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Chapter 3 - A Era dos Guardiões

Antes de se casar com Lucas, Cynthia era a futura herdeira da Casa Boummut, uma família nobre francesa. Suas habilidades em esgrima, desenvolvidas desde a pré-adolescência, renderam-lhe reconhecimento dentro da família. Não demorou para que fosse considerada um prodígio entre os sucessores, e esperava-se que se tornasse uma Caçadora de Rank-S ao completar vinte e quatro anos.

No entanto, sua relação com a mãe e o padrasto, Jean-Luc, não era das melhores. Quando tinha nove anos, seu pai foi encontrado morto no porão da casa, pendurado por uma corda no pescoço. A conclusão foi de suicídio, e Cynthia nunca superou completamente a perda. Pouco tempo depois, Jean-Luc assumiu o controle da família ao se casar com sua mãe.

Jean-Luc era um homem ambicioso e severo, com uma visão de mundo implacável. Ele valorizava apenas aqueles que podiam fortalecer a influência da família, independente de idade ou gênero. Cynthia, mesmo sendo uma criança, não estava isenta desse julgamento. Desde que ele entrou em sua vida, Jean-Luc a tratou com frieza e distância.

Quando Cynthia completou dez anos, ele a chamou para uma reunião no salão principal da mansão. A atmosfera era solene, com retratos dos antepassados pendurados nas paredes. Jean-Luc estava sentado à cabeceira da longa mesa de carvalho, com seus dedos entrelaçados sobre a superfície. Ele não sorriu quando ela entrou, nem fez qualquer gesto de afeto.

— Cynthia, você é uma Boummut agora. Isso significa que não há espaço para fraquezas ou sentimentos infantis. Sua mãe pode tolerar suas lágrimas, mas eu não. Você precisa entender que o mundo não vai esperar que você cresça.

Ela ficou parada, hesitante, os olhos fixos no chão. Aos poucos, começou a entender que aquele homem não era como seu pai, que costumava pegá-la no colo e rir de suas brincadeiras. Jean-Luc era diferente. Ele era uma figura imponente, que parecia ver tudo e todos como peças em um tabuleiro de xadrez.

— Você tem habilidades em esgrima, e isso é bom. Mas não é suficiente. Você precisa ser mais. Precisa ser útil. A Casa Boummut não precisa de uma criança, precisa de uma sucessora que possa carregar o nome da família com orgulho. Acredito que já esteja na hora de você ter o seu despertar.

Ele se levantou e se aproximou dela, os olhos fixos em seu rosto como se pudesse ver além de sua aparência frágil. — Tenho observado seus treinos. Você é rápida e precisa, mas ainda há algo faltando. Algo que limita seu potencial. Você atinge um platô e não consegue ir além. Sabe por quê?

Cynthia balançou a cabeça lentamente, os olhos ainda fixos no chão. Ela não queria admitir, mas ele estava certo. Por mais que se esforçasse, havia uma barreira que ela não conseguia superar.

— É porque você ainda não entendeu a verdadeira fonte do poder — ele disse, erguendo a mão e fechando-a em um punho. — A arte da esgrima não é apenas sobre técnica ou força física. É sobre energia. Sobre controle. Sobre Chakra.

Cynthia olhou para ele, confusa. — Chakra?

— Sim, Chakra. A energia que flui dentro de todos nós. Aqueles que aprendem a controlá-la podem alcançar níveis de habilidade que parecem impossíveis para os outros. E você, Cynthia, precisa aprender a dominar o seu.

Ele se levantou, caminhando até a janela e olhando para os jardins da mansão. — A partir de amanhã, seus treinos serão diferentes. Você continuará com a esgrima, mas também começará um novo tipo de treinamento. Um treinamento que não será fácil, mas que é necessário se você quiser se tornar a sucessora que a Casa Boummut precisa.

Cynthia sentiu um frio percorrer sua espinha. Ela não entendia completamente o que ele estava dizendo, mas sabia que isso mudaria tudo. O treinamento que ela conhecia já era difícil, mas isso… isso parecia algo completamente novo e assustador.

