O som da chuva tinha desaparecido, mas Lya sentia-se como se uma tempestade tivesse começado dentro dela, um turbilhão de incertezas e emoções a colidir como trovões dentro do seu peito. O coração batia num ritmo irregular, e cada pensamento parecia uma rajada de vento a empurrá-la em direções opostas. Era como se uma força invisível agitasse algo profundo dentro dela, despertando um pressentimento que não conseguia ignorar. O eco da revelação no Conselho ainda ressoava na sua mente: "Tu és uma de nós." Era uma feiticeira. Aquilo não fazia sentido. O seu mundo era feito de cafés apressados, passeios turísticos e memórias da Terra, não de magia antiga e conselhos enigmáticos. E, no entanto, a energia que sentira quando tocou o Olho de Ithar não podia ser negada.
Nos dias que se seguiram, Eren tornou-se a sua sombra, oferecendo uma mistura de sarcasmo e apoio inesperado. Ele zombava das suas dúvidas com um sorriso malandro, mas também aparecia com livros que poderiam ajudá-la ou levava-a até miradouros escondidos para lhe mostrar a beleza da cidade. Era difícil decifrar se ele se divertia à sua custa ou se, de alguma forma, se importava. Mas havia algo mais que Lya não conseguia ignorar: os sonhos. Sempre os mesmos olhos dourados, brilhando na escuridão, acompanhados por sussurros numa língua que ela não entendia. Acordava com o coração acelerado e a sensação de que aqueles olhos a conheciam de uma forma que ela própria não compreendia.
Eren, talvez percebendo a inquietação de Lya, decidiu mostrar-lhe a cidade de forma mais detalhada. Conduziu-a pelas ruas sinuosas de paralelepípedos, onde cada edifício parecia carregar séculos de história. O mercado central fervilhava de vida, com tendas cobertas por tecidos vibrantes, onde mercadores ofereciam desde frutas exóticas a pequenos frascos de poções cintilantes. Um velho mercador de barbas grisalhas chamou a atenção de Lya, estendendo-lhe um frasco de vidro com um líquido azul brilhante.
— Têm um olhar curioso, minha jovem — disse ele com um sorriso enigmático. — Esta é a Essência da Serenidade. Dizem que acalma até as mentes mais inquietas.
Lya trocou um olhar divertido com Eren antes de agradecer e seguir em frente, absorvendo a atmosfera vibrante do mercado. O cheiro a especiarias misturava-se com o aroma doce dos pães recém-saídos do forno, e Lya não resistiu a provar um doce local, cujo sabor se derretia na língua.
Mais adiante, chegaram à Praça das Runas, onde um grande obelisco negro se erguia, coberto de inscrições mágicas que brilhavam fracamente ao toque da luz solar. Eren explicou-lhe que aquele era um dos pontos mais antigos da cidade, um lugar onde os primeiros feiticeiros haviam gravado os segredos da sua arte. Alguns aprendizes estavam sentados por ali, estudando as inscrições, enquanto outros praticavam feitiços sob a supervisão de mestres.
O passeio continuou até à Biblioteca Arcana, uma estrutura imponente com janelas altas e vitrais que refletiam a luz num caleidoscópio de cores. Ao atravessar as portas de madeira entalhada, Lya sentiu um arrepio percorrer-lhe a pele. O ar estava impregnado com o aroma do papel antigo e da cera das velas, e o silêncio era preenchido apenas pelo som suave de páginas viradas e sussurros cautelosos. A grandiosidade do espaço era esmagadora, mas, ao mesmo tempo, havia algo de acolhedor na forma como os livros pareciam chamá-la, como se esperassem por ela há muito tempo. O interior era um labirinto de estantes, algumas tão altas que apenas escadas flutuantes permitiam alcançar os livros mais antigos. Cristais encantados iluminavam o espaço, e o sussurro das páginas folheadas criava um ambiente de respeito silencioso. Lya sentiu-se imediatamente atraída por aquele lugar, absorvendo a sensação de conhecimento armazenado ao longo dos séculos.
— É aqui que os feiticeiros mais curiosos acabam por passar boa parte do tempo — comentou Eren, observando-a com um leve sorriso. — E, a julgar pelo teu olhar, acho que vais juntar-te a eles.
Lya apenas acenou, incapaz de negar o fascínio que aquele mundo despertava nela. Ainda assim, algo dentro dela continuava a sussurrar que havia mais para descobrir. Algo que ninguém estava disposto a contar-lhe.
Certa noite, incapaz de dormir, Lya vagueava pelos corredores da Torre do Éter. O lugar parecia diferente à luz pálida da lua, menos imponente e mais cheio de segredos. Foi aí que Eren a encontrou.
— Outra vez a andar como um fantasma? — perguntou ele, encostado a uma coluna com o seu sorriso habitual. — Ou estás a tentar descobrir o que eles escondem?
Lya parou, surpreendida.
— O que queres dizer?
Eren aproximou-se, o brilho malandro nos olhos suavizado por algo mais sério.
— Achas que o Conselho te contou tudo? Encontraste-te aqui do nada, és uma feiticeira e... eles simplesmente aceitaram isso?
As palavras dele ecoaram as suas próprias dúvidas. Havia perguntas sem resposta, e ela estava cansada de esperar.
— Vais ajudar-me? — perguntou, desafiando-o.
Eren sorriu.
— Sempre gostei de quebrar regras.
Conduziu-a por passagens estreitas, até uma porta escondida atrás de tapeçarias antigas. Com um gesto rápido e um murmúrio mágico, destrancou-a. O quarto além era uma biblioteca secreta, iluminada por cristais flutuantes. Estava cheio de livros antigos, pergaminhos e artefactos que pulsavam com energia própria.
Enquanto Eren vigiava a entrada, Lya explorava as prateleiras. Foi um velho diário, com uma capa marcada por símbolos familiares, que chamou a sua atenção. Ao abri-lo, encontrou algo que fez o seu coração parar por um instante: desenhos de olhos dourados, idênticos aos dos seus sonhos.
As páginas falavam de uma antiga profecia sobre uma "tecelã de mundos", alguém com o poder de atravessar dimensões e influenciar o delicado equilíbrio entre feiticeiros e metamorfos. Era dito que apenas uma tecelã poderia desfazer os fios do destino e tecê-los novamente, alterando o rumo da história. Alguns temiam-na como um presságio de mudança destrutiva, enquanto outros viam-na como uma esperança para um novo futuro. O mais perturbador era uma passagem que parecia descrever a sua chegada.
— Eren... acho que isto fala de mim.
Ele aproximou-se, lendo por cima do ombro dela. O seu rosto perdeu o sorriso despreocupado.
— Eles sabem mais do que dizem. Muito mais.
Antes que pudessem processar a descoberta, ouviram passos. Eren pegou no diário e puxou-a para uma saída secreta. Quando finalmente estavam seguros, Lya olhou para ele, o coração a bater descompassado.
— O que significa isto?
Eren respirou fundo.
— Significa que o teu papel aqui é maior do que pensavas. E talvez não sejas só uma feiticeira perdida.