Em um dia comum na vibrante cidade de Santos, Carla Macedo de Souza desperta como se fosse carregada pelas mãos gentis do dia, repousando sob um sono profundo e reparador. O sol da manhã invade o quarto através das frestas da cortina, espalhando um dourado quente que dança pelas paredes. Ela se levanta com a firmeza de quem sabe o próprio valor, deixando para trás os lençóis e abraçando o início de mais um dia.
No banheiro, a água quente escorre como um bálsamo, traçando caminhos invisíveis pelo ar e envolvendo tudo em vapor. Carla encara o espelho, onde se revela uma mulher negra de beleza imponente e juventude marcada por uma força tranquila. Seus cabelos afro, em um castanho escuro vibrante, coroam seu rosto como uma moldura de realeza. Os olhos castanhos capturam a luz, refletindo a determinação de alguém que carrega o universo dentro de si.
Descendo as escadas com passos que ecoam propósito, ela segue para a cozinha, onde o aroma do café recém-passado acolhe o ambiente como um abraço invisível. A manhã é simples, mas não desprovida de graça. Carla morde uma maçã, o som crocante preenchendo o ar.
— Hum… Está delicioso. — comenta para si mesma, o tom leve, quase uma confidência.
O celular repousa sobre a mesa, e ao olhá-lo, Carla vê a data: 22 de fevereiro de 2024. Faltam apenas dois dias para a missão que a espera. Não uma missão qualquer, mas o grande retorno da humanidade à Lua, um feito histórico que dorme há cinquenta e um anos no imaginário coletivo. Desta vez, o objetivo vai além de deixar pegadas; é hora de sondar as profundezas lunares e descobrir se um solo específico pode sustentar o sonho de uma base permanente. O planejamento foi liderado por James Miller, um experiente engenheiro espacial dos Estados Unidos.
A noite chega com sua quietude quase cerimonial, envolvendo a cidade em um manto estrelado. Carla sente a serenidade do momento, mas o silêncio é interrompido por um som distinto: três batidas firmes na porta. O coração dela acelera por um instante, a curiosidade tingida de cautela.
Ela se levanta e caminha até a entrada. Ao abrir a porta, encontra seus pais, cujos olhos brilham com um calor familiar e uma alegria silenciosa. A surpresa se mistura com a ternura, criando um instante que parece resistir ao tempo, como se o universo a presenteasse com um fragmento de eternidade antes do infinito.
— Filha! — exclama Alice, a mãe, com um sorriso radiante que parece iluminar toda a entrada — Sabemos que nos contou sobre a missão para a qual foi convidada, mas decidimos fazer uma surpresa para você. Não é mesmo, Rodrigo?
Rodrigo, o pai, suspirou com visível cansaço e confirmou que havia organizado tudo com a ajuda dos primos e tios, enquanto Alice cuidava dos detalhes. Carla ergueu as sobrancelhas, ainda sem entender completamente.
— E é exatamente isso! — afirmou Rodrigo, de braços cruzados, sem rodeios.
Alice revirou os olhos e deu uma cotovelada discreta, irritada com a forma como ele revelara a surpresa. A tensão no ar cresceu por um momento, com Alice bufando sobre como Rodrigo era péssimo em guardar segredos e ele rebatendo que Carla nunca desvenda surpresas óbvias. Carla, percebendo a discussão iminente, resolveu intervir.
— Gente, gente, calma! Vocês não querem uma briga na festa que fizeram com tanto esforço para mim, né?
Os dois se acalmaram e trocaram desculpas rápidas. Logo, levaram Carla até a casa deles, onde a comemoração a esperava. Rodrigo cobriu os olhos da filha, enquanto Alice a guiava até a sala de estar. Quando finalmente revelaram a surpresa, Carla ficou sem palavras.
— SURPRESA! — gritaram seus familiares em uníssono.
Ela esperava uma festa simples e rápida, como nos tempos de infância, mas foi surpreendida ao ver que todos os familiares estavam presentes na comemoração. A organização foi caprichada, com balões nas cores da NASA (azul, vermelho e branco), pequenos foguetes de papel pendurados no teto, bonecos de astronautas decorando as mesas e outras referências ao universo espacial, quase como uma festa infantil de aniversário bem produzida.
