erine riu.
-Não sei. Joe era um bobão, era como um herói para aqueles meninos. Ele foi um herói para eles. Assim como ele foi para mim.
-Para você?
-É. Quando eu estava no hospital com esses problemas de pulmão, eu conheci um menino. O nome dele era Linus. Linus tinha câncer em estado terminal. Todos os dias, Linus acordava e dormia alegre. Ele dizia que já tinha aproveitado o suficiente. Ele me disse que eu ia melhorar, e que tudo aquilo que eu passei um dia ia ser uma história para eu contar. O Linus era amigo do Joe. Ele era o melhor amigo do Joe. Nós três viramos amigos, e começamos a brincar às vezes no hospital. O Joe fazia eu me sentir segura. O Linus acabou morrendo uns dias depois, e eu fiquei sozinha no hospital. Acho que foi aí que eu comecei a desenvolver depressão.
"Mas uns dois dias depois, o Joe apareceu no hospital. Ele disse que veio me ver. Ele me disse que o Linus ia ficar triste se eu ficasse sozinha lá. Ele disse que ele não queria me ver triste. Eu vi uma luz nele. Uma luz que me fez sentir que ele era o meu anjo da guarda. Eu pensava nele todos os dias. Um dia, uma mulher me visitou, o nome dela era Mary, e ela fundou uma organização para proteção de crianças e adolescentes. Ela era mãe da Linda Greyman."
"Ela me contou a história dela, e me disse que eu ia melhorar, e quando crescesse, ia poder trabalhar com ela, protegendo crianças doentes e ajudando elas. Eu cresci, mas nunca esqueci aquilo. E quando eu perdi o Joe.. "
Erine parou e suspirou. Ela seguro as lágrimas.
-Você pensou que tinha perdido tudo. E depois encontrou um propósito. -Anne disse. -Eu sei. Você é forte, mulher. Eu te amo, amiga.
Erine se apoiou na sacada e olhou para longe.
-Desculpa pelo desabafo. Eu tinha vindo aqui para te escutar falar.
-É. Erine... -Anne suspirou. Ela olhou em volta, e viu que haviam poucas pessoas ali na sacada. Ninguém estava perto demais. -Eu... Eu queria te contar uma coisa. Faz tempo que eu queria falar isso.
Erine se voltou para ela.
-Anne?
-Sabe, eu acho que eu não escolhi muito bem na vida. Nem sempre eu escolhi. Mas desde que eu me conheço por gente, eu sempre gostei de mulheres. Eu achei que ninguém nunca ia perceber isso, mas o Matt, não importa o quanto você se esforce, parece que ele vê através da gente. Ele me deixou um bilhete dizendo que percebeu isso, e faz uns dois anos já!
Ela tirou do bolso da calça um pequeno pedaço de papel. Ela deu para Erine. O papel estava escrito:
"Oi, bobona. Eu vi que você fica olhando para a bunda das meninas mais velhas do colégio. Hahaha, não precisa ter vergonha, Anninha. Eu sou seu amigo, não vou rir de você. Se você quiser dizer algo para alguém algum dia, eu prometo que vou te ouvir e nunca contar para ninguém!"
O bilhete estava com um coraçãozinho desenhado no fim.
-Cara... -Erine olhou para ela. -O Matt é tão... Incrível.
Ela riu.
Anne, no entanto, estava chorando.
-Ele é. Matt é um doce de pessoa. E todo mundo sempre trata ele mal por não conseguir falar. Mas eu conto tudo para ele. Conto tantas coisas... E ele manteve tudo em segredo. Ele é o único que sabe disso, além de você...
-Anne. -Erine passou a mão nos cabelos dela. -Não tenha medo de ser quem você é. Tenha orgulho.
-Eu não posso. Eu sou um lixo. Eu... -Ela chorou mais ainda, e entre soluços, ela olhou para Erine. -Você e a Martha se inscreveram para aquele exame idiota... E eu não queria que fosse assim. Não queria... Não queria perder a Martha. Eu queria que ela ficasse.
-A Martha... -Erine estava chocada demais.
-Mas no final... Eu aceitei que era sonho dela. E você ia junto com ela. Eu... Eu estava com medo de ser deixada. -Ela cobriu o rosto com as mãos. -Eu acabei conhecendo uma maluca no começo do ano. Ela me mostrou umas coisas esquisitas, encantos, maldições, poções... Uma tralha toda.
-Você fez alguma... Simpatia para a Martha ficar?
-Não. Eu queria que ele fosse. Queria que ela visse que ela era incrível, do jeito que eu via ela. Mas você estava em primeiro lugar no exame. Você era a estrela, Erine. Você era feliz, inteligente, e tinha a pessoa que amava do seu lado. E aí... Eu comprei um veneno da tal maluca.
Erine arregalou os olhos. Não era possível.
-Anne... -Ela recuou. -Não. Isso não tá acontecendo.
-Não. Mas aconteceu. -Anne soluçava incessantemente. -Eu dei uma dose só. Mas era tão forte que eu achei que você ia morrer. Eu queria que você faltasse em um dos exames. Só isso. Mas aí...
-ANNE VOCÊ TÁ BRINCANDO! PARA COM ISSO!
As pessoas em volta pararam e olharam para elas.
-Não. Por favor, Erine, não desiste daquela prova. Eu fui um monstro. Não quero que vocês voltem atrás. Eu não posso voltar, e não quero que vocês voltem. Por favor!
Anne caiu de joelhos, chorando.
Erine pôs as mãos na cabeça. O quê estava acontecendo? Por quê?
-NÃO! NÃO! ISSO NÃO PODE SER VERDADE!
Mas era. A confissão era tão verdadeira quanto a morte de Joe. Tão verdadeira quanto a morte de Linus. Ela não conseguia acreditar em nada. Era como um sonho. Ou um pesadelo. O quê ela diria? Ela precisava de alguém. Precisava de novo de Joe.
Joe. Joe acabou sendo declarado culpado por ter envenenado ela. O quê ela faria agora? Anne merecia seu perdão? Merecia?
-Por favor, Erine, não desiste...
Ela deitou a cabeça no chão e ficou chorando. Erine se virou. A multidão toda a encarava. Seus ouvidos zuniam. Ela não conseguia ouvir o quê diziam. Ela começou a andar. Ela passou por todas as pessoas ali, uma por uma. Elas falavam, mas Erine não ouvia. Elas tentavam tocá-la, mas ela não sentia.
Erine andou, andou e andou. Ela eventualmente chegou em casa. Ela não sabia como, ou quanto tempo passou. Apenas que estava em casa. Sua mãe a viu chorando, e correu para ela. Ela falava, mas Erine simplesmente não conseguia processar aquilo. Ela andou até sua cama. Ela deitou, e chorou. Ela sentiu um abraço. Mas ainda assim, nada mudaria o quê havia acontecido ali. Ela chorou, chorou e chorou, e eventualmente apagou.