Acordei batendo a cabeça na parte superior da cama, que era pequena. Ainda assim, dormir em uma cama foi muito melhor do que no chão. Coloquei as mãos sobre a boca e soprei, tentando aquecê-las, pois o frio era considerável.
Espreguicei-me e fui até o salão. Era bem cedo, e ainda estava fechado. Clarice, Anne e outra garota estavam limpando as mesas enquanto o pai de Clarice lavava alguns pratos no balcão.
— Olha quem acordou, o dorminhoco. Acho melhor se preparar — disse Clarice com um leve sorriso.
— Me preparar? pra quê?
— Dormiu bem? — perguntou o pai de Clarice.
— Sim. — Me aproximei e sentei em um dos bancos do balcão.
— Acho que ainda não me apresentei. Me chamo Henry. E você?
— Saito.
— Está frio, aqui, tome um pouco de chá pra esquentar. — Ele colocou um copo de chá na minha frente.
— O que eu vou ter que fazer hoje?
— Não é muita coisa: apenas carregar algumas caixas e limpar alguns legumes.
Não parecia ser muito, considerando o que receberia em troca. Tomei um gole do chá, que imediatamente me aqueceu por completo. Decidi que terminaria o que precisava fazer hoje e partiria amanhã ao amanhecer, sem mais desvios ou interrupções.
— Por que você não aceitou o pagamento pela comida ontem?
— Estava apenas te agradecendo.
— Me agradecendo? Pelo o que?
— Tava vendo você conversando com minha filha ontem. Já fazia tempo que não a via sorrir de verdade.
— Hã?
— Clarice era uma garota muito animada quando era pequena, mas tudo mudou quando ela descobriu esse poder que possui.
— Como ela conseguiu esse poder?
— Não sei exatamente. Um dia, enquanto brincava com as outras crianças, uma delas se machucou. Quando Clarice colocou a mão sobre o ferimento, ele foi curado.
Esse poder era realmente um mistério. Nas histórias que eu ouvi, nunca tinha encontrado nada parecido: um humano com poder de cura?
— A partir desse dia, muitas pessoas começaram a pedir pra que ela curasse seus ferimentos. Até começaram a planejar cobrar pra curar pessoas de outras vilas. Teve um dia que ela curou tantas pessoas que seu nariz e seus olhos começaram a sangrar. Foi aí, que eu disse a todos que ela não ia fazer mais isso.
— É assim que os humanos são: não podem ver uma oportunidade que querem se aproveitar. Por que ela ainda continua?
— Após muita insistência do padre, concordamos que ela curasse apenas uma pessoa por semana na igreja ou em casos de risco de morte.
— E foi assim que ela ficou conhecida como santa, certo?
— Sim. No começo, ela até ficava feliz em ajudar, mas quando começaram a chamar ela de santa e a venerar todos os dias, ela perdeu a alegria que tinha. Às vezes, desejo que ela nunca tivesse recebido esse poder.
Deve ser cansativo ter que lidar, todos os dias, com pessoas bajulando desse jeito e forçar sorrisos apenas para manter as aparências.
— Terminei aqui. Vamos começar a carregar as caixas.
Saímos para fora, onde as pessoas se organizavam para a festa ao redor da taberna de Henry, montando pequenas barraquinhas. Depois de caminhar um pouco, meus olhos se arregalaram ao ver as caixas que precisaríamos carregar para a taberna.
— É tudo isso?
— É que muitas pessoas fazem doações durante o ano pra essa festa. Vamos começar rápido, senão não vai dar tempo.
Começamos a carregar caixas para um beco nos fundos da taberna, conforme o tempo passava, percebi que o pagamento por esse trabalho talvez não valesse a pena.
Quando finalmente terminamos, já era meio-dia, e minhas costas estavam exaustas de tanto esforço. Entramos na taberna, bebi um pouco de água e me sentei para descansar por alguns minutos.
— Aqui pega. — Ele me entregou uma faca.
— Pra que isso?
— Como vai limpar os legumes? Deixei uma bacia com água lá pra ajudar. Depois, levo um pouco de comida pra você.
Ao sair da taberna, foi então que percebi o que me aguardava. Ao ver todas aquelas caixas de legumes que havíamos carregado, deixei a faca cair da minha mão, incrédulo. Seria eu quem teria que limpar e cortar tudo aquilo.
Tá de brincadeira, né? Vai alimentar a vila toda? Naquele instante, arrependi-me profundamente de ter decidido ficar.
As horas passaram, e meus dedos da mão direita estavam completamente enrugados por tanto tempo na água.
Eu deveria tá perto da floresta agora, mas aqui estou eu, cortando raízes de batatas. Isso tá muito errado.