— Entendido? — ele perguntou, sua voz cortando o silêncio.

Ela assentiu. — Sim, senhor.

— Bom — ele respondeu, voltando a se sentar. — Então não há mais o que discutir. Prepare-se. Amanhã começa uma nova fase da sua vida.

***

Aos doze anos, Cynthia finalmente despertou seu Chakra.

Foi durante um dos treinos intensivos que Jean-Luc havia imposto desde aquela conversa que eles tiveram. Ela estava exausta e suas roupas encharcadas de suor, mas Jean-Luc não permitia que ela parasse. Ele a observava com um olhar impiedoso, como sempre, mas desta vez havia algo diferente. Ele parecia estar esperando por algo.

— Concentre-se — ele disse, olhando atentamente. — O Chakra não é algo que você pode forçar. É algo que você deve sentir. Deve entender.

Cynthia fechou os olhos, tentando ignorar a dor e a fadiga que consumiam seu corpo. Ela se concentrou na respiração, como ele havia ensinado, e tentou sentir a energia que ele sempre mencionava. No início, não havia nada. Apenas escuridão e silêncio. Mas então, algo mudou.

Ela sentiu uma centelha. Era pequena e quase imperceptível, mas estava lá. Uma energia que parecia fluir de dentro dela, como um rio subterrâneo que ela nunca havia percebido antes. Ela se concentrou nessa sensação, tentando guiá-la, controlá-la. E, de repente, algo aconteceu.

Seus olhos se abriram, e ela sentiu uma onda de energia percorrer seu corpo. Era como se todas as suas células tivessem sido revitalizadas, como se ela tivesse sido conectada a uma fonte de poder que nunca soube que existia. Ela olhou para Jean-Luc, surpresa, e viu algo que nunca havia visto antes: um sorriso. Era um sorriso neutro, mas ainda possível vê-lo sorrir.

— Finalmente — ele disse, parecendo estar satisfeito em seu tom de voz. — Você despertou.

Ele se aproximou dela, olhando-a nos olhos. — O Chakra é a força física do corpo, gerada por todos os órgãos e armazenada nos pontos de Chakra. Ao alinhar os sete pontos principais, você pode usar essa energia para superar as limitações físicas de um humano comum. Aumentar sua força, sua velocidade, sua resistência. Tudo.

Cynthia sentiu uma onda de emoções. Alívio, orgulho, e uma sensação de realização. Ela havia dado o primeiro passo para se tornar a sucessora da Casa Boummut. Contudo, ela sabia que tudo isso era apenas o começo.

Jean-Luc deu um passo para trás, seu sorriso neutro desaparecendo tão rápido quanto havia aparecido. — Agora que você despertou, os verdadeiros treinos começam. Não espere que eu vá facilitar as coisas para você.

***

Aos dezesseis anos, Cynthia já era uma cavaleira graduada, além de se tornar uma Caçadora de Rank-A. Seu domínio sobre o Chakra e suas habilidades em esgrima a tornaram uma das jovens promessas mais respeitadas da sua geração. No entanto, ela sabia que ainda havia muito a aprender, especialmente quando se tratava das ameaças que assolavam o mundo. As masmorras e as fendas dimensionais.

Nesse mundo, existem as masmorras, cuja maioria são lugares subterrâneos, mas também ruínas antigas. E além delas, existem as fendas dimensionais. Essas fendas são rachaduras no tecido do espaço-tempo que aparecem em locais aleatórios e conectam esse mundo a outros planos de existência. Elas não são meras portas ou portais, são distorções que desafiam as leis da física e da realidade como a conhecemos.

As fendas dimensionais causam dilatação temporal, um fenômeno em que o tempo flui de maneira diferente dentro e ao redor delas. Para quem está do lado de fora, minutos podem se passar, enquanto para quem estiver dentro, horas ou até dias podem se passar. Essa distorção temporal é imprevisível e varia de fenda para fenda, o que as tornavam ainda mais perigosas.

