A cidade sangra todas as noites.
Talvez seja um esgoto que transborda e engole os becos de miséria. Talvez um corpo flutuando no rio, inchado pelo tempo e pelo descaso. Talvez seja apenas uma briga de bar que termina com um homem apagado no meio-fio, o nariz quebrado e a dignidade escorrendo pelo ralo junto com a chuva.
Mas a cidade nunca sente remorso. Ela continua. Os carros passam, os letreiros piscam, a fumaça sobe. O sangue seca.
Meu nome é Laurent Dumas, e sou o homem que a cidade chama quando o sangue se recusa a secar.
A vida inteira investiguei crimes que eram apenas repetições. O mesmo padrão de ganância, de raiva, de desejo. Um homem mata outro por dinheiro. Um marido mata a esposa por ciúmes. Um adolescente se vinga de uma briga na escola. Crimes banais. Crimes de impulso. Crimes previsíveis.
Mas esta noite, eu sabia que não estava lidando com um crime comum.
Estava lidando com um assassino que sabia o que estava fazendo.
O Sangue Fala
O edifício Chabrier era um monumento à hipocrisia. No andar térreo, advogados com ternos caros vendiam justiça para quem pudesse pagar. Nos corredores, políticos faziam acordos que nunca chegariam ao conhecimento do público. No topo, Emiliano Duval reinava como um filantropo moderno, limpando sua alma à força de doações milionárias que mais pareciam um álibi moral.
Agora, o rei estava morto.
A cobertura de Duval cheirava a pólvora e álcool. A grande sala de vidro refletia a cidade abaixo, suas luzes brilhando indiferentes ao corpo caído no centro do cômodo. A pistola repousava em sua mão, como um adereço de teatro. O buraco na têmpora era preciso. Sem hesitação.
Mas eu sabia que aquilo não era suicídio.
A prova estava escrita na parede.
"A verdade só tem valor quando dói."
O sangue escorria pelas palavras, contornando o vidro como se a cidade pudesse lê-las do lado de fora. Como se fossem um aviso.
A morte de Duval não era o fim. Era o início de um manifesto.
– Suicídio? – murmurou Jules, um dos peritos, atrás de mim.
Não respondi. O silêncio era um velho amigo que me ajudava a pensar.
O que vejo? Um homem rico, respeitado, que supostamente tirou a própria vida. Mas seu rosto não tinha desespero. Ele não parecia um homem que decidiu morrer. Ele parecia um homem que foi obrigado a aceitar a morte.
O que não vejo? Sinais de luta. Arrombamento. Qualquer pista óbvia de um invasor.
O que sinto? Que o assassino quer que eu leia essa cena como um texto. Ele quer que eu entenda. Ele quer que eu veja o que ele vê.
Aproximei-me da mesa de vidro no centro do cômodo. Sobre ela, um copo de uísque intocado. Um cinzeiro vazio. E ao lado de tudo, um gravador portátil.
O assassino deixou uma mensagem.
Mas antes de ouvir, eu precisava entender o simbolismo.
O que significava essa morte?
O Manifesto da Dor
Um filantropo, alguém que passou anos construindo uma imagem de homem generoso, forçado a se matar diante de uma cidade que ele ajudou a moldar. A arma na mão, como um símbolo de sua própria responsabilidade. A mensagem no vidro, um testamento de que sua morte não era sobre ele. Era sobre a verdade.
O assassino não queria apenas matar. Ele queria criar um evento.
Duval não era uma vítima comum. Ele era uma ideia. E o assassino queria destruí-la na frente de todos.
– Pegue luvas – murmurei para Jules, apontando para o gravador. – Quero ouvir o que ele tem a dizer.
O assassino planejou tudo. Agora, ele queria que ouvíssemos sua voz.
A morte tem uma assinatura, e eu sou pago para reconhecê-la.
Em todos os crimes que investiguei, uma coisa sempre foi clara: a morte, mesmo nas circunstâncias mais caóticas, deixa marcas de quem a causou. Algumas deixam raiva, outras, desespero. Algumas, como um corte profundo, indicam um impulso. Mas outras... outras deixam uma impressão calculada, meticulosa, como se o assassino estivesse a assinar sua obra-prima.
O sangue, ele sempre revela tudo.
Agora, na sala iluminada pelas luzes da cidade, ele estava ali, contando a história que Emiliano Duval não poderia mais contar. Cada gota, cada gota escorrendo pela parede de vidro, parecia estar desenhando as palavras que o corpo não podia mais expressar.
Eu me abaixei ao lado de Duval, observando sua expressão tranquila. Ele estava no mesmo lugar onde a vida o havia abandonado, como se tivesse aceitado o destino com um tipo estranho de resignação. O buraco na têmpora esquerda era limpo, sem sinais de explosão. O sangue, coagulado, não respingava como deveria. Não havia desespero em seus olhos; ele estava perdido em uma reflexão que durou até o último momento.