— O QUÊ?! — exclamou-a com surpresa — Isso é... isso é incrível! — ela levou as mãos à cabeça, maravilhada.
— Ora, para uma conquista tão grandiosa e maravilhosa, é preciso uma festa à altura! — exclamou um dos primos.
— Trabalhar como astronauta da NASA já é um feito e tanto, mas ser chamada para uma missão lunar é algo incrível! — disse um dos tios — No mínimo, temos que comemorar sua conquista, ou seríamos muito ingratos.
A filha de Alice deixa algumas lágrimas escaparem e as enxuga com o braço, visivelmente emocionada e grata.
— Mu-Muito obrigada! É uma bênção ter vocês como família!
E assim, a festa começou: conversas, risadas, brincadeiras, fofocas e piadas que variam de bobas a um tanto adultas, além de refrigerantes, mini coxinhas e o bolo personalizado! Todos se reuniram para cantar parabéns, fazendo a quase chorar novamente ao ver o bolo decorado como o logo da NASA. Depois, cada um pegou um pedaço e um copo de refri e foram para o sofá, entre risos e conversas animadas.
No meio-tempo, Carla, sentada perto da janela, deixa os olhos vagarem pelo céu estrelado. A Lua, imponente e misteriosa, ocupa o centro de sua atenção, atraindo seu olhar com o mesmo fascínio que um cachorro teria por um pastel. Perdida em pensamentos que se estendem para além das estrelas, a astronauta permanece alheia ao movimento ao seu redor. O pedaço de bolo repousa intocado em seu prato, um pequeno lembrete do quanto sua mente está distante.
De repente, uma mão pousa suavemente sobre seu ombro, arrancando-a bruscamente de seu devaneio. O susto faz seu coração disparar, e ela vira o rosto com um sobressalto.
— AAAAH! Ah! Caramba, Ricardo! Assim você me mata de susto.
Diante dela está Ricardo, seu primo, que sorri de maneira provocadora, os braços cruzados como se tivesse acabado de pregar uma peça bem-sucedida.
— Ah, sabe como é, adoro pegar os desprevenidos. — responde ele, a voz carregada de malícia divertida.
Carla bufa, tentando disfarçar a irritação e, com um gesto quase automático, volta a mirar a Lua, que brilha como uma joia solitária no vasto manto negro do céu. Ricardo, percebendo que ela não vai dispensá-lo tão cedo, decide sentar-se ao seu lado.
— Me fala a verdade, Carlinha: Você tá com um leve medo, não é mesmo?
Ela solta uma risada breve, carregada de desdém fingido, enquanto tenta sustentar a fachada confiante que cultiva com tanto cuidado.
— Nada a ver. Quanto mais o tempo passa, mais cresce minha ânsia de pisar na Lua, Ricardo!
Antes que ele possa responder, outra figura se aproxima. É Wagner, o tio de Carla, que escutara a conversa de forma nada discreta.
— Admito que fiquei ouvindo vocês dois. Carla, se eu fosse você, sentiria, no mínimo, uma ansiedade no peito. Não acha que é uma ousadia ser tão orgulhosa assim? — diz ele, com o tom sereno e levemente poético que sempre marca suas palavras.
Wagner tem um talento peculiar para frases que cutucam a alma e fazem quem ouve questionar suas próprias certezas. Carla respira fundo, o suficiente para recuperar a compostura, e responde com um sorriso confiante:
— Nunca na vida vou me desesperar por ansiedade.
Wagner ergue uma sobrancelha, o olhar carregado de significado.
— Meu pai não está falando de desespero. Mas você sabe, não é? Deve haver um aperto no seu coração, mesmo que você não queira admitir. — intervém Ricardo, com um sorriso que mistura provocação e compreensão.
Wagner faz um gesto pensativo, como se revivesse memórias antigas.
