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FAOLAN: A PROFECIA E A PEDRA DA LUA

🇧🇷Sarah_Bruning
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Synopsis
Marcado por uma profecia sombria e pela rara cor de seus olhos, Kael Faolan, o herdeiro bastardo do Reino Invernal, cresceu à margem da sociedade, sendo evitado pelos aldeões supersticiosos. Seu relacionamento distante com seu pai, Fergus Riagan, o Rei de Isgard, apenas acentua seus sentimentos de isolamento. Incompreendido, o jovem guerreiro se torna alvo de uma traição que o deixa à beira da morte e sem memória.
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Chapter 1 - Capítulo I: O PRÍNCIPE AMALDIÇOADO

— Malditos sejam os estrategistas de salão de Isgard e quem inventou essa história de missão de reconhecimento!

Kael sibilou, o ranger arrastado de seus coturnos marcando o ritmo de sua passagem sem pressa pela trilha estreita de terra batida. A vereda serpenteava preguiçosamente para fora dos limites de um vilarejo pacato qualquer, ladeado por extensos campos de batatas e cevada, os grãos dourados balançando suavemente sob a brisa fresca da tarde de outono. Chalés de madeira escura, com seus telhados pontiagudos cobertos de musgo e chaminés de metal retorcido soltando espirais de fumaça sob a luz dourada que começava a se inclinar, criavam uma visão familiar e tediosa para Kael Faolan. A mesmice de um pesadelo do qual ele não conseguia despertar.

Nele havia uma beleza que parecia esculpida pela noite, traços angulosos, quase andrógenos, como a de um anjo caído marcado pela sombra. Dizia-se, em sussurros temerosos, que sob a palidez de sua pele, a fúria de uma fera selvagem fervilhava, tornando-o um enigma tanto fascinante quanto letal. Seus cabelos negros como obsidianas teimavam em uma desordem proposital, escapando da testa levemente alta para cair sobre seus olhos dourados, de uma cor intensa e faminta, como os de um predador à espreita na escuridão.

Kael vestia o luto como uma extensão de sua própria pele, roupas pretas da cabeça aos pés. O couro gasto de seus coturnos rangia a cada passo na terra batida. A calça escura colava-se às suas pernas esguias, e a camisa de tecido leve, com os dois primeiros botões frouxos, oferecia uma espiada na prata fria do colar incrustado com uma pedra de cor leitosa em seu centro. Aninhado em seu peito como um peso gelado, o colar era um lembrete visceral de sua perda. Sobre a camisa, o tecido pesado do sobretudo de gola alta erguia-se como uma barreira contra o mundo, um escudo pessoal contra a indiferença alheia.

Quase dois anos haviam se arrastado desde sua última visita ao palácio do Reino Invernal, Isgard, sua terra natal, que o cuspira para longe com missões incessantes – uma forma polida de mantê-lo à distância.

Seus dedos inquietos tamborilavam um ritmo ansioso dentro do bolso do sobretudo, uma tentativa vã de invocar o deus do entretenimento em meio àquele marasmo mortal da jornada. Ou talvez fosse uma manifestação física de algo mais sinistro que roía suas entranhas, uma impaciência nervosa que não o deixava em paz.

Ali, em seu dedo anelar, a Isnox repousava, fria e imponente, engastada no anel real de Isgard. A Pedra da Noite Glacial. A gema rara era um abismo negro e impenetrável, como o vácuo gelado entre as estrelas em uma noite polar. Mas, ao menor movimento de sua mão, um brilho escorregadio, um azul espectral dançando nas profundezas do negro, cintilava brevemente, uma beleza gélida e misteriosa. Um símbolo de poder que ele nunca verdadeiramente possuíra, um fardo mais do que uma bênção.

"Verifique o que está assustando os aldeões," ecoou a voz fria e burocrática de um conselheiro em sua mente.

