A Despedida
A luz da manhã atravessava as cortinas esvoaçantes da cozinha, tingindo a mesa de madeira com tons dourados.
Clara estava sentada no chão, empilhando blocos coloridos com uma concentração quase sagrada. A língua levemente de fora, os olhos semicerrados, como se cada movimento fosse uma questão de vida ou morte.
— Papai, olha! — disse, exibindo uma torre trêmula.
Lucas sorriu. Um sorriso cheio. De um homem que não sabia quando veria outro momento como aquele.
— Isso é mais do que um castelo. É um reino inteiro.
Ela riu, e por um segundo, o tempo pareceu parar. Lucas gravou cada detalhe: o cabelo dourado de Clara iluminado pelo sol, os dedos pequenos, o som da risada que fazia o mundo inteiro parecer perdoável.
Mas a paz é traiçoeira.
Uma dúvida sussurrou dentro dele, do tipo que chega sem ser convidada:
Quantos momentos assim ainda me restam?
Clara tinha uma doença rara. O tipo que transforma cada conquista simples num milagre. E ele sabia: faria qualquer coisa por aquele sorriso.
A porta rangeu.
Lara entrou com seu roupão felpudo e um sorriso que escondia o cansaço. Ajeitou os cabelos para trás e beijou a testa da filha.
— Já estão construindo impérios tão cedo? — provocou.
— Fiz um castelo! — respondeu Clara, com orgulho escorrendo pela voz.
— Tá lindo, meu amor.
Lara olhou para Lucas. Um olhar silencioso, experiente.
— Tudo bem?
Lucas demorou para responder. O café esfriava na caneca. A mente longe.
— Tô tentando aproveitar enquanto posso.
Ela apenas assentiu. Conhecia bem aquele tipo de silêncio.
— Preciso sair hoje.
— Não se esquece de cuidar de você também.
Mas ele não teve tempo de responder.
O ar ficou denso, como se algo invisível empurrasse tudo contra o chão.
O calor da cozinha desapareceu.
Um zumbido grave, como se o próprio universo tivesse engasgado, reverberou nos ossos de Lucas. Ele se agarrou à mesa, os olhos buscando Clara.
— Clara!
A voz dele foi engolida por um rugido surdo, como se estivesse gritando debaixo d'água.
Lara virou-se, pânica.
— Lucas, o que está...
E então, tudo se rompeu.
A risada de Clara virou eco.
Depois, nada.
A Convocação
Lucas aterrissou como um saco de ossos no chão frio.
A dor chegou primeiro. Depois, a luz.
Ele se ergueu aos tropeços. Um salão imenso se erguia ao redor, coberto de ouro, mármore e olhos.
Dezenas de estranhos o encaravam. Silêncios disfarçados de respeito. Um velho se adiantou, barba longa e mãos trêmulas:
— Oh, grande herói...
Lucas quase riu. O corpo dele ainda doía como se tivesse sido jogado de um prédio.
— Isso só pode ser um pesadelo.
Outro homem, jovem e bem vestido, se aproximou:
— Nosso mundo está em colapso. Fomos forçados a convocar um herói para enfrentar o Rei Dem...
— Não. — Lucas o cortou. A voz mais raiva do que razão. — Isso é um erro.
Ele se ergueu. Os olhos percorrendo o salão. Sem Clara. Sem Lara. Sem sentido.
— Eu não pedi por isso.
O velho insistiu:
— Sem sua ajuda, estamos condenados.
Lucas deu um passo à frente. O rosto distorcido de dor e fúria.
— Vocês me arrancaram da minha filha! Eu preciso voltar!
Silêncio. Só o som da própria respiração e a batida acelerada no peito.
— Vocês não têm como me mandar de volta, né?
O rei, então, falou:
— O ritual é definitivo.
Lucas sentiu algo quebrar por dentro.
— Vocês me sequestraram. Me tiraram dela... e querem que eu lute por esse lugar?
O rei ergueu-se. Frio, como um juiz prestes a emitir uma sentença:
— Se recusa a lutar... é útil apenas como prisioneiro.
Lucas gritou:
— Eu não sou o herói de vocês!
A ordem veio com um gesto:
— Prendam-no.
Ele tentou resistir. Os guardas não hesitaram. Golpes. Chutes. Um joelho no estômago. Sangue.
E antes que a consciência o abandonasse, viu o rosto vazio do rei.
A Prisão
A primeira coisa que sentiu foi o fedor. Urina, mofo, sangue velho.
Correntes.
O frio.
E, então, a voz:
— O rei quer que você quebre.
Não houve tempo para pensar.
O primeiro soco abriu seu lábio. O segundo, sua bochecha. O terceiro... nem vale a pena numerar.
Dor
O tempo perdeu o nome. Não existia dia ou noite. Só dor.
Golpes. Fome. Sede. Mais dor.
Mas Lucas não morreu.
Não porque era forte. Mas porque ainda lembrava dela.
Clara.
Cada lembrança, um ponto de luz. Um sussurro no meio da loucura.
Mas a memória é traiçoeira. Aos poucos, o rosto dela se desfazia. Os olhos, o sorriso... tudo se embaçava.
Era como afundar.
Jogaram um pedaço de pão no chão. Lucas hesitou por um segundo. E foi o suficiente.
Um estalo seco. Dor absurda. Um dos guardas pisou com toda a força sobre sua mão.
O dedo quebrou como galho de inverno.
Eles riram. Um riso sujo, de quem já esqueceu como é ser gente.
— Quer mais? — disse um deles, jogando outro pedaço. — Mas agora tem que pedir latindo.
Lucas não respondeu. E por isso... outro estalo.
Era isso. Um jogo. Cada gesto de dignidade era punido. Cada silêncio, um desafio.
No sexto mês, a tortura virou rotina. Mas naquela noite, um guarda se abaixou e disse:
— O rei está pensando em te soltar, sabia? Talvez... se ajoelhar, se implorar...
Lucas ergueu os olhos, fraco, mas firme.
— ... você possa ver sua filha de novo.
E então, sem esperar resposta, o guarda quebrou mais um de seus dedos.
— Brincadeira. O rei disse que você vai apodrecer aqui.
Mais risos. Mais escárnio. Mais dor.
E ainda assim, Lucas não quebrou.
Mas algo dentro dele... mudou.
Os golpes começaram a doer menos. O corpo já não protestava como antes. Era como se estivesse se afastando de si mesmo.
Na penumbra da cela, uma sombra se arrastou do teto. Um som gotejante. Algo se movia.
Lucas pensou que era só mais um delírio. Febre. Fome.
Mas então, a voz veio:
— Você ainda se lembra da voz dela, Lucas?
Ele se encolheu. Tentou ignorar.
— Sua filha. Clara.
— Claro que lembro...
— Tem certeza?
Ele tentou falar. Mas o rosto dela... estava sumindo. A sombra se aproximou, viva.
— Repita o rosto dela para mim.
Ele não conseguiu.
— Eles arrancaram tudo de você. Mas eu posso te dar algo que eles nunca conseguirão tirar.
A sombra tomou forma.
— Retribuição.
— Diga sim.
A lembrança de Clara piscou, distorcida. Pálida. Morrendo.
Lucas fechou os olhos.
E disse:
— Sim.