Cercado por intensas luzes coloridas e deixado à beira da insanidade pela psicodelia auditiva num banco qualquer de uma rua de Nova York, a cidade havia tomado todo seu espírito para si. Desesperado, ele estava de cabeça abaixada, com as mãos em sinal de oração, desejando que Deus o salvasse do purgatório multicolor em que ele se encontrava
Em pouco tempo, a humanidade avançou tecnologicamente ao ponto de conseguir enlouquecer aqueles que possuíam a mente mais fraca, consumindo os chamados de "atrasados" para o abismo arco-íris das grandes metrópoles, que pareciam mais colossais fábricas que produziam de tudo num ritmo assustador
Antes que o inferno policromático tomasse conta de sua alma, uma estranha sensação de purificação o preencheu, trazendo um alívio muito bem vindo naquele momento. O rapaz ergueu sua cabeça para tentar encontrar a fonte do apaziguamento, foi quando algo entrou em seu campo de visão. Aproximando-se com passos lentos, a silhueta de uma pessoa alta ganhava destaque entre a massa de pessoas que passava pela rua. A medida que ia chegando perto, mais detalhes de sua aparência começaram a ser visíveis.
Aparentava ser um homem idoso, já que possuía uma rala barba branca e também traços comuns da passagem do tempo, como rugas e algumas manchas em sua pele. Vestia um sobretudo que vinha acompanhado de uma capa tão negra quanto o chapéu que repousava em sua cabeça. A simples presença do homem de preto fazia com que toda a confusão ao redor fosse inibida, como se carregasse consigo uma aura purgativa das impurezas do mundo.
Depois de mais alguns passos, ele enfim ficou de frente para o rapaz no banco.
— Quem é o senhor?
— Sou um homem de Deus, assim como você. E, observando o seu estado de agitação anterior, posso concluir que estava se sentindo muito pressionado nesse mundo que agora foi esquecido pelo Criador — falou o homem de preto, numa voz suave.
— Eu não consigo entender. As pessoas trocaram o Pai pelos prazeres materiais e carnais, se esqueceram do que Ele fez por todos nós! — afirmou fervorosamente, o que fez o homem de preto sorrir, logo em seguida tomando o espaço vazio que havia bem ao lado dele.
Ele tirou o seu chapéu negro e o colocou em seu colo, expondo uma modesta cabeleira, olhando para o céu com suas estrelas ofuscadas pela aurora neon. Uma brisa quente passou pelos dois, trazendo consigo um cheiro metálico forte, o que incomodou ambos de maneira profunda.
— Esse cheiro... consegue sentir? Dizem que são os efeitos da roda irrefreável do progresso — falou com desgosto, tossindo segundos depois. — No entanto, não sei se podemos chamar isso de progresso. — Apontou para uma igreja num canto escuro da rua, vandalizada e abandonada, restando apenas um esqueleto de madeira e concreto tomado por pichações.
— Outras igrejas foram erguidas, apesar disso. Mesmo assim, é deprimente ver tamanha desconsideração com uma igreja — afirmou o rapaz, levando seu olhar para o senhor.
— As novas igrejas não têm a mesma devoção de antes, isso eu posso lhe dizer. Agora, fiéis se rendem ao dinheiro e aos interesses mundanos como se fosse algo comum. Na minha época tudo era muito melhor, sem toda essa tecnologia.
— Mas o que podemos fazer? Os tempos mudam, é um avanço eterno e imutável
— É certo de que não podemos parar o progresso, mas, quando isso custa nossa fé, realmente vale a pena?
A frase dita pelo velho homem entrou na mente do rapaz, que ponderou sobre ela por algum tempo, até o idoso começar a falar novamente.
— Não há tesouro maior para um homem que sua alma e sua fé. Entretanto, quando até isso é corrompido, não há mais o que ser feito. — disse, dirigindo sua atenção para um dos inúmeros anúncios e notícias acima de suas cabeças. Era uma notícia caracterizada como urgente, fato que era facilmente perceptível pela tensão na fala da âncora do jornal.
— Agora mesmo, um projeto secreto do governo foi vazado por toda a internet por uma hacker que se chama de Raposa Branca, causando uma confusão global que pode ser muito prejudicial para o país inteiro. Não sabemos os detalhes sobre o documento, mas, aparentemente, é algo que vai contra tudo o que acreditávamos ser possível até então.
De um instante para o outro, a transmissão foi cortada, trocando o canal que estava passando para um aviso de erro pulsante. Em seguida, todas as telas que apresentavam canais noticiando sobre o fato sofreram do mesmo destino, fazendo a rua ser dominada por tons rubros vindos das mensagens de erro.
Um silêncio anormal tomou conta da multidão, mas logo foi substituído por uma mescla de vozes, gritos e o zunido artificial da cidade grande.