— Uma desculpa esfarrapada — Kael pensou com amargura, o canto da boca crispando em um sorriso frio e ressentido. — Tudo para manter o bastardo amaldiçoado longe dos olhos da corte. Se eu desaparecesse nesse fim de mundo esquecido pelos deuses, alguém sequer notaria? Mas para a sujeira, para o trabalho que ninguém mais queria... ah, para isso, o sangue impuro sempre serve!

Uma veia pulsou brevemente em sua têmpora, a mandíbula tensa como se estivesse prestes a morder alguém. Seus punhos se fecharam por uma fração de segundo dentro do bolso, unhas cravando a palma, antes que ele mascarasse a raiva com uma máscara de indiferença fria, um véu gelado sobre a tempestade interior.

— E para piorar, ainda tenho que arrastar aqueles dois idiotas pela coleira. Aposto que se perderam novamente, vagando como ovelhas desgarradas. Entre a tarefa e os dois imbecis, não sei qual me consome mais rápido.

À sua volta, os campos de cevada e batatas se estendiam em ondas até onde a vista alcançava, um mosaico de tons terrosos e verdes sob o céu azul. Camponeses curvados sobre a terra, rostos curtidos pelo sol e mãos calejadas agarrando ferramentas, interrompiam seu trabalho árduo. Seus olhares hesitantes se fixavam em Kael – a cautela típica para forasteiros em um vilarejo isolado. Alguns o observavam com curiosidade reservada, outros com uma desconfiança inexpressiva.

Ele passou por uma anciã enrugada, o rosto um mapa de sulcos profundos gravados pelo tempo e pelo trabalho árduo, um xale de lã escura e puída drapeado sobre seus ombros magros. Ao vê-lo mais de perto, seus olhos pequenos e fundos se arregalaram em um terror visceral. A boca desdentada se abriu em um arquejo silencioso ao fitar seus olhos.

— O amaldiçoado chegou... a Besta de Olhos Dourados está aqui!

Sua voz trêmula e aguda ecoou, fraca mas carregada de pavor, antes que ela cambaleasse para dentro de sua cabana humilde. O som do ferrolho rangendo na madeira ecoou como um prenúncio de desgraça iminente.

— O amaldiçoado traz consigo a ruína! — ela gritou, sua voz ainda trêmula e aguda, agora abafada pelas tábuas rachadas antes que as janelas fossem fechadas com um clique final, selando-a em seu medo.

Foi o suficiente para um efeito em cadeia. A menção da "Besta de Olhos Dourados" começou a atrair a atenção de outros aldeões próximos, que agora observavam Kael com apreensão crescente, tentando discernir o motivo do terror da velha. Cada par de olhos que se fixava nele carregava uma história de superstição e temor. Uma mistura intoxicante de desconfiança ancestral, um temor reverente que lhes encolhia os ombros, espalhou-se pelo vilarejo como pólvora seca. Alguns espreitavam por frestas nas portas e janelas empoeiradas de suas casas acanhadas, rostos pálidos e curiosos espiando a figura sombria do príncipe que passava. Outros, mais ousados ou consumidos pelo ódio, deixavam a hostilidade queimar abertamente em seus olhares.

— Não te queremos aqui, aberração! — um homem corpulento rosnou de um alpendre, as mãos fechadas em punhos.

— Vá embora antes que a sua presença nos traga mais sofrimento! — uma mulher ao lado dele vociferou, apontando um dedo trêmulo para Kael.

"Poxa, quanta hospitalidade," pensou Kael, um sarcasmo amargo dançando em sua mente. Boas-vindas eram um luxo que sua existência raramente contemplava. Mas o silêncio pesado que se seguia à sua passagem, o vazio repentino deixado em seu rastro, sempre o atingia como uma lâmina fria, lembrando-o de sua perpétua solidão, um fardo ainda maior do que qualquer hostilidade escancarada. Afinal, ele era o bastardo de Isgard. O Príncipe Amaldiçoado, sussurravam nas sombras, um eco constante nos corredores da corte e nas esquinas escuras do Reino Invernal. O erro incômodo que a realeza tentava ocultar sob o manto de missões perigosas e uma diplomacia farsante.