A pistola estava em sua mão, mas não como um objeto de suicídio. Estava quase posada, como se o tivesse soltado, ou pior, como se não tivesse sido ele a puxar o gatilho.
Eu olhei para os olhos de Duval pela última vez e sabia que ali havia mais do que simples morte. Ele não estava apenas morto. Ele estava sendo usado. A sua morte tinha um propósito.
– Jules, o que você acha? – perguntei, sem desviar os olhos.
O perito estava à minha volta, anotando tudo com a velocidade de um homem já acostumado a cenas como essa.
– Ângulo do disparo sugere que ele estava sentado, com a cabeça ligeiramente inclinada. Não há resíduo de pólvora. Pelo que vejo, alguém o segurou firme para fazer o disparo. O sangue na parede indica que o tiro foi o último passo de um processo.
Eu balancei a cabeça.
– Ele foi forçado a fazer isso. O sangue aqui não mente.
Os olhos de Jules se estreitaram. Ele sabia que eu tinha razão.
E então, meus olhos se voltaram para a parede de vidro. A mensagem estava lá, imortalizada em sangue, lenta e dolorosamente desenhada. "A verdade só tem valor quando dói."
Não era apenas uma frase. Era uma sentença. Era uma provocação. Era um aviso. O assassino estava nos desafiando a entender o significado de sua obra.
Parei e observei o padrão de sangue na parede. O movimento das letras era irregular, algumas partes mais fracas do que outras, o que sugeria que Emiliano Duval já estava prestes a falecer quando a mensagem foi escrita. Cada letra, cada linha, parecia uma tentativa desesperada de contar algo que não podia ser dito com palavras.
Mas ele não foi apenas forçado a escrever aquelas palavras. Ele foi forçado a se tornar a própria mentira que ele pregava. Ele não se matou. Ele foi despojado de tudo que acreditava ser e se viu exposto. E, como qualquer pessoa que perde sua falsa identidade, ele teve de pagar o preço com o sangue de sua verdade.
Eu levantei-me e caminhei até a mesa de vidro onde o gravador repousava. Olhei para o botão de play com um frio no estômago. O que quer que estivesse ali, eu sabia que não era apenas um recado. Era um manifesto.
– Ligue isso – disse, já sabendo o que viria.
O som que saiu do gravador não foi o que eu esperava. Não havia desespero na voz. Não havia tristeza. Apenas uma calma gélida, como se o narrador já tivesse alcançado um lugar onde a morte e a vida se misturam e o sofrimento se torna parte do plano.
A voz, baixa e controlada, veio em ondas, como um rio de palavras que arrastava tudo ao seu redor.
"Emiliano Duval era uma farsa. Ele era o reflexo de um mundo que vive pela mentira, alimentado pela caridade que nunca curou, pela riqueza que nunca salvou. Hoje, ele aprendeu a verdade. E você, detetive, vai aprender também. Porque toda mentira precisa ser quebrada, e eu sou o martelo."
Aquelas palavras não foram ditas por alguém que queria apenas matar. Elas foram ditas por alguém que queria nos ensinar. Que queria que nós, espectadores, nos tornássemos parte de seu plano. Ele não queria apenas que Duval morresse. Ele queria que Duval entendesse o que era ser humano. Que entendesse a dor de ser exposto. E ele queria que todos nós soubéssemos disso. Que todos nós olhássemos para ele e visse o que ele via.
O assassino não estava interessado em esconder sua identidade. Ele queria que soubéssemos o suficiente para ver a verdade. E a verdade era que, em cada mentira que existia, havia um preço a ser pago. A mentira de Duval, a mentira da caridade, a mentira da cidade. Todos estavam sendo obrigados a pagar.
Eu me voltei para o corpo de Duval. Ele ainda estava lá, uma figura imóvel, mas de alguma forma, agora, ele parecia mais do que um homem morto. Ele era um aviso.
E eu sabia que, a partir de agora, minha vida seria definida por isso. Porque havia algo maior acontecendo. Algo que eu precisava entender, ou tudo o que havia sido construído ao meu redor seria destruído, como as mentiras que sustentavam as muralhas da cidade.
Eu estava ali, observando o cenário de mais um assassinato, os detalhes meticulosamente dispostos à minha frente. O sangue na parede, a posição da vítima, as marcas, tudo se encaixava em um quadro que eu começava a entender bem demais. Esse assassino, se é que eu posso chamá-lo assim, é preciso. Ele quer algo de mim, algo que eu ainda não compreendo totalmente, mas sei que estamos em uma corrida, e cada pista é uma peça de um quebra-cabeça insano.