— Carla, eu te conheço bem mais do que imagina. Quando você era pequena, sua ansiedade era algo bem marcante. Ela te ajudava a ser excelente nos estudos, mas também te atrapalhava em outras áreas. Às vezes, você quebrava coisas com as mãos sem perceber, ou tinha dificuldade em fazer amigos. E, sinceramente, acho que ainda carrega um pouco disso consigo.
As palavras do tio atingem Carla como um cometa inesperado, deixando-a sem reação. Por um momento, ela se encolhe ligeiramente, sentindo-se exposta.
— N-Não precisava falar tudo isso... — balbucia, desviando o olhar. — Eu só estudava porque sabia que era o certo para o meu futuro, oras.
Ricardo, que claramente se diverte com o desconforto da prima, se recosta na cadeira e saca o celular do bolso.
— Na adolescência, vish Maria, você era uma máquina de estudar! Sempre levava um livro de ciências pro recreio. Eu poderia mencionar os apelidos que você ganhou, mas vou poupar você desse constrangimento... pelo menos os caras estavam sempre atrás de você, né?
Carla revira os olhos com uma expressão que deixa claro o quanto ela quer enterrar aquelas lembranças.
— Qual é, não me faça lembrar! Adolescência foi a pior fase pra mim. Sempre odiei o fato de eu ser tão bipolar naquela época!
Wagner, sorrindo de forma um tanto constrangida, deixa escapar uma risada baixa.
— Metade estudiosa, metade doidinha… coisas de adolescente. Não tem muito o que fazer.
Carla, embora incomodada pelas provocações, acaba relaxando um pouco. A conversa, cheia de lembranças desconcertantes, de certa forma aquece o ambiente. Entre a Lua lá fora e os laços familiares aqui dentro, ela sente uma dualidade curiosa: a grandeza do que a espera no espaço e a simplicidade do que sempre a trouxe de volta à Terra.
— Enfim, estou muito feliz que você foi escolhida para essa missão de ir para a Lua! — diz Ricardo, com os olhos brilhando de entusiasmo genuíno. — Aliás, se encontrar algum alien por lá, manda uma foto pra mim.
Carla deixa escapar uma risadinha, arqueando uma sobrancelha com ar de ironia.
— Ah, duvido que algum alien vá querer tirar foto comigo... — responde, num tom brincalhão. — e, além disso, aliens não existem... Pelo menos, não aqui no sistema solar.
A resposta é acompanhada de um sorriso despreocupado, mas a menção aos extraterrestres provoca uma faísca em seus pensamentos. Mesmo sabendo que Ricardo só estava brincando, a piada a faz refletir. Enquanto ele ri, divertido com sua própria tirada, Carla volta a olhar pela janela, contemplando o céu infinito e a Lua que parece tão próxima, quase ao alcance das mãos.
Será que ele também compreendia a vastidão do que poderia estar lá fora? A imensidão do universo, cheia de mistérios ainda não desvendados, sempre fez Carla sentir um misto de fascínio e inquietação. Não era exatamente medo, mas algo mais complexo — uma reverência silenciosa, quase tangível, diante da vastidão do universo.
"Aliens não existem... pelo menos, não aqui no sistema solar." Era o que dizia, mas uma parte dela se perguntava: E se?
A Lua estava tão próxima de se tornar sua realidade, e com isso, a ideia de que algo — ou alguém — pudesse estar observando o progresso humano parecia menos absurda. Carla afastou os pensamentos com um leve balançar de cabeça. A ciência precisava de fatos, não de devaneios.
Ricardo, percebendo o silêncio que se seguiu, resolve mudar o tom.
— Relaxa, Carlinha. Se não tiver alien, já vai ser histórico o suficiente saber que minha prima pisou na Lua.
Ela sorri, dessa vez com gratidão.
— Pode deixar. Vou te mandar uma foto de lá, mesmo que seja só de pedras e crateras.
Os dois riem, o momento leve contrastando com a magnitude do que a espera. No fundo, Carla sabe que, apesar das brincadeiras, aqueles que estavam ali, ao seu lado, compreendiam o quão extraordinária era sua missão — talvez até mais do que ela mesma estava disposta a admitir.