Na orla escura da floresta, onde as árvores se aglomeravam como gigantes sombrios, a figura imponente de um lenhador se aproximava lentamente, alheio à breve comoção que se espalhava. Seus ombros largos estufavam a camisa de lã surrada, e uma barba castanha e densa emoldurava um rosto marcado pelas intempéries. Ele notou a direção inflexível de Kael à mata e o alertou, sua voz carregada de uma preocupação genuína:

— Garoto, eu pensaria duas vezes antes de me embrenhar aí a essa hora. A noite engole essa mata rápido, e ela não costuma devolver o que pega.

Kael passou por ele como se fosse uma figura espectral, sem sequer um aceno. O lenhador insistiu, sua voz elevando-se ligeiramente:

— Ei, você não me ouviu? Ga-ro…

Foi somente quando a figura fria e distante passou por ele, e o lenhador pôde finalmente vislumbrar a fugaz centelha dourada nos olhos que brilhavam sob a sombra da aba do sobretudo, que um terror gélido o atingiu. Seus músculos se enrijeceram, a respiração presa em sua garganta. Ele congelou.

— Não pode ser... A Besta de Olhos Dourados… — Seu murmúrio perplexo, carregado de um medo súbito, ecoou no silêncio pelo ar, chamando a atenção dos aldeões mais próximos que agora observavam a reação do lenhador com crescente alarme. Ele deixou o feixe de lenha que carregava cair, o baque no chão de terra batida ecoando pelo vilarejo como um tiro.

Sussurros carregados de apreensão e um temor ancestral começaram a circular entre os que presenciaram a reação do lenhador e ouviram o grito da velha:

— Olhem... os olhos... é ele... o Príncipe Amaldiçoado!

— Afastem-se dele! — a voz de uma mulher se misturou ao coro.

A notícia e o medo se espalharam rapidamente como um rastro de pólvora seca. Com cada vez mais pessoas espiando por frestas e janelas, a hostilidade crescendo à medida que a identidade de Kael se tornava clara.

As palavras venenosas atingiram os ouvidos de Kael, cada sílaba um dardo familiar que o perseguia como sombras na luz do sol. "Besta de Olhos Dourados? Príncipe Amaldiçoado? Aberração? Poderiam ao menos variar os insultos," pensou com um cinismo cansado, um sorriso frio curvando seus lábios, "ter um pouco mais de criatividade em sua maldade..." Com uma arrogância teatral que mascarava a ponta de raiva que sempre borbulhava sob sua indiferença, ele elevou a voz, o tom carregado de escárnio:

— Pensei que estavam precisando de ajuda com a floresta. Ouvi dizer que as pessoas estavam assustadas com coisas estranhas acontecendo lá. Eu vim em nome do Rei de Isgard… Eu sou Kael Faolan, o primogênito de Fergus Riagan!

Um murmúrio de descrença e indignação percorreu o grupo de aldeões, seus rostos franzidos em desaprovação.

— O quê? Mandaram o bastardo resolver isso? Não dá para acreditar… — um homem balbuciou, visivelmente chocado.

— Não podemos confiar nele! Ele só trará mais desgraça! — uma mulher gritou, apontando um dedo trêmulo para Kael.

Os aldeões trocavam olhares nervosos, a desconfiança estampada em cada rosto, como uma marca visível de sua apreensão.

— Certo, pessoal… — respondeu Kael, a ironia escorrendo de cada palavra como veneno. — Já que não querem a ajuda do amaldiçoado aqui… Então irei embora e deixo essa história de floresta negra para lá. Afinal, isso não é problema meu!

