O que é isso? Meu Deus, o que é isso? Lembro-me de estar em minha cama, envolto em meus cobertores, sentindo o pelo da cauda do meu felino, mas, agora, nada mais sinto. Por que nada sinto? Em minhas costas, na verdade, uma maciez se impregna como a relva de uma fazenda. Muito específico, eu sei, mas é que meu tio, um matador de porco, já me levou para abater suínos.
É tão assustador não ver nada, nem quase sentir, apenas pensar. Somente a escuridão me abraça com seus dedos e braços gélidos diante a morte iminente. Se apenas alguém pudesse ascender o abajur, sinto que as trevas, que ao meu encalço se põem, sumiriam como o vento escapando por uma janela destrancada.
De repente, esses meus pensamentos me abdicam, pois sinto que algo toca-me nos ombros, balançando-me como uma cortina. Balançam-me. Balançam-me. Nem mesmo esperam eu responder, pois somente continuam a me balançar. E eu, cansado de sentir-me como em um navio em águas furiosas, abro os olhos.
Diante minha visão, tomada, à princípio, por galhos de árvores frondosas, também se atém a imagem de homens hisurtos em armaduras de metais espessas. As cores amarronzadas de suas barbas contrastam com o vermelhos-rubro que mancha seus ombros, braços e antebraços. No centro do peito, um pingente de leão que ruge em fúria.
Eles parecem conversar entre si, mas em línguas distantes, que em meus ouvidos não ressoam com a mesma familiaridade da minha língua materna. Falam animados, porém com cadência. Mas tal cadência não me parece certa. São miúdos, pequenos, de tamanhos que lembram-me seres de histórias folclóricas ou fantasiosas. Isso faz algum sentido? Creio que não.
Como se minha vida dependesse disso, salto mais rápido do que eu mesmo esperava, indo para trás e quase caindo, mas conseguindo me manter de pé. Eles me olham, confusos, erguendo machados que em suas mãos jazem. Novamente, se entreolham, e comentam algo, e passos à frente dão, e suspiros pesados — de vozes pesadas — raiam de suas bocas como um vulcão furioso.
Penso em virar para trás e correr, mas então me pergunto: por quê? Se quisessem me matar, já teriam o feito. Suas armas, tão grandes quanto minha cabeça, tem aspecto ameaçador, como se sua lâmina pudesse rasgar até o metal mais resistente de todos. Minha carne, no entanto, não está nessa categoria.
Por isso, escolho, ao menos, dizer algo:
— Quem são vocês? — Forço a voz mais firme que posso, mas soa com uma falsidade clara.
Eles interrompem os avanços curtos, e se olham novamente, e se voltam para mim após um tempo em outros murmúrios incompreensíveis.
— Tu falaste a língua humana, garoto? — pergunta um dos homenzinhos, de olhos azuis.
Arqueio uma sobrancelha. Desde quando eles podem me entender? Desde quando, na verdade, eles podem falar em línguas comuns? Acho que desde sempre. Eu é que não lhes perguntei corretamente antes.
— Sim, eu acho — digo, hesitante. — Sou um humano, afinal.
— Um humano? — Ele se mostra perplexo. — Acreditei desta raça estivessem nas montanhas de Ghumder. — Dirige o comentário àquele ao seu lado, o mesmo que fora o primeiro a falar comigo em língua humana.
— Pois isso eu vejo — responde ele. — Se tu fores um humano como dizes, então explique como chegaste em uma parte tão longínqua das que teu povo errante habita.
Não respondo. Minha boca pesa como uma pedra, e as palavras dançam e se misturam em um ritmo desconhecido. O que eu deveria responder? Nem mesmo sei do que eles falam. Meu povo? Meu povo não é daqui. Mas ao menos uma resposta rápida possa satisfazê-los e, quem sabe, possam dar-me um reflexo de como acabei aqui.
— Senhor...? — digo.
— Fisur — completa o que me perguntou.
— Certo. Senhor Fisur, como cheguei aqui também me é um mistério. Eu estava em casa... Não aqui. Óbvio que não aqui. Quem, em sua maior sanidade, escolheria acolher-se no barro e ao relento? Tenho uma cama, um quarto onde meus objetos estão, então este, posso ver, não é o meu lugar.
O senhorzinho me encara com maior atento, seu cenho franzido e seus olhos brilhando.
— Serias ele um Rondador? — diz um outro, que até então não se pusera em tanta análise.
— Um Rondador? — pergunto. O termo me é estranho.
— Sim, um ser que ronda a passos flamejantes sob as nuvens, observando-nos com apreço. Olhamo-los com reverência. Sérias tu um Rondador, garoto?
Que história ridícula. Um ser que pisa sob as nuvens? Ele é o quê, um avião? Sinto a vontade de rir subindo por minha garganta e batendo à porta dos meus lábios. Não deixo escapar; seria tolice irritar aqueles que armas manejam.
— E por que eu seria um Rondador?
— Bem — diz Fisur —, seres um Rondador por causa das histórias que os cercam. Caíste no mundo sem saberes o porquê, então não me é conveniente desacreditar de tal hipótese, certo?
— Acredite no que lhe for melhor — retruco, já sem paciência para tanta besteira —, só não me coloque em suas crenças.
— Então assim hei de me colocar a crer. — Um sorriso bobo surge em seus lábios, fazendo-me repensar minhas atitudes.
— Mas e agora? — questiono. — Como posso voltar para casa?
Eles cochicham entre si, mas as vozes são tão altas que de pouco dá para distinguir. Quando voltam a me olhar, vêem que não estou com a mesma calma de antes. Já percebi que eles não são tão perigosos quanto pensei, por isso posso abaixar a guarda um pouco.
— Siga-nos — diz o que nenhuma palavra antes soltara. — Fazes parte dos Rondadores, então és parte de nossas família. Caminha a nossos encalços com passos comprometidos, e a música em teus lábios ressoarás. Então, venham!
Com isso, puseram-se a caminhar, cada um ao lado do outro. A estrada é ladeada por árvores e arbustos que se erguem com as pontas poucos palmos acima do chão. Não marcham em completo silêncio — não —, mas, sim, com a música fluindo de seus lábios enrugados. Eu, por outro lado, faço o oposto: permaneço em silêncio, mas ainda busco aproveitar um pouco do que isso pode oferecer.
A música segue assim:
"Senhor dragão, não temeremos mais.
Sua destruição, fugir de ti somos capaz.
Do fogo sua caverna apetece.
A luminosa estrela celeste..."
E assim até eu começar a cantarolá-la em tom baixo.