A conversa no salão principal segue descontraída, pontuada por risos leves e despedidas ocasionais. O tempo, como sempre faz, desliza silenciosamente entre momentos preciosos, e os familiares começam a partir, um por um, retornando às suas casas sob o céu estrela
Mas, em um cômodo afastado, onde a luz é mais branda e o som da festa mal chega, uma cena completamente diferente se desenrola.
— A profecia está se cumprindo, como ele previu… — murmura Ana, a bisavó de Carla, com a voz tingida por uma solenidade quase ritualística. Suas mãos, finas e marcadas pelo tempo, seguram uma xícara de chá que ela sequer prova.
Alice, que sempre tivera um pé na racionalidade, observa a avó com um misto de carinho e descrença.
— O quê? Ainda acredita nessas coisas, vó? — disse, tentando disfarçar o ceticismo com um sorriso leve.
Ana ergue os olhos, que brilham como se fossem capazes de enxergar além do momento presente.
— Anos atrás, eu disse que sua filha se tornaria astronauta e seria convidada para uma missão lunar. Ainda duvida de mim?
As palavras pairam no ar como uma brisa gelada, carregadas de convicção. Alice desvia o olhar, hesitando antes de responder:
— Olha, não posso negar que essas coisas realmente aconteceram, mas você também falou umas previsões meio exageradas, não acha? Como dizer que minha filha vai cair numa cratera enorme…
Ana mantém a calma, sua expressão inabalável.
— Não duvide, minha neta. Ele nunca erra. Você fez bem em não contar isso a ela.
Alice suspira, cruzando os braços em um gesto instintivo, como se quisesse proteger algo invisível.
— Eu só não gosto da ideia de que ela vai cair ou que será perseguida por alguém…
Ana repousa a xícara sobre a mesa com um cuidado quase cerimonial, como se o movimento carregasse um significado profundo. Em seguida, envolve a neta em um abraço afetuoso, sua voz se suavizando como o vento ao fim de uma tempestade.
— São apenas verdades, minha querida. Mas eu te asseguro: ela não morrerá. — Ana disse, envolvendo a neta em um abraço afetuoso.
Por um momento, o silêncio se instala entre elas, denso como o ar antes de uma revelação. Então, uma voz masculina corta a tensão, inesperada como um trovão ao longe:
— Do que estão falando? — pergunta Rodrigo, que surge no cômodo com a curiosidade estampada no rosto.
Ana e Alice se entreolham, cúmplices no não dito.
— Coisas de mulher, Rodrigo. — responde Alice, com um sorriso rápido, quase ensaiado. — Aliás, parabéns. Você fez um ótimo trabalho organizando toda essa festa.
Rodrigo sorri, coçando a nuca em um gesto típico de quem se orgulha, mas prefere não admitir
E enquanto a conversa recai sobre assuntos mais mundanos, as palavras de Ana ainda ecoam na mente de Alice, como uma melodia enigmática que insiste em tocar, mesmo depois que a música aparentemente termina.
No intervalo, Carla terminava de comer o bolo, o doce sabor contrastando com a estranha inquietação que parecia rondar o ar. Sentia uma leveza momentânea, mas, ao erguer os olhos para o relógio na parede, um sobressalto percorreu seu corpo. Quase meia-noite. Como um reflexo, levantou-se de súbito, os movimentos apressados, quase mecânicos.
— Nossa, preciso ir para casa! — anunciou com pressa, enquanto atravessava a sala em direção à mãe e à bisavó, que agora conversavam na penumbra da sala principal — Mãe, bisa, obrigada por tudo, de verdade, mas eu preciso mesmo voltar. Tchau, mãe, tchau, bi...
As palavras foram interrompidas no ar, esmagadas pelo tom grave e solene da bisavó Ana, que se ergueu em sua figura imponente, como uma sacerdotisa prestes a profetizar.
— Espere! — bradou, sua voz carregada de uma autoridade ancestral, as palavras saindo lentas, com um peso que parecia afundar o chão sob os pés de Carla Macedo — Guarde esta frase na alma: Quando se encontrar numa situação entre a vida e a morte, apenas se arraste e procure a esperança.