Ele deu meia volta, mas foi parado por uma mão calejada e pesada em seu ombro. Kael observou a hesitação vacilar nos olhos do homem, a dúvida corroendo sua hostilidade inicial, e respondeu com um sorriso frio em seus lábios. Um homem de meia-idade, baixo e calvo no topo da cabeça, com apenas algumas mechas escuras grudadas nas laterais, que parecia carregar o peso da liderança da pequena comunidade em seus ombros curvados, finalmente se adiantou, a voz hesitante e tensa:

— Espere! Nós… nós sentimos muito... pelas palavras duras. Precisamos de ajuda, sim! — exclamou ele, sua voz quase um lamento.

"Eu sabia!" pensou Kael com um triunfo amargo, um brilho frio dançando em seus olhos amarelos. "Enquanto eu for o cão de caça deles, o monstro útil para despachar as ameaças que eles temem enfrentar, tudo bem. Hipócritas!" Kael parou.

— Escutem todos! Nós não temos outra opção… Teremos que confiar nele! — continuou o homem calvo, dirigindo-se à multidão, seu tom de voz tentando inspirar uma confiança que ele mesmo não sentia. — As pessoas contam histórias terríveis... espíritos malignos no meio da floresta. Muitos não se atrevem a cruzar a primeira clareira. Depois que algumas pessoas não retornaram.

Kael encarou o homem calvo e depois olhou para a mão que ainda pairava sobre seu ombro.

— Oh, me desculpe. Eu… — O homem tirou rapidamente a mão de maneira instintiva dos ombros de Kael, como se sentisse o perigo iminente emanando dele.

Com um aceno de cabeça relutante, Kael concordou.

— Tudo bem, veremos o que encontramos aqui!

Kael voltou e continuou em direção à floresta, com as mãos ainda nos bolsos, seguindo pela trilha que agora se estreitava ainda mais.

O lenhador, ainda parado com o feixe de lenha caído a seus pés, ouviu as palavras carregadas de veneno e viu o escancarado desprezo nos rostos dos outros. Uma onda de profundo constrangimento o atingiu, a face corando sob a barba. Não era apenas por ter se dirigido àquela figura temida como um simples "garoto", mas também por ter deixado escapar o apelido "Besta de Olhos Dourados". Uma pontada de pena por Kael cresceu em seu peito ao testemunhar a reação hostil da comunidade. Reunindo uma coragem repentina, impelido pela pena e por um respeito tardio à sua posição, ele tossiu e chamou, sua voz agora mais alta e firme:

— Príncipe Kael... Espere! Não vá além do limite, onde o vento cessa! Há algo de errado naquela mata... algo sombrio! Nem os animais selvagens se atrevem a cruzar aquela fronteira. Nem mesmo as corujas em noite de lua cheia! O silêncio lá dentro é mais assustador que qualquer grito.

Sua voz agora carregava um tom urgente e genuinamente preocupado, um contraste gritante com os xingamentos raivosos dos outros, um aviso sincero vindo de um coração simples. Kael o fitou de soslaio, uma sobrancelha escura arqueada em escárnio frio, um sorriso zombeteiro curvando seus lábios.

— E eu lhe pareço uma coruja, por acaso? — Retrucou com um sorriso de canto que revelava a sombra da fera que habitava sob a fachada principesca, antes de continuar sua marcha implacável em direção à floresta.

O lenhador engoliu em seco e recuou, o medo ainda visível em seus olhos, mas agora misturado com uma ponta de resignação diante da fria determinação do príncipe, como se soubesse que seus avisos haviam caído em ouvidos moucos.

"Príncipe Kael?" O eco das palavras do humilde lenhador ressoou brevemente em sua mente, uma nota dissonante em meio à cacofonia de ódio e medo que geralmente o cercava. "Um aldeão... preocupado? E... usando meu nome, com um tom de respeito?" Por um instante fugaz, uma faísca quase esquecida acendeu-se em seu peito, uma ponta de esperança infantil e há muito sufocada. "Será...? Poderiam ver algo além da besta amaldiçoada ou do príncipe bastardo? Poderia eu ser... reconhecido ou até mesmo amado?"

