O tempo não perdoa. Ele avança, independente do que deixa para trás. Cidades, civilizações, reinos inteiros… Nada sobreviveu à passagem implacável dos séculos. Mas algumas cicatrizes não desaparecem. Alguns permaneceram gravados na própria essência do mundo.
A Grande Ruptura foi uma dessas marcas.
Quinhentos anos se passaram desde aquele dia. Ninguém sabia ao certo como começou. Os registros históricos eram fragmentados, distorcidos por versões conflitantes e narrativas desesperadas para encontrar um culpado. Alguns diziam que era o excesso de Essências dos Grandes Antigos. Outros, que foi um erro da humanidade, que tentaram brincar com forças além de sua compreensão. Não fim, pouco importante. O resultado era inegável: o mundo que existia antes não era mais o mesmo.
Já o que restava era um cenário despedaçado e pós-apocalíptico, apenas um fragmento destruído de tudo que esse mundo era antes, onde as lendas do passado e resquícios dos grandes antigos permeavam a realidade.
Esse período ficou conhecido como "Era do Declínio"
E foi nessa Era que eu nasci.
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O mundo estava mudando. O que um dia foram cidades vibrantes e impérios poderosos, agora eram apenas esqueletos corroídos pelo tempo, engolidos por florestas anômalas, desertos enegrecidos e ruínas que sussurravam histórias perdidas.
A civilização, como era conhecida, não existia mais. O que restou foram colônias improvisadas, formadas por grupos de sobreviventes que lutavam diariamente contra a fome, os perigos invisíveis do ambiente e os horrores deixados pelos Grandes Antigos.
A minha colônia, chamada Refúgio da Aurora, era um amontoado de construções remendadas erguidas sobre os escombros de uma antiga metrópole.
Já faz 16 anos desde que nasceu em um dos hospitais improvisados pelos habitantes de Aurora. O chão de terra batida e as paredes de ferro enferrujado me conheciam desde o primeiro dia. O cheiro de remédios barulhentos e de carne queimada, algo que os antigos chamavam de "esterilização", misturava-se com o ar pesado da colônia.
Assim que minha mãe me segurou nos braços, sem sair, ela me concedeu o nome "Velyn", o nome do meu pai.
...que por sua vez, havia falecido alguns meses antes do meu nascimento.
Ela nunca me disse exatamente como ele morreu. Apenas que ele havia saído em uma missão fora da colônia e nunca mais voltou. A versão oficial era que ele tinha sido pego por uma das tempestades corrosivas e monstros misteriosos que assolavam as terras devastadas além das fronteiras. Mas, nas minhas noites mais silenciosas, quando descobri que eu já estava dormindo, a mãe sussurrava coisas diferentes para si mesma.
"Você não simplesmente desaparece, não sem um motivo..."
Mas, independentemente da verdade, a ausência dele nos deixou quebrados.
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Minha mãe nunca teve uma vida fácil. Depois de passar pelo Ritual de Passagem, sua Essência se manifestou, mas algo deu errado.
Diferente dos outros, que despertavam habilidades, força, sentidos aprimorados ou poderes além da lógica, a dela nunca se ativou. O que deveria ser um renascimento se tornou uma sentença. A Febre da Essência deixou fraca, seu corpo nunca mais foi o mesmo, e a doença se tornou uma companheira constante.
Mesmo assim, ela sobreviveu. E isso precisava que agora eu precisasse sustentar a si mesma… e a mim.
Os dias começaram antes mesmo do sol surgir. A colônia despertava com o som dos motores falhando, martelos batendo em metal e vozes abafadas coordenando tarefas. A eletricidade era um luxo, então dependíamos de baterias improvisadas para manter as coisas funcionando.
Minha mãe trabalhava no setor de reparos, consertando o que podia — de armaduras improvisadas até os velhos purificadores de ar que mantinham a colônia de pessoas. Mas ela nunca teve força suficiente para os trabalhos pesados, então seu pagamento era mínimo. O suficiente para comprar um pouco de comida, um pouco de água limpa… e nada mais.