O homem velho se levantou, contemplando toda aquela situação com um sorriso suave, tentando não expor muito suas emoções. Sem se virar para o rapaz sentado no banco, ele voltou a falar.
— Há alguns dias, recebi uma mensagem do próprio Deus Criador, pedindo para que eu fosse seu profeta no novo mundo que ele estava para criar. Por isso, reuni um grupo de fiéis dispostos a lutarem pela causa de salvar as pessoas desse mundo contaminado pela luxúria e pela ganância humana. Gostaria que você viesse comigo — anunciou, de um jeito surpreendentemente sério.
Não conseguindo processar todas as informações que estavam sendo jogadas contra ele, o rapaz não conseguia formular uma frase para responder à proposta do homem de preto. Entretanto, ele conseguiu dizer a primeira coisa que veio à sua mente.
— O que você pretende fazer?
— Vou limpar o mundo da heresia, nem que isso custe minha vida — respondeu o homem de preto, muito mais sério do que anteriormente.
— E-Eu não quero fazer parte disso! Não vou matar ninguém, isso é errado!
— Ninguém vai morrer, até porque, no momento em que eles escolheram abandonar o caminho de Deus, eles já morreram. Nós apenas iremos mandar eles para o lugar que eles merecem estar, seja para o paraíso ou para o inferno. É triste saber que você não vem conosco em nossa luta sagrada, mas tudo bem, quando o martelo divino cair sobre você, poderá contemplar a majestosidade do nosso Criador — finalizou, andando para longe e deixando o rapaz sem reação, com muito medo para se mover ou falar qualquer coisa.
Após desaparecer na multidão o senhor de preto tirou um celular do bolso, discou um número e colocou o aparelho próximo do ouvido.
— Beija-Flor, aqui é o Lobo, a profecia de Deus teve seu primeiro passo iniciado. Comece o processo da fase 2 imediatamente — ordenou o velho, empurrando as pessoas enquanto caminhava apressadamente.
— Senhor Lobo, como devemos chamar o hacker? Se usarmos os meios certos, podemos fazer com que ela venha para o nosso lado facilmente. — uma voz feminina respondeu do outro lado.
— Use os meios diplomáticos primeiro. Caso dê errado, ative o protocolo predatório, não podemos ter erros nesse plano, ou tudo vai por água abaixo. Desligando. — concluiu, finalizando a chamada e guardando o telefone de volta no bolso. Por uma última vez, ele parou e olhou para o céu mais uma vez. Uma estrela solitária recuperou seu brilho, aparecendo e se destacando no véu umbral. Para o Lobo, aquilo era seu Deus sorrindo para ele, então, sorriu de volta, continuando com sua caminhada.
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As luzes vibrantes da noite se foram ao cantar dos pássaros, anunciando a chegada de um novo amanhecer. O resplendor áureo dos raios solares passaram ligeiramente pelas frestas das persianas do quarto de Emma, que, ao ter os olhos cobertos pela intensa luz dourada, puxou o cobertor para cima, cobrindo seu rosto numa tentativa fútil de ganhar alguns minutos a mais de sono. Infelizmente, ela sabia que não poderia faltar a universidade naquele dia, já que tinha se ausentado de três dias de aula por conta de sua última travessura pelos cantos mais profundos da internet. Sentou-se na cama, bocejando e piscando várias vezes para que seus olhos pudessem se acostumar com a luminosidade do recinto.
Ela resmungou ao perceber que todo o seu quarto estava uma zona, coisa que, para ela, era muito comum, mas que sempre a irritava. Próximo à janela, seu computador de última geração descansava sobre a mesa personalizada. que não tinha a mesma beleza de antes devido à dezena de latas de energético e caixas de comida chinesa que deviam estar lá há alguns dias.
Se levantou de uma vez, esticando-se e fazendo alguns exercícios rápidos para terminar de ativar os músculos. Tirou suas roupas, que também estavam fedendo um pouco por conta da noite passada. Entre a bagunça, guiou-se pelo seu olfato para encontrar as roupas mais limpas que poderia encontrar. Pegou uma camisa com o Freddie Mercury e os dizeres "Queen" estampados, uma calça jeans, um casaco azul e vestiu tudo. Foi até o PC com a intenção de desligar ele, já que ele havia passado a noite inteira ligado.
Entretanto, notou que havia uma mensagem em sua caixa de mensagens, o que a deixou um tanto curiosa, já que tinha certeza de ter bloqueado todos os contados que ela poderia ter por questões de segurança. Abrindo o aplicativo, uma mensagem intitulada "Olá, jovem Raposa"" jazia solitária na aba de novas mensagens.
— Isso é sério? Alguém me encontrou? — ela se questionou, ficando surpresa ao notar que aquilo era real e não sua mente pregando uma peça.
Com certa incerteza, ela levou a seta do mouse até o recado e pressionou o botão, abrindo ele de vez.
