O regresso a casa foi silencioso.
Lya e Eren caminhavam lado a lado pelas ruas da cidade, ainda absorvidos pelos acontecimentos do encontro inesperado com Kaen e Rael. Lya sentia o peito apertado, a mente uma confusão de pensamentos que se recusavam a organizar-se. A forma como Kaen a olhava, as palavras que ele escolhera, tudo nela parecia responder a ele de uma maneira que não compreendia. Mas recusava-se a demonstrar.
Eren, por outro lado, bufava de tempos em tempos, claramente incomodado.
— Como se já não bastasse termos problemas suficientes, agora ele aparece assim, como se fosse dono de tudo — resmungou.
Lya não respondeu. Já estavam a atravessar o pátio quando ouviram a porta se abrir com um estrondo. Arwen entrou na casa com uma expressão carregada, os olhos brilhando de frustração. Jogou o manto sobre uma cadeira e cruzou os braços, sem esconder o aborrecimento.
— Aqueles imbecis do Conselho! — exclamou. — Nunca vi tantos feiticeiros cegos e arrogantes no mesmo lugar! Como esperam governar quando se recusam a enxergar o que está mesmo à frente deles?
Lya e Eren trocaram um olhar rápido, mas nada disseram. Já tinham visto Arwen irritada antes, mas algo no seu tom indicava que a situação era ainda pior do que o habitual.
A feiticeira passou as mãos pelo rosto, inspirou fundo e caminhou até à mesa. Serviu-se de um copo de chá, tomou um gole longo e fechou os olhos por um instante.
— O Conselho está a brincar com fogo — murmurou, mais para si mesma. — E quando derem conta, pode ser tarde demais.
Um silêncio instalou-se por um momento, apenas interrompido pelo estalo da lareira acesa. Lya sentou-se, observando Arwen com atenção, mas sem pressioná-la a continuar. Sabia que, quando estivesse pronta, ela diria mais.
Foi então que uma batida na porta quebrou o clima carregado. Eren levantou-se para atender, e quando voltou, trazia uma carta nas mãos. O selo era inconfundível.
— É do metamorfo — anunciou, a voz carregada de desconfiança.
Arwen pegou o envelope e quebrou o lacre com um movimento rápido. Os olhos percorreram o conteúdo da carta, e um sorrisinho sem humor surgiu-lhe nos lábios.
— Ele está a convidar-nos para jantar — disse calmamente, pousando a carta sobre a mesa.
Lya sentiu o coração falhar uma batida. A imagem de Kaen surgiu-lhe imediatamente na mente, o olhar intenso, o sorriso confiante.
— Não vamos aceitar isso, pois não? — Eren perguntou, cruzando os braços.
Arwen virou-se para ele e ergueu uma sobrancelha.
— Claro que vamos.
Eren gemeu em protesto.
— Arwen, não podemos confiar neles! Esse jantar é só mais um dos jogos de Kaen!
A feiticeira suspirou e recostou-se na cadeira.
— Jogos ou não, precisamos saber o que ele tem a dizer. Recusar só nos faria parecer fracos ou, pior, como se tivessemos algo a temer. Nós vamos. E nós vamos preparados.
Lya engoliu em seco. Parte dela queria protestar, mas outra parte… outra parte queria saber o que aconteceria nesse jantar.
O salão do jantar estava iluminado por candelabros altos, projetando sombras dançantes pelas paredes ornamentadas. O perfume de especiarias e vinho pairava no ar, e a atmosfera era uma mistura de sofisticação e mistério.
Lya e Eren chegaram juntos, acompanhados por Arwen. Assim que entraram, todas as conversas pareceram cessar por um instante. O vestido prateado de Lya refletia a luz das velas, moldando-se ao seu corpo com elegância. Os ombros nus e o cabelo trançado adicionavam um toque de realeza ao seu porte.
Kaen, que conversava descontraidamente com um grupo de metamorfos, interrompeu-se no mesmo instante. Os olhos dourados brilharam, e o sorriso usualmente provocador suavizou-se num olhar carregado de admiração. Ele não conseguiu disfarçar o impacto da visão de Lya.
— Minha Deusa… — murmurou, aproximando-se. A sua voz, sempre cheia de confiança, parecia mais baixa, quase reverente.
Lya sentiu o coração acelerar, mas manteve a postura firme. Kaen não fez qualquer provocação desta vez. Em vez disso, estendeu a mão com um gesto cortês.