A resposta o atingiu com a frieza cortante do vento do Reino Invernal. "Não! A única que poderia ter me amado... já se foi! E nem sequer um túmulo restava para que eu pudesse lamentar." Nora Faolan, a inimiga de Isgard e sua mãe.

"Herdeiro por sangue, não por direito" — a frase ecoava na mente de Kael como um refrão amargo, a forma polida para evitar a palavra "bastardo". Ele a conhecia bem, cada nuance de condescendência implícita. Sentia o peso dessa exclusão em cada olhar enviesado que o atravessava como uma flecha fria, em cada silêncio constrangedor que se abria quando ele entrava em um recinto. Sabia o que sussurravam nas sombras, as palavras peçonhentas que o perseguiam como espectros noturnos, o medo palpável que emanava dos corações alheios. E, em parte, uma voz sombria dentro de si admitia, eles tinham razão. Seus olhos dourados ardiam como brasas de um inferno particular, a marca indelével da maldição, um erro da carne e da magia proibida.

Ele era o fruto de uma união profana que nunca deveria ter acontecido: Fergus Riagan, o Rei de Isgard, um homem de gelo e obrigações, e Nora, uma mulher do clã Faolan — um nome que ecoava agora nos contos noturnos como lendas sombrias com um destino trágico, um laço de sangue manchado por magia ancestral. Ele nunca conhecera o calor genuíno de um cuidado paterno, apenas as obrigações frias de um líder para com um herdeiro problemático, uma ferramenta afiada a ser usada e descartada quando conveniente, um peão em um jogo de poder que ele nunca pedira para jogar. O anel de Isnox em seu dedo, frio como a tumba, e o colar de Nora em seu pescoço, a pedra leitosa um pálido fantasma contra sua pele, eram lembretes constantes de sua complexa e dolorosa herança, correntes invisíveis o prendendo para sempre entre a realeza de Isgard, um trono que nunca seria seu, e a linhagem amaldiçoada do clã Faolan, um passado que o assombrava. Kael vivia em uma perpétua terra de ninguém, um espectro solitário perdido entre dois mundos que o rejeitavam.

Um suspiro pesado escapou de seus lábios, carregado do fardo de sua existência, seguindo a trilha que se estreitava cada vez mais, enquanto observava as árvores esqueléticas, secas e retorcidas, cujos espinhos roçavam seu sobretudo. Seus olhos se fixaram no céu crepuscular que sangrava em tons de laranja enferrujado e roxo profundo. O sol se despedia lentamente, afogando-se no horizonte, mas para Kael, a escuridão que se aproximava não trazia temor, apenas refletia sua própria alma atormentada.

E foi então que a sensação o atingiu. Não um som, mas uma vibração sutil no ar, um arrepio gélido que dançou na nuca, erguendo os pelos finos como o toque espectral de dedos invisíveis. A certeza visceral de estar sendo observado o atingiu como um soco no estômago, cortando o fio de seus pensamentos sombrios. Ele parou abruptamente no meio da trilha, seus coturnos cravando na terra batida, levantando uma pequena nuvem de poeira. Instintivamente, sua mão apertou o anel, o metal frio e a superfície lisa e fria da Isnox pressionando contra a palma de sua mão, buscando algum conforto na familiar frieza, enquanto a outra mão de Kael deslizou com a velocidade de uma víbora para a cintura, os dedos encontrando o couro familiar da empunhadura de suas adagas ocultas sob o sobretudo, a antecipação tensa percorrendo seus músculos.

— Auto lá!

Sua voz cortou o silêncio da floresta, rouca e carregada de uma ameaça fria, cada sílaba destilando anos de desconfiança e autodefesa.

Em um salto repentino entre um emaranhado de arbustos retorcidos, cujas folhas já perdiam a vivacidade do verão, surgiu uma criatura.

— Um Cervo Luminis? Aqui?