Quando finalmente terminei, a noite já havia caído. Peguei um copo de água, sentei-me sobre as caixas e permiti que o cansaço tomasse conta de mim por alguns momentos.
De repente, Clarice saiu pela porta, fechando-a atrás de si, e soltou um longo suspiro enquanto abaixava a cabeça.
— Fugindo da sua festa?
— Só quero um minuto pra respirar. Meu pai foi em casa buscar o bolo… Pera, você limpou tudo?
— Sim. Seu pai falou pra limpar. Tá errado?
— Eu acho que três caixas já eram o bastante. O resto era pra os outros dias. Que tipo de maluco passaria o dia todo fazendo isso?
— Que?
Aquele maldito do Henry não me disse nada. Ele simplesmente veio, pegou três caixas já limpas e as levou pra dentro. Ainda teve a ousadia de sorrir e dizer que eu tava rápido. Acho bom ele pagar bem pelo trabalho.
— Hahaha. — Ela passou sorrindo na minha frente e sentou-se em uma das caixas. — Sabe, é bom conversar com alguém normal as vezes.
— Todos aqui são assim?
— Só meu pai, Anne e minha irmã não ficam enchendo o saco com isso de santa.
— E sua mãe?
— Ela é a pior. A sorte é que ela fica em casa com minha irmã, cuidando das plantações. Ela insiste que eu tenho que ficar o tempo todo na igreja, dizendo que é um pecado uma santa ficar em uma taberna.
Poucos instantes depois, uma das garotas que trabalhava na taberna surgiu correndo, com o rosto marcado por uma expressão de pânico. Clarice não hesitou e se aproximou rapidamente para entender o que estava acontecendo.
— Que foi Bertha? por que tá assim?
— É a Anne… 4 homens apareceram e levaram ela.
— O que? Onde?
— A gente saiu pra pegar um pouco de água no poço… eles apareceram do nada e levaram ela. Joguei o balde de água em um deles e consegui fugir.
— Bertha corra e avise o meu pai.
— Certo!
Ela correu e entrou rapidamente na taberna, enquanto Clarice começou a seguir na direção de onde a garota havia vindo.
— A onde vai?
— Não é obvio, vou atrás da Anne.
— Sozinha? Não vai esperar seu pai e os outros?
— Tenho que encontrar ela rápido, eles podem machucar ela.
— E que vai fazer se encontrar eles?
— Não sei… mas não posso deixar ela sozinha!
Eu não queria me envolver nos problemas dos outros, então fiquei apenas observando enquanto ela caminhava sozinha. Seus punhos estavam cerrados, mas era possível notar que ela tremia levemente. Mesmo com o medo do que poderia encontrar, ela continuava. Suspirei, cocei a cabeça e me levantei, seguindo na direção dela.
— Tá, vou ajudar a procurar também.
— Obrigada.
— Onde fica esse poço?
— Por ali, vamos.
Corremos até o poço, mas, ao chegar lá, não havia ninguém. Olhei ao redor, tentando encontrar algum movimento, mas tudo estava vazio; todos estavam na festa. Procurei pegadas no chão, mas foi em vão, pois havia marcas para todos os lados.
— ANNE!
— Ei, sua idiota, não grita. Se escutarem, só vão fugir com ela.
— Desculpa.
— Me diga, tem algum lugar abandonado por aqui?
— Abandonado?
— Sim. Qualquer lugar.
— Abandonado… ah, a antiga casa de Anne, ninguém mais mora lá.
— Onde fica?
— Fica por ali, a alguns minutos depois da saída da vila. — Ela apontou.
— Certo, fique e espere por seu pai.
— Não, eu vou também!
— Você só vai atrapalhar.
— E se ela estiver gravemente ferida?
— Tá, mas faça tudo o que eu falar.
— Certo!
Seguimos apressados em direção à antiga casa da Anne. À medida que nos afastávamos da vila, a escuridão nos envolvia cada vez mais, e apenas a luz tênue da lua nos guiava pelo caminho. Mais adiante, avistei a casa e, com um olhar mais atento, percebi que havia movimento lá dentro. Sem dúvida, eram eles.
Nos aproximamos em silêncio e, ao olhar pela brecha das tábuas, vi os quatro homens dentro da casa. Anne estava no chão amarrada, enquanto um deles, que usava um tapa-olho, estava por cima dela. Seu rosto exibia um machucado, provavelmente causado por um soco forte, e um corte no abdômen que parecia profundo, considerando a quantidade de sangue no chão.
Se eu agisse com cautela, poderia lidar com eles facilmente, mas Anne estava extremamente pálida. Não havia tempo para hesitar, então decidi agir de imediato.