— Honra-me com a tua presença. Esta noite é tua — disse ele, com uma sinceridade que a fez hesitar por um breve momento antes de aceitar a mão dele.
Rael, que estava a poucos passos de distância, sorriu de forma exagerada ao ver a reação do amigo.
— Se não fosse ver para crer, eu não acreditaria! — brincou. — O grande Kaen rendido!
Kaen ignorou-o, mantendo os olhos apenas em Lya.
— Quero apresentar-te aos meus amigos. Quero que conheças aqueles em quem confio.
Lya piscou, surpresa com a abordagem. Não era uma jogada, não era uma provocação. Havia algo mais ali. Sentiu-se desconfortavelmente exposta, como se estivesse a ser tratada como algo precioso.
Eren cruzou os braços, observando Kaen com desconfiança, mas Arwen, ao contrário, parecia intrigada.
— Vamos jantar, então — disse Arwen, quebrando o silêncio.
Kaen sorriu e conduziu Lya e os outros até um grupo de metamorfos que os observava com expressões variadas. A presença deles impunha respeito, cada um carregando um ar distinto de poder e experiência.
— Quero que conheças aqueles em quem confio — disse Kaen, pousando a mão no ombro do primeiro deles.
— Rael — anunciou, indicando um homem alto de cabelos castanho-avermelhados e olhos âmbar. Uma cicatriz marcante adornava a sua bochecha, conferindo-lhe um ar ainda mais feroz. — Guerreiro, estratega… e, infelizmente, demasiado falador.
Rael sorriu, batendo no peito com fingida indignação. — Fiquei ofendido, Kaen! Mas sim, sou tudo isso e ainda mais.
— Duvido que a parte do "estratega" seja verdade — murmurou Eren, de braços cruzados.
— Podes testar-me sempre que quiseres, feiticeiro — replicou Rael, piscando um olho.
Antes que Eren pudesse responder, Kaen seguiu em frente, indicando uma mulher esguia de cabelos prateados e pele bronzeada. O traje escuro que usava ajustava-se ao seu corpo como uma segunda pele, realçando sua elegância predadora.
— Selene. Caçadora e rastreadora. Não esperem gentileza dela.
Selene cruzou os braços, estudando Lya e Arwen com olhos de um azul profundo, carregados de uma mistura de desdém e curiosidade.
— Apenas para os que a merecem — comentou ela, o tom levemente irónico.
— Que alívio — disse Arwen, arqueando uma sobrancelha. — Eu já estava preocupada em não impressionar.
Selene soltou um riso curto e aprovador.
O próximo foi Draven, um homem de porte imponente e cabelos negros curtos, cujo olhar era afiado como uma lâmina. Ele mantinha-se sempre próximo de Kaen, como se fosse uma sombra.
— Draven — disse Kaen. — Meu braço direito. Se há alguém que confio para me manter vivo, é ele.
Draven inclinou levemente a cabeça, a expressão neutra, mas seus olhos analisavam cada um dos feiticeiros com atenção calculista.
— Um prazer — disse Arwen, com um tom polido, mas sem revelar qualquer emoção.
Por fim, Kaen indicou uma jovem de feições delicadas e olhos dourados intensos. Seus movimentos eram fluidos, quase felinos, e o sorriso no rosto oscilava entre divertimento e estudo atento.
— E esta é Lyara. A mais curiosa entre nós.
Lyara inclinou ligeiramente a cabeça, analisando Lya com interesse evidente.
— Finalmente conheço a feiticeira que tanto tem ocupado os pensamentos de Kaen.
Lya sentiu um calor subir-lhe ao rosto, mas manteve-se firme.
— Não sabia que era um tema tão recorrente — respondeu, tentando soar indiferente.
Kaen ignorou a provocação de Lyara, limitando-se a olhar para Lya com uma intensidade que a fez desviar o olhar por um instante.
— Agora já sabes com quem estás a lidar — concluiu ele, a voz baixa e envolvente.
Arwen, que observava tudo em silêncio, pousou a taça de vinho na mesa.
— Bem, se estamos todos devidamente apresentados, espero que também tenhas preparado um jantar à altura dessa tua corte — disse ela, com um leve sorriso de desafio.
Kaen riu, um brilho divertido nos olhos.
— Minha cara Arwen, espero surpreender-vos esta noite.
O jantar estava apenas a começar, mas a tensão, fosse ela política ou pessoal, já preenchia o ar como um perfume denso.