Por um instante, o ar da sala pareceu congelar, como se o tempo hesitasse em seguir adiante. Carla, tentando disfarçar o desconforto, forçou um sorriso breve, um sorriso que mais parecia uma tentativa de afugentar a sensação de que algo maior do que ela estava em movimento.
— Que mulher doida... U-Uau, bisa… é… obrigada pela bênção, viu?
A voz da bisavó ficou mais firme, mais penetrante, quase como um comando divino:
— ESCUTE BEM! — interrompeu Ana, sua voz cortando o espaço como o aço de uma lâmina. O tom carregava uma urgência ancestral, uma força que parecia pulsar diretamente do fundo do universo. — Nunca se esqueça do que eu disse!
O arrepio que percorreu Carla foi incontrolável, como se dedos gelados tivessem acariciado sua espinha. Sem entender por que, seu corpo respondeu antes de sua mente, e ela assentiu, os lábios murmurando algo que nem ela mesma percebeu.
— Tá bom, tá bom, irei me lembrar, eu prometo!
Sem dar chance para mais palavras, saiu rapidamente da casa, as mãos ainda trêmulas, sentindo o peso invisível das palavras ecoando em sua mente. Não se atreveu a olhar para trás enquanto atravessava a rua, a noite silenciosa envolvendo-a como um cobertor de segredos e presságios.
Já em casa, os gestos de rotina pareciam tão distantes quanto a própria Lua. Escovou os dentes sem pensar, o olhar fixo no vazio enquanto a frase da bisavó rodopiava em sua mente como um sussurro irritantemente persistente.
"Quando se encontrar numa situação entre a vida e a morte, apenas se arraste e procure a esperança."
Deitada em sua cama, o sono não chegava com facilidade. Estava exausta, mas sua mente era um labirinto de inquietações, e no centro, a figura da bisavó parecia observá-la, os olhos verdes brilhando como duas esmeraldas em meio à escuridão.
Eventualmente, o cansaço venceu. O novo dia nasceu, trazendo consigo o peso de uma promessa e a grandeza de uma missão que estava prestes a começar. E, como a luz da manhã filtrando-se pelas cortinas, a frase da bisavó persistia, gravada como um eco indelével em sua alma.
A manhã e a tarde foram inteiramente dedicadas à organização da casa. Carla se entregou à tarefa com uma meticulosidade quase exaustiva, trancando cada porta e fechando cada janela como se tentasse criar uma barreira impenetrável entre o caos lá fora e a segurança do seu refúgio. Cada trinco conferido, cada cortina ajustada, refletiam uma tentativa de controlar o que parecia incontrolável: o mundo que insistia em invadir seu espaço íntimo.
Quando finalmente terminou, ergueu-se para contemplar o ambiente silencioso e arrumado. Porém, a visão das sombras projetadas pelas paredes trouxe-lhe um sobressalto. O céu, antes tingido pelo dourado do entardecer, agora ostentava o manto escuro da noite.
— Mas já escureceu? — murmurou, com a voz baixa e embargada pela surpresa, como se o tempo houvesse lhe escapado entre os dedos.
Carla terminou rapidamente sua refeição, quase engolindo os últimos pedaços de pão com café frio, enquanto seus pensamentos já estavam na estrada. Com um movimento automático, pegou as chaves do carro da mãe que descansava sobre o balcão. No entanto, ao girar a ignição, um arrepio de frustração percorreu sua espinha: o marcador de gasolina piscava perigosamente próximo ao vazio.
Ela bufou, murmurando para si mesma palavras de reprovação pelo descuido dela, e decidiu que a primeira parada seria o posto. Estava prestes a engatar a marcha quando um som inesperado, uma batida rápida na janela, a fez dar um salto.
Virando-se instintivamente, encontrou o rosto familiar de sua mãe, Alice. Havia algo estranho ali: o olhar carregava um misto de urgência e pavor, e sua pele parecia mais pálida do que o habitual, como se o sangue houvesse abandonado o rosto em um instante.