Além disso, as fendas servem como passagens para criaturas de outros mundos, seres que muitas vezes são hostis e representam uma ameaça direta à humanidade. Essas criaturas podem invadir o planeta, trazendo caos e destruição. Por outro lado, alguns humanos podem entrar nessas fendas, enfrentar o que quer que esteja do outro lado e, se bem-sucedidos, fechá-las. Esse é o senso comum, mas a realidade por trás das fendas dimensionais pode ser muito mais complexa do que se espera.

Em 1989, dois grandes desastres estavam prestes a acontecer. No dia 13 de agosto apareceram duas fendas que emitiam uma quantidade de energia espiritual tão forte que era possível detectar rastros mesmo estando há centenas de quilômetros de distância. Uma delas estava em Sopron, na Hungria. E a outra no Rio de Janeiro no Brasil. Era esperado que caçadores de alto nível fossem contratados para realizar as incursões para fechá-las, mas a negligência do governo de ambas as nações criaram outro cenário.

Geralmente, quando uma fenda aparece, uma incursão é realizada com o objetivo de adentrar a fenda e derrotar os monstros que estão do outro lado, para que ela se feche naturalmente. Quando isso não acontece, depois de um determinado tempo, as criaturas do outro lado atravessam a fenda destruindo tudo que estiver ao seu alcance, mas isso não aconteceu…

As primeiras incursões foram lideradas por caçadores de Rank-B, mas a maioria eram de Rank-C ou mais baixo, e foram um fracasso. A demora da alocação de recursos financeiros permitiram que vários dias preciosos se passassem sem uma resposta eficaz. Enquanto os caçadores da elite negociavam contratos milionários, os de rank inferior, atraídos pela promessa de recompensas muito maiores do que normalmente recebiam, enfrentaram uma batalha impossível de ganhar, a diferença entre os recursos e o apoio oferecidos aos diferentes níveis de hierarquia era gritante. A falta de caçadores de alto rank, que eram capazes de conter a ameaça desde o início, fez com que as duas cidades fossem atacadas.

Nesse cenário de caos, Wilhelm Leister, um caçador de Rank-S da Alemanha entrou em cena. Conhecido em todo o mundo como líder e fundador da guilda Wächter des Äthers, a guilda mais poderosa já criada. As casas nobres viram nele a oportunidade de recuperar parte do poder e da influência que perderam com o declínio do imperialismo na Europa. Entre essas famílias, estava a Casa Boummut.

Jean-Luc e Wilhelm já se conheciam há alguns anos. Foi assim que Cynthia conheceu Lucas, o filho único de Wilhelm. Algumas vezes acompanhava Cynthia em expedições a masmorras quando visitavam a França.

Wilhelm conseguiu convencer as famílias nobres para financiarem uma nova incursão em Sopron. Cynthia se juntou ao grupo de caçadores que partiu para Sopron, enquanto Wilhelm e Lucas foram para a incursão no Brasil, com o apoio da Wächter des Äthers e de vários outros caçadores sul-americanos. Um único homem havia conseguido forjar uma aliança poderosa o suficiente para enfrentar os dois desastres que aconteceram ao mesmo tempo.

Apesar do esforço conjunto, as perdas foram devastadoras. Cynthia presenciou horrores indescritíveis em Sopron, o que a deixou traumatizada. A experiência a assombrou por meses, tornando-a hesitante e insegura em missões futuras.

Decepcionado com a decadência de Cynthia, Jean-Luc voltou sua atenção para Vanessa Boummut, sua sobrinha, que por sinal era sete anos mais nova que Cynthia, mas com um potencial igualmente promissor. As duas haviam sido criadas como irmãs, mas agora Cynthia não via mais sentido na competição pela liderança da Casa Boummut. A sombra da tragédia e a indiferença do padrasto a corroíam por dentro.

Dois anos depois, o mundo finalmente reconheceu as falhas do sistema de caçadores. As maiores potências mundiais, em conjunto com alguns dos caçadores mais renomados, incluindo Wilhelm, criaram o Conselho Global de Guardiões (CGG), uma organização dedicada a supervisionar todas as atividades relacionadas a masmorras e fendas dimensionais.