Eu cresci ouvindo seus lances secos e cuidando dela nos dias que a sua febre retornava.
Houve dias bons. Dias em que conseguímos um pão feito com farinha de raízes moídas ou quando algum caçador voltava com carne suficiente para ser distribuído entre os trabalhadores. Mas também havia dias em que a comida não era suficiente, e tudo o que tínhamos era uma sopa rala feita de restos fervidos até se tornarem irreconhecíveis.
E então, havia os dias ruínas.
Como quando um grupo de Portadores de Essência retornava de uma missão, feridos e exaustos. Um deles era um velho amigo da minha mãe, um homem de braços musculosos, mas rosto cansado.
"Foi uma emboscada. Criaturas saíram do solo. Perdemos três."
Minha mãe não disse mais nada. Apenas baixou a cabeça e entregou um pedaço de pano limpo para ele limpar o sangue seco de suas roupas.
A realidade do mundo era simples. Se você não era forte, você não era nada.
E eu? Eu não era nada. Apenas um garoto magro demais para ser útil e novo demais para ser treinado.
Mas isso mudaria. Eu sabia que cedo ou tarde, minha hora chegaria.
Eu só não sabia que seria tão cedo.
Sem aviso, sem nenhuma reclamação, fui feito pelo Ritual de Passagem.
A febre veio primeiro. Fraca no começo, mas logo me deixou preso na cama, incapaz de me mover sem sentir o corpo protestar. Era um processo lento, impiedoso. Meu sangue parecia, como se algo dentro de mim fosse pesado se moldando à força.
Minha mãe ficou ao meu lado o tempo todo. Mesmo doente, mesmo frágil, ela cuidou de mim como poderia.
Mas não estávamos sozinhos.
Alice era respeitada em Aurora. Seu trabalho com artistas e itens mágicos mantinha a colônia viva, e sua gentileza fazia dela uma das poucas pessoas que todos queriam proteger. Então, quando fiquei doente, a colônia se moveu. Trouxeram ervas, comida, ajudaram como pudemos. Disseram que minha mãe precisaria descansar, que eu logo estaria melhor.
Mas havia outro motivo.
Mais um Portador era sempre bem-vindo. Uma colônia de guerreiros, de pessoas capazes de lutar e manter tudo de pé. Eu ainda era jovem, mas se sobrevivesse ao Ritual, me tornaria um deles.
E eu queria ser.
A dor, a febre, os dias inteiros de fraqueza… tudo isso valeria a pena.
Porque, no fim, eu poderia ajudar minha mãe.
Então, sempre que a via preocupada, sempre que senti sua mão fria segurando a minha, eu repetia:
"Está tudo bem, mamãe. Eu vou dar o meu melhor como Portador quando isso acabar."
E finalmente eu poderia ajudar a mulher mais importante da minha vida: minha mãe, Alice.
Eu acreditei nisso.
Mas o mundo não era um conto de fadas. E eu ainda não sabia disso.
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.....
Nada. Nada.
Quando a febre passou, nada aconteceu.
Nenhuma mudança. Nenhuma força nova. Nenhum sinal do que deveria ser minha Essência.
Os olhares ao meu redor mudaram com o tempo. A excitação inicial se desfez, dando lugar à incerteza. Os sussurros se tornaram mais frequentes.
"Talvez apenas precise de mais tempo..."
"Ou talvez… nunca aconteça."
Nos anos que passaram, mas nada mudou. Nenhum sinal de despertar. Nenhuma fagulha de poder.
Minha mãe ainda sorria, tentando esconder a preocupação. Mas eu via. E odiava isso.
Odiava os olhares. Odiava o silêncio pesado que sempre vinha depois.
Odiava a ideia de que, talvez… talvez eu nunca pudesse ajudá-la.
E então, algo aconteceu—algo que mudaria minha vida para sempre.