— Carla! Carla! Espere, não vá! — a voz de Alice era quase um grito sufocado, carregada de desespero.
Ainda atônita, Carla abaixou o vidro. Seus olhos buscaram os da mãe, confusos diante da aparição repentina.
— O que foi, mãe? Aconteceu alguma coisa?
Alice respirou fundo, hesitante, como se as palavras fossem pedras presas na garganta. Olhou ao redor com inquietação, como quem teme ser observada.
— Sua bisavó… ela insistiu para que eu te lembrasse de uma coisa. A frase... Carla, você precisa ouvi—
— Mãe, por favor! — Carla cortou, sua paciência já esgotada. O tom saiu mais seco do que pretendia, mas ela não se importou. — Eu respeito você, mas essa história já passou dos limites. A vovó está completamente fora da realidade! Ontem mesmo ela saiu com aquela ideia absurda de que eu "vou cair numa cratera lunar". Francamente, mãe, isso é ridículo! Não podemos deixar essas coisas influenciarem nossa vida.
O silêncio que se seguiu foi quase palpável. Alice recuou ligeiramente, como se as palavras da filha a tivessem atingido em cheio. Seus lábios tremeram, mas nenhum som saiu de imediato. Por fim, ela murmurou, com um suspiro de resignação:
— Tá… se você acha que ela é louca, talvez eu deva concordar. Mas saiba, Carla, que tudo o que ela previu até hoje... tudo aconteceu. Só... só tome cuidado nessa viagem, tá? É o único pedido que faço. Boa sorte, minha filha.
Havia algo naquelas palavras, na tristeza quase imperceptível por trás delas, que atingiu Carla como uma pedra atirada ao peito. Ela cerrou os lábios, o gosto amargo do arrependimento se misturando à pressa que a pressionava. Respirou fundo, lutando contra a irritação consigo mesma, e chamou sua mãe antes que ela se afastasse completamente:
— Mãe, espera! Me desculpe. Não devia ter falado daquele jeito. Se isso te magoou, eu... sinto muito, de verdade.
Alice parou, apenas por um momento, e virou-se com um sorriso fraco. Não disse nada, apenas fez um gesto sutil com a cabeça antes de se afastar, com passos lentos, de volta à casa.
Carla ficou observando a silhueta da mãe desaparecer na porta, o peso das palavras ainda pendendo em sua mente. Pensou em ir atrás dela, mas o relógio em seu pulso insistia em puxá-la para outra direção. Com um suspiro pesado, ligou o carro e seguiu em direção ao posto, mas a imagem de Alice e seu semblante carregado permaneciam gravados em sua memória como um eco persistente.
Assim que chegou ao posto, Carla pediu que enchessem o tanque do carro e preparassem mais dois galões de combustível para a viagem. O atendente, inicialmente surpreso com a solicitação incomum, hesitou por um instante, mas logo começou o serviço. Enquanto trabalhava, algo chamou sua atenção. Ele olhou pela janela em direção a Carla e congelou, os olhos se arregalando em reconhecimento.
— — Uau! É você mesmo! V-você é a Carla Macedo! — exclamou, quase tropeçando nas palavras enquanto tentava conter a empolgação.
Carla corou levemente, surpresa ao ser reconhecida tão rapidamente. Soltou uma risadinha tímida, desviando o olhar por um momento. Apesar de sua recente fama como astronauta, ela ainda não se acostumara ao assédio que vinha junto com o título.
— Bem, é… obrigada. — respondeu, com um sorriso educado, mas seu tom revelou uma sombra de desânimo. — Não esperava por isso. Parece que a NASA deu mais atenção para o Brasil do que eu imaginava.
O atendente notou o leve pesar na voz dela, mas preferiu não perguntar nada. Continuou enchendo o tanque e os galões com eficiência, lançando um sorriso encorajador ao terminar. Carla agradeceu, pagou pelo combustível e seguiu viagem, ajustando o GPS em direção a Campinas, São Paulo.