O antigo sistema de ranks baseado em letras, foi substituído por uma nova classificação: Bronze, Prata, Ouro, Platina, Diamante e, no topo, Adamante. Os caçadores, agora passaram a ser chamados de Guardiões, e tinham como objetivo principal proteger a humanidade das fendas dimensionais. Cada país membro do CGG teria um presidente local, e para a surpresa de muitos, Wilhelm se ofereceu para liderar a associação no Brasil. A mídia especulava que ele via o país como um ponto estratégico para o estudo de anomalias dimensionais, um interesse que cultivava secretamente há anos. Jean-Luc, por sua vez, assumiu a presidência da associação na França.

***

Nesse período, o relacionamento de Cynthia e Lucas floresceu em meio a esses acontecimentos. Lucas se tornou o refúgio de Cynthia, um escape da frieza da Casa Boummut. Quando disseram para suas famílias que queriam se casar, Jean-Luc consentiu, mas com uma condição: O primogênito do casal pertenceria à Casa Boummut. Cynthia não pensou muito no assunto e aceitou sem hesitar. Ela estava aliviada por ter deixado sua posição de herdeira para trás.

Eles se mudaram para uma cidade no interior do Amapá, perto de algumas masmorras recém-descobertas onde Lucas poderia trabalhar como Guardião. Não muito tempo depois, Cynthia engravidou e deu à luz a um menino, que recebeu o nome de Eddy, e que criança peculiar ele era.

Assim que começou a engatinhar com mais frequência, começou a explorar todos os cantos da casa - atrás do sofá, embaixo da mesa de jantar, no banheiro e no quintal. Assim que Cynthia desviava os olhos, Eddy ia direto para a estante de livros, não parecia nada perigoso, até que um dia ele conseguiu arrastar uma cadeira até a estante e subir nela e quase cair ao tentar se esticar para pegar um dos livros, isso quase fez com que Cynthia tivesse um ataque cardíaco.

Eddy gostava de ficar admirando o pôr do Sol quando conseguia ficar acordado, mas por algum motivo ele ficava olhando para o portão de casa, como se quisesse sair para fora. Principalmente quando Lucas ficava fora por dias devido a exploração em masmorras. Começou no dia em que ele voltou de uma expedição onde trouxe um cristal de mana com ele. Eddy começou a ficar cada vez menos ativo em sua exploração pela casa. Foi quando Cynthia descobriu que ele ia até o escritório do pai onde ele fazia relatórios sobre as expedições e guardava seus equipamentos.

Sempre que notava o sumiço dele, ia correndo até o escritório com medo de que fosse subir em uma cadeira. Então ela teve uma ideia brilhante: ensiná-lo a ler e escrever.

Ele prestava bastante atenção quando Cynthia ou Lucas contavam alguma história, então ela pensou que seria uma boa ideia. Mas para sua surpresa, o garoto havia decorado o alfabeto em apenas três dias, juntar as letras e formar algumas palavras também não era tão difícil.

"Como isso é possível? Ele não fez nem três anos ainda", pensou Cynthia enquanto o observava.

Entretanto, toda essa atmosfera ia embora quando se lembrava da promessa que havia feito a Jean-Luc. Com ajuda de Wilhelm, eles conseguiram adiar a entrega da criança, mas a angústia de ter que entregá-lo à Casa Boummut crescia cada vez mais, seria muito difícil se desfazer do próprio filho.

Nos últimos dias, ela começou a ler os livros da estante para Eddy várias vezes ao dia, não apenas quando ele ia dormir. Ela conversou sobre isso com Lucas, que também reagiu da mesma forma, pois cedo ou tarde eles teriam que entregar Eddy para Jean-Luc. Sem terem muito o que fazer, decidiram focar na educação do garoto o máximo possível, se não podiam ficar com ele, ao menos queriam ter várias boas lembranças dessa época.

No fim, era melhor evitar essa atmosfera enquanto estavam juntos. Qualquer reflexão sobre algo que já estava decidido acabaria gerando preocupações desnecessárias.