— Clarice vamos entrar, fique atrás de mim — sussurrei.
Ela acenou com a cabeça, confirmando. Com meu braço esquerdo, soquei a parede de tábuas com força. Os destroços voaram por todos os lados dentro da casa, e um deles atingiu o lampião, que caiu no chão e começou a incendiar o entorno. Os quatro recuaram um pouco, tomados pelo susto, o que nos deu a chance de nos aproximarmos de Anne.
— Quem são vocês? — perguntou o do tapa-olho.
— Seus lixos, quatro contra uma garota?
— hã? Por causa dessa putinha que nos entregou, quase morri naquela merda prisão. Eles até me cegaram.
Clarice se ajoelhou ao lado de Anne, mas, ao ver a quantidade de sangue, ficou paralisada por um instante, tomada pelo choque.
— Clarice rápido! — Ela voltou a si e começou a curar Anne.
Os quatro observaram, surpresos, enquanto o ferimento de Anne era completamente curado diante de seus olhos.
— Tristan, essa é a santa que aquele cara disse.
— Sim, quem diria que era verdade. Vamos ganhar uma boa nota se vender ela. Matem esse aí.
Pelo visto, Tristan, o do tapa-olho, é o chefe.
Dois deles começaram a se aproximar, ambos empunhando espadas. Não podia me afastar das garotas, e a entrada que eu havia aberto agora estava tomada pelas chamas. Abrir outra passagem para tirá-las, especialmente com Anne desmaiada, estava fora de questão. Minha única opção era enfrentá-los e derrotá-los o mais rápido possível. Merda, olha onde eu vim parar.
O primeiro avançou com um corte vertical, mas era evidente que não tinha nenhuma habilidade com a espada. Esquivei-me com um passo lateral, movendo-me com facilidade, e, usando meu braço esquerdo, desferi um soco firme em sua barriga, fazendo-o cair de joelhos no chão.
O segundo, sem hesitar, tentou uma estocada. Abaixei-me para desviar e, em seguida, apliquei uma rasteira precisa que o fez cair com força no chão. Aproveitei o momento, segurei-o pela gola da camisa e me preparei para desferir um soco poderoso com meu braço esquerdo em seu rosto.
— Por favor, não. — Ele implorou enquanto eu o segurava.
Ao encarar diretamente seus olhos, por um momento, hesitei. Essa breve distração foi suficiente para que o terceiro homem avançasse rapidamente e desferisse um golpe. Consegui desviar a tempo, rolando para o lado das garotas, mas logo senti uma queimação intensa nas costelas. Ao passar a mão, percebi que estava cheia de sangue; havia sido atingido. Não teria tempo para que Clarice me curasse. Mesmo com a adrenalina correndo pelo meu corpo, a dor começava a se intensificar.
Levantei-me com esforço, fechei os olhos por um instante e respirei fundo.
✧༺⚔༻✧
Um ano antes, Haldan e eu acampávamos nos arredores de Lunaris. O céu começava a escurecer, e enquanto eu organizava a fogueira, ele se aproximou com passos calmos e sentou-se ao meu lado.
— Já tá quase na hora de você partir; o tempo passa rápido.
— Sim.
— Fiquei realmente surpreso com o quanto você evoluiu nesses anos.
— Tudo isso graças a você.
Haldan ficou em silêncio por alguns segundos, observando o fogo crepitante da fogueira.
— Saito, você sabe que, quando partir, vai chegar o momento em que terá que lutar com sua vida em risco.
— Eu sei disso. Já estou preparado.
— Não é só isso, você vai precisar tirar vidas.
— Pode ter certeza, se eu encontrar aqueles Corrompidos, não vou deixar eles vivos!
— Não é bem isso que eu quero dizer.
— Então, o que é?
— É provável que você viaje por todo esse mundo e acabe se deparando com pessoas ruins. Quando esse momento chegar, você terá que tomar uma decisão, seja pra sobreviver ou pra proteger alguém.
— Se for necessário, eu mato.
— Espero que tome a decisão certa.
— Por que você diz isso?
— É que nesses anos que passamos juntos, percebi uma coisa…
— O que?
— Saito, você é uma boa pessoa.
✧༺⚔༻✧
De volta ao presente, ergui o olhar, fixando-o nos quatro homens à minha frente. A dor do corte queimava intensamente, mas recusei-me a deixá-la me enfraquecer. Soltei os ombros e, senti meu corpo relaxar. O mundo ao meu redor desapareceu; minha atenção estava completamente focada neles. Eu sabia exatamente o que precisava fazer.
— Seus idiotas, como tão perdendo pra um pirralho?