A pergunta sussurrada quebrou o silêncio opressor, a surpresa e uma ponta de um fascínio infantil e há muito reprimido tingindo sua voz normalmente cínica. Seus olhos se arregalaram ligeiramente, capturando a visão inesperada.

A criatura era pequena e delicada, seus movimentos graciosos como os de um espírito da floresta, mas irradiava uma beleza etérea que parecia roubada de um sonho. Sua pelagem era de um branco imaculado, como a primeira neve que cobre a terra em silêncio, e seus olhos, duas profundezas azuis cintilantes, brilhavam com uma luz interior, parecendo conter a antiga sabedoria das florestas, segredos sussurrados pelas folhas e pelo vento. De sua cabeça erguiam-se chifres de marfim polido, suas ramificações intrinadamente esculpidas pela natureza, como galhos de uma árvore mágica. Mas havia algo a mais… Apesar de sua aura pacífica e da óbvia natureza herbívora, os Luminis tinham presas, duas longas e afiadas caninas que curvavam ligeiramente para fora, como as de um predador.

Kael ficou momentaneamente encantado com a criatura, um sentimento raro e quase esquecido brotando em seu peito. Ele nunca havia encontrado um na vida antes, apenas ouvido os contos sussurrados nas noites de inverno.

O Cervo Luminis era incrivelmente raro, quase uma lenda viva. Sua beleza singular e as propriedades místicas de seus chifres luminescentes o tornaram alvo de caçadores implacáveis, homens gananciosos e desesperados. Os chifres, além de sua beleza inegável, eram considerados artefatos sagrados em algumas culturas antigas, talismãs de proteção contra energias negativas e ingredientes valiosos em poções e elixires capazes de feitos extraordinários. Essa cobiça insaciável levou a espécie à beira da extinção, tornando cada encontro uma raridade quase milagrosa. Sua pelagem branca o destacava na floresta escura, tornando-o vulnerável aos olhos famintos, mas também o associava a ideias de pureza, magia e uma profunda conexão com a natureza selvagem, um farol de esperança em um mundo sombrio.

"Em algumas lendas, os cervos noturnos Luminis são vistos como mensageiros dos deuses ou guias espirituais… Quanta besteira!" Pensou Kael, o ceticismo habitual voltando como uma onda fria, quebrando o breve encanto. Ele nunca confiou em contos e lendas.

O animal ficou o encarando, a cabeça inclinada ligeiramente, enquanto ruminava preguiçosamente. Sua boca se abria ligeiramente para revelar os dois caninos longos e afiados, uma anomalia perturbadora em um ser tão delicado, como os dentes de um predador faminto escondidos sob uma máscara de inocência. Um herbívoro marcado pela anomalia, um ser à margem da própria natureza, alvo de lendas sussurradas nas noites frias, um enigma biológico que, de alguma forma sinistra e inexplicável, ecoava a própria existência de Kael.

— Vai ficar aí me encarando como um presságio de desgraça? — O animal continuou parado, seus olhos fixos em Kael. — Melhor sumir daqui enquanto ainda pode, antes que a fome me faça esquecer meus modos principescos.

Sua voz, embora ameaçadora, continha uma nota de cansaço, uma resignação sombria à sua própria natureza isolada.

O pequeno cervo saltou para dentro de um emaranhado de arbustos, movendo-se com uma agilidade surpreendente, desaparecendo silenciosamente na escuridão cada vez mais densa da mata, como se nunca tivesse estado ali.

Kael seguiu trilha adentro, o caminho agora mal definido sob a sombra das árvores. A selva se tornava cada vez mais densa e sinistra a cada passo, engolindo a luz crepuscular. Mas a imagem estranha da criatura, a beleza etérea contrastando com as presas predatórias, somava-se à crescente e inquietante certeza de que aquela floresta inóspita guardava segredos mais profundos e perigosos do que ele jamais poderia imaginar. E, de alguma forma sinistra, ele sentia, com um calafrio percorrendo sua espinha, que estava prestes a se tornar parte deles.