De: 𝚿 𝕸.𝓐
Para: Raposa Branca
É com grande prazer e estima que venho aqui lhe fazer o convite para mudar o mundo, senhorita Raposa. Antes que pergunte, lhe rastreamos através de um complexo software inventado com a exclusiva intenção de encontrar hackers, como você. Mesmo assim, você merece uma menção honrosa, já que foi difícil te encontrar mesmo com o programa. Enfim, vamos direto ao assunto.
Ao divulgar sobre o projeto Re:Birth para toda a internet, acreditamos que a senhorita possua os mesmos ideais que nós: livrar o mundo da heresia que o avanço tecnológico trouxe a nossa sociedade, que agora está ligada por uma linha tênue ao Criador, a ponto de se romper se não fizermos nada.
Por isso, venho lhe pedir que se junte a nossa organização. Temos os recursos e meios necessários para realizar o que planejamos, por isso você pode ter a garantia que este plano dará certo. Deus garantirá que não haverão falhas.
Caso esteja interessada, por favor, responda de volta para podermos nos encontrar na lanchonete perto de onde você estuda, obviamente, após o horário de sua aula.
Com grande júbilo, lhe saudamos.
A Menorá Áurea.
A princípio, Emma ficou incrédula com o fato de ter sido encontrada, mas logo depois se pegou rindo da mensagem que lhe foi enviada.
— Meu, não é possível. O quão longe as igrejas de hoje em dia estão chegando para conseguir fiéis? — disse, em meio à gargalhada. — Mas tudo bem, irei ao menos responder esses idiotas.
De: Raposa Branca
Para: Beija Flor
Tentem me pegar se puderem, panacas. Não tenho medo algum de uns poucos religiosos imbecis.
Vão pro inferno.
A melhor banda do mundo (Queen)
Sabendo que estava sendo imatura para a sua idade, ela enviou a resposta sem hesitar e nem pensar nas consequências, acreditando que aquilo não passava de uma ameaça infundada e tola de certos zelotes desesperados. No entanto, sua graça se transformou em tensão ao notar que a mensagem foi respondida de imediato. A tensão evoluiu para um pequeno medo quando ela leu o que estava escrito.
De: Beija Flor
Para: Raposa
Visto que não quer se unir a nós, o que é uma pena, iremos buscá-la utilizando da força.
Não diga que não lhe avisamos.
Menorá Áurea.
— Vão se ferrar, bando de malucos... — falou, desligando seu computador.
Mesmo para ela, aquilo era algo aterrorizante o suficiente para fazê-la querer prestar atenção durante o seu caminho. Para fugir dos devaneios que vieram à sua mente, ela pegou sua mochila, e saiu do apartamento, trancando-o por fim, passando pelos corredores mais rápido que o de costume.
Já na rua, as multidões diurnas, um pouco menores que as noturnas, lotaram as ruas da cidade, fazendo com que Emma fosse obrigada a desacelerar seu caminhar. Com olhos ávidos, ela checou por todo o canto enquanto passava pelo rotineiro caminho até a universidade em que cursava administração.
Desde o começo do segundo milênio até o ano de 2025, o mundo cresceu e evoluiu, e com esse crescimento surgiram muitas novas possibilidades nas mais diversas áreas, e uma das que mais rendia era a área de administração, o que incentivou a garota a tentar o curso. Mas, para isso, abandonou sua família em São Francisco na Califórnia para ir morar sozinha numa das maiores metrópoles do mundo moderno em busca de um futuro próspero.
Enquanto caminhava, finalmente deixou os pensamentos ruins de lado e focou em se lembrar de casa. Um lugar que, embora já houvesse algum tempo que ela não visitava a fazia ter boas memórias do tempo que viveu com seus país. Quando podia, os visitava por alguns poucos dias, mas que já eram o suficiente para fazê-la esquecer da rotina maçante na cidade irrefreável.
Perdida em suas ilusões, ela mal percebeu quando bateu de frente com uma pessoa um pouco mais alta que ela, vestida totalmente de preto.
— F-Foi mal! Eu não te vi — desculpou-se, ainda um pouco surpresa pelo que havia acontecido.
No entanto, ao observar melhor a pessoa à sua frente, notou que a mesma era muito estranha. Não queria achar que estava sendo muito preconceituosa, mas usar uma roupa como aquela numa manhã ensolarada era um tanto "diferente", pelo menos para ela.
— Você — uma voz feminina falou. Logo em seguida, a pessoa levantou a cabeça, revelando ser uma bela mulher de cabelos loiros reluzentes com olhos azuis iguais à duas grandes safiras encarando diretamente a jovem garota. — Finalmente te encontrei no meio de toda essa gente, Raposa. Se não quiser que nada aconteça com você, é melhor não gritar ou correr.
Naquele momento, Emma ficou sem saída.