O primeiro que atingi se recompôs e avançou novamente, repetindo o corte vertical. Permaneci imóvel até o instante em que a espada quase me alcançou; então, ergui minha mão esquerda, segurando a lâmina com firmeza. O choque nos rostos dos outros era evidente, incrédulos diante do que presenciavam. Com um movimento ágil de um dedo, enrolei meu fio ao redor do pulso que segurava a espada, decepando-o com precisão brutal.
— AAAAAAHHH. — Ele caiu de joelhos, gritando em desespero.
Caminhei com tranquilidade ao seu lado, envolvendo-o gradualmente com vários fios. Os outros, à frente, permaneciam imóveis, ainda em choque. Após alguns passos, movi minha mão com precisão, e os fios que o cercavam se apertaram, despedaçando-o em segundos.
Então é isso que se sente ao tirar uma vida… É difícil explicar, não estou triste. Afinal, lixos precisam ser descartados.
— Não fiquem aí parados, ataquem! — gritou Tristan, apontando sua espada para mim, com os olhos arregalados.
Os outros dois avançaram em minha direção. Um deles tentou um corte rápido, mirando no meu pescoço. Posicionei meu braço esquerdo ao lado do rosto, bloqueando o ataque. O impacto foi tão forte que produziu um estrondo metálico. Incapaz de segurar a espada, ele a soltou, e a arma foi arremessada para o lado.
Sem perder tempo, o outro surgiu atrás dele com uma estocada direcionada à minha perna direita. Sua habilidade com a espada era visivelmente superior à dos outros. Movi minha perna rapidamente para fora do alcance, mas logo percebi que era uma finta. Ele redirecionou a espada para um corte horizontal, mirando no meu lado direito.
Com rapidez, movi meus dedos, lançando meus fios até meu pé direito. Estiquei-os rapidamente, bloqueando o ataque enquanto faíscas percorriam os fios. Nesse breve instante, enrolei um dos fios na espada dele e o deslizei ao redor do pescoço de seu parceiro ao lado. Quando ele recuou a lâmina, tentando outro golpe, o fio tensionou com precisão mortal, resultando na decapitação do companheiro. Ele ficou atordoado ao ver a cabeça caindo no chão e rolando ao seu lado.
Sem hesitar, desferi um chute com minha perna esquerda, quebrando a dele instantaneamente. Ele caiu ao chão, tentando inutilmente se apoiar. Antes que pudesse reagir, desferi um soco poderoso na sua nuca, afundando sua cabeça contra o chão.
Tristan avançou rapidamente enquanto eu estava abaixado, desferindo um corte vertical. Sem hesitar, ergui meu braço esquerdo, bloqueando o ataque. O impacto fez a espada dele ricochetear para cima, forçando-o a dar alguns passos para trás.
— Seu desgraçado, o que é você? — Ele segurou a espada com as duas mãos, tremendo.
Levantei-me calmamente, posicionei-me à frente dele e girei o corpo com rapidez, usando o movimento rotacional para impulsionar minha perna esquerda em um arco poderoso. Ele tentou colocar a espada na frente na esperança de cortar minha perna, mas foi inútil. O impacto atingiu sua cabeça com força brutal, jogando-o ao chão e arremessando-o contra a parede.
Percebi que, mesmo após aquele chute, ele ainda estava vivo. Caminhei lentamente até ele, abaixei-me, segurando firmemente a gola de sua camisa, e me preparei para desferir um golpe poderoso com o braço esquerdo.
— Não faça isso, Saito! Não mate mais!
Ao olhar para Clarice, vi que ainda estava sentada com Anne em seus braços. Por um instante, esqueci completamente que elas estavam ali.
— Se você fizer isso… não será diferente deles.
Parecia que ela me encarava com olhos tomados pelo pavor, enquanto lágrimas deslizavam por seu rosto. Desviei meu olhar para Anne em seus braços, ensanguentada. Nesse instante, uma lembrança de Yuri atravessou minha mente.
Esse cara, mesmo tendo uma nova chance, fez exatamente a mesma coisa. É assim que os humanos são!
Desferi um golpe soco brutal no rosto dele que enfiou para dentro da parede junto com meu braço enquanto sangue jorrou em cima de mim.
O fogo já estava consumindo tudo. Ao me levantar estava tonto, e minha visão estava escurecendo. Perdi muito sangue, com o ferimento do começo da batalha. Me virei para as garotas mal conseguindo ficar de pé.
— Saito, A Anne… — Caí no chão, incapaz de ouvir mais nada.
Com o pouco que restava da minha visão, vi Clarice, que parecia desesperada. Tentei mover meu corpo, mas ele não respondia. A escuridão tomou conta, e então desmaiei.