Eu estava debruçado sobre a mesa no centro da sala, tentando observar os pequenos detalhes que poderiam me escapar. Cada vez mais, eu me via imerso na mente desse criminoso, quase como se ele me convidasse a entrar de forma crescente e assustadora.
Foi quando o celular tocou.
O som da chamada foi quase como um eco na sala, interrompendo meu raciocínio. Olhei o display: número desconhecido. Não hesitei. Atendi.
– Detetive Caldeira, certo? – a voz do outro lado era calma, quase entediada. Mas havia algo em sua cadência que me fez estremecer. Era como se ele estivesse... me estudando.
Respirei fundo. O sangue na cena do crime ainda estava fresco, a tensão no ar ainda podia ser sentida.
– Quem é você? – perguntei, tentando manter minha voz controlada, mas o frio na espinha era inevitável.
– Ah, você ainda não entendeu, não é? – ele riu, e a risada, apesar de suave, ressoou em minha mente de forma perturbadora. – Estou apenas começando a te mostrar.
Ele parecia ter prazer no controle que tinha sobre a situação. Mas o que mais me deixou inquieto foi que ele falava como se soubesse mais sobre mim do que eu mesmo.
– O que você quer de mim? – perguntei, mais por instinto do que por necessidade. Algo me dizia que ele já tinha me dado a resposta sem querer.
– Quero que você veja. Veja o que os outros não podem ou não querem ver. Veja o que é real, Caldeira. – Ele fez uma pausa, e o silêncio foi carregado, quase palpável. – Vá até a velha igreja São Miguel. Estou esperando por você. Você verá o que precisa ver para entender. E não se esqueça, o tempo está correndo. Não perca a sua chance.
Ele desligou, e a linha ficou em silêncio, como um vazio. Eu não sabia o que ele queria, mas não havia dúvida de que ele estava sempre à frente, controlando o jogo. Um passo à frente, como sempre.
Eu olhei para a cena do crime mais uma vez, agora com uma sensação de urgência, como se tudo tivesse se intensificado. Era como se eu estivesse entrando em um novo estágio do jogo.
---
Cheguei à igreja São Miguel em pouco tempo, um edifício antigo e imponente, com torres que pareciam tocar o céu cinzento da noite. A luz das lâmpadas nas ruas ao redor lançava sombras alongadas sobre o prédio. Não havia mais ninguém ali, o silêncio era absoluto. Quando entrei, o cheiro de mofo e o eco de meus próprios passos se misturavam com a sensação de que algo grande e sombrio estava prestes a acontecer.
As velas estavam apagadas, e a igreja estava deserta, exceto por uma figura no centro do espaço. Um homem, com roupas simples e o rosto oculto nas sombras da sua capô, sentado em uma cadeira no meio do altar. Seus olhos estavam fechados, como se estivesse esperando a chegada de algo – ou de alguém.
Eu me aproximei, cauteloso, observando cada canto, cada detalhe da igreja. Algo não estava certo. O ar parecia denso, como se as paredes estivessem respirando em uníssono. O homem, o pastor, estava imóvel, como se o tempo tivesse parado ao redor dele.
Foi então que eu vi.
No chão, ao lado da cadeira, estava o triângulo invertido. Não era grande, mas seu significado era claro. O sangue, ou o que parecia ser uma imitação de sangue, desenhava o símbolo de forma precisa, com suas linhas nítidas e afiadas. O triângulo parecia "olhar" para mim de uma maneira perturbadora, como se quisesse me engolir, me absorver por completo.
Ao fundo, contra a parede, a cruz estava ali, mas não da forma que eu esperava. Ela estava marcada, manchada. Mas o que mais me arrepiou foi o detalhe das moedas. Elas estavam empilhadas, em camadas sobre a cruz, cada uma delas coberta por um pigmento de sangue seco, que refletia fracamente a pouca luz da igreja. Moedas, como símbolos de corrupção, de valor distorcido, e talvez, como a última tentativa do assassino de me fazer entender sua mensagem: tudo tem um preço, até a verdade.
O pastor não se mexia, ainda sentado, como se fosse uma estátua, um espectro que observava tudo, mas sem interferir. O que ele sabia? Quem ele era? Eu não sabia, mas uma coisa era certa: o assassino queria que eu visse tudo aquilo. Ele queria que eu sentisse o peso daquela cena, como se eu fosse parte dela. Ele estava me testando.
Eu dei um passo à frente, meu coração batendo acelerado. O ar estava pesado demais, e uma sensação de inevitabilidade me envolvia. Olhei para o triângulo invertido mais uma vez, e então, como se uma luz acendesse, algo dentro de mim clicou.
Ele estava me mostrando o ciclo. Ele queria que eu entendesse que, por mais que tentássemos escapar, sempre acabamos voltando ao ponto de origem. E agora, eu estava preso nesse ciclo.
Era mais do que um crime. Era um manifesto.