Antes de partir definitivamente de Santos, fez uma breve parada diante da casa de sua mãe. Observou-a por um momento, mordendo os lábios como quem guarda palavras não ditas. "Me desculpe, mãe," pensou, antes de acelerar e deixar a cidade para trás.
A estrada trouxe consigo uma série de desafios. O sono começou a pesar, e a gasolina, mesmo com os galões extras, exigia paradas estratégicas. No entanto, o que mais testava sua paciência era o trânsito, que insistia em se manter carregado, mesmo nas altas horas da noite.
Em cada posto que parava para reabastecer, alguém a reconhecia, tornando impossível manter um ritmo rápido. Embora Carla não desprezasse os fãs, o momento não era propício. Com o estresse acumulado e o cansaço crescente, ela lamentou profundamente ter saído tão em cima da hora.
Sem café à mão, o perigo de cochilar na estrada tornou-se um inimigo constante. Quando a chuva começou a cair, trazendo um clima quase convidativo para dormir, Carla reagiu com determinação. Ligou uma playlist de rock animado e cantou junto, mesmo com a voz desafinada e rouca pelo cansaço.
Chegou a São Bernardo do Campo por engano, acreditando por um breve momento que estava perto de seu destino. Olhou para o relógio: já eram onze horas da noite. Aproveitou a parada para comprar café em um posto 24 horas, junto com uma garrafa térmica. O caixa, ao reconhecê-la, sorriu de orelha a orelha, mas Carla apenas acenou e retribuiu com um sorriso discreto.
De volta à estrada, agora um pouco mais alerta graças ao café, Carla finalmente alcançou a cidade de São Paulo. Por sorte, o trânsito estava mais tranquilo do que esperava. Ainda assim, a viagem parecia se arrastar.
Finalmente, às quatro e cinquenta e dois da manhã, Carla avistou a entrada de Campinas. Exausta, com olheiras profundas e o rosto marcado pelo cansaço, ela parecia mais um zumbi do que uma astronauta. Para piorar, a internet do GPS falhou, deixando-a vagando pelas ruas em busca de seu destino.
Após alguns minutos de frustração, seus olhos captaram a grandiosa estrutura que tanto sonhara em ver: a sede brasileira da NASA. A construção era imponente, com cinco andares que se estendiam por mais de cento e cinquenta metros de largura. Atrás do edifício, o foguete Aurum erguia-se majestoso contra o céu pálido do amanhecer, com seus impressionantes noventa e quatro metros de altura.
Carla estacionou o carro, fitando a estrutura com um misto de cansaço e reverência. Um sorriso cansado brotou em seus lábios enquanto murmurava para si mesma:
— Finalmente cheguei aos sonhos…
Ela olhou para o relógio e, com um suspiro cansado, percebeu que eram exatamente cinco horas. A visão da imponente edificação à sua frente parecia tê-la hipnotizado por alguns instantes. Era difícil não admirar a grandiosidade da sede da NASA, recém-construída há apenas sete meses, refletindo o esforço e a inovação que definem a missão que ela mesma iria integrar. Carla estacionou o carro no pequeno estacionamento, saindo rapidamente, apenas com o celular e as chaves nas mãos. Cada passo que dava em direção à porta automática do prédio fazia seu coração acelerar, como se a magnitude do momento fosse finalmente real.
Ao se aproximar da entrada, ela percebeu que a porta estava trancada, o que a fez hesitar por um momento. O vidro transparente da porta revelou uma figura sentada atrás de um balcão, absorta em seu computador, enquanto tomava um café. Carla, decidida a não perder mais tempo, deu uma leve batida no vidro, esperando chamar a atenção da mulher. E funcionou. A recepcionista se levantou e se aproximou com certa pressa, deslizando o dedo pela tela do celular antes de abrir a porta.
— O que você faz nessas horas? — perguntou, sua voz transparecendo impaciência, enquanto uma mão deslizava pela nuca, como se estivesse tentando relaxar após um longo turno.
Carla, um tanto confusa, não entendeu de imediato. Por um momento, pensou que a mulher já a reconhecesse, mas logo percebeu que estava errada.
— Oi? Como você não me conhece? Sou Carla Macedo de Souza, prazer em conhecê-la.
A expressão da recepcionista mudou para uma mistura de dúvida e surpresa, até que finalmente, o reconhecimento brilhou em seus olhos.
— Ah! Lembrei de você! Desculpe, é que hoje é a grande missão do foguete Aurum e me deram um monte de coisas para eu fazer. Enfim, por que você veio nessas horas? Pensei que estivesse no ônibus que busca os astronautas… Não me diga que…
— Que ônibus? — perguntou Carla, um leve espanto estampado em seu rosto.
— Não viu o e-mail que enviaram? Acho que tu não leu o documento até o final.
Foi como um balde de água fria. Carla se lembrou do e-mail enviado pela NASA há onze dias. Ela havia lido a parte sobre o lançamento do foguete e, entusiasmada com a data, quase pulou de alegria. No entanto, sua empolgação a fez negligenciar os detalhes finais — como o envio de um ônibus um dia antes. Seu rosto ficou ruborizado de frustração enquanto ela se recolhia em seus pensamentos. Bufou, desanimada, cruzando os braços.
— Droga… Fiquei tão animada que não li todo o documento. Me esforcei tanto para chegar aqui e tudo isso foi em vão.
A recepcionista, sem perder a compostura, sorriu suavemente.
— Não se preocupe com isso, Carla. Na verdade, foi até melhor você ter vindo de carro, pois moramos em São Paulo e você sabe que tem trânsito para todo canto. Até houve um pequeno problema no caminho. Bom, acho que eles estão nas ruas da cidade de São Paulo. Já vou logo avisá-los que não é mais necessário buscar você… isso se a internet cooperar comigo.
Ela voltou para o balcão, digitando rapidamente uma mensagem para o motorista. Mas, ao olhar para a tela, um pequeno ícone de relógio piscou, sinalizando que a conexão estava instável. Carla, então, decidiu se distrair, entrando no prédio. Mesmo já tendo visto fotos e vídeos do local, o interior da sede ainda a encantava. À esquerda, o elevador brilhava com um tom moderno. No centro, o balcão estava impecavelmente organizado. À direita, uma porta com a placa do refeitório, convidando os visitantes a fazer uma pausa. Diversas outras entradas também estavam visíveis, espalhadas pelos cantos do imenso espaço.
Mas o que realmente chamou sua atenção foi o grande sofá ao lado, rodeado por plantas que traziam vida ao ambiente. O cheiro suave de café e madeira recém-polida perfumava o ar. Carla, sem resistir, se deixou cair no sofá com um suspiro de alívio. Por um momento, fechou os olhos, o cansaço a atingiu com força. Mas, antes que pudesse se entregar ao sono, se deu conta de que poderia parecer desrespeitosa para a recepcionista. Ela se endireitou rapidamente, tentando manter a compostura.
— Ah, claro, imagino o sono que você deve estar tendo — comentou, olhando para Carla.
Ela desviou o olhar, corando levemente, envergonhada por ter se comportado de forma tão descuidada.
— D-Desculpe… Só estou com um pouco de sono.
A recepcionista riu suavemente, seu riso suave como uma brisa tranquilizadora. Ela se aproximou com um sorriso acolhedor, sua postura relaxada.
— Ei, ei, não precisa fazer esforço para se manter acordada. Você conseguiu chegar, agora pode dormir. Use as almofadas do sofá para seu conforto.
Surpresa com a gentileza da recepcionista, Carla bocejou sem conter. Ela olhou para a mulher com um sorriso tímido.
— Sério? — ela olhou para a recepcionista, ainda meio atordoada — Você não se importaria?
— Claro que não. Melhor você descansar para a missão. — respondeu, com a mesma tranquilidade.
Sem hesitar, Carla se deitou novamente no sofá, fechando os olhos com a sensação de conforto e segurança. Em questão de segundos, o sono a envolveu, como um abraço acolhedor, afastando as tensões do longo caminho percorrido. Ela estava finalmente ali, prestes a embarcar numa das maiores aventuras da sua vida. E, por um momento, a tranquilidade parecia ser a